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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 23.04.17

LIVRO

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     Quando abro um livro, ele oferece aos meus olhos dois modos muito distintos de eu me interessar por ele. Propõe à função dos olhos dois usos alternativos. Pode sugerir que eles iniciem um movimento regular, que se comunica e prossegue de palavra em palavra ao longo de uma linha, renasce na linha seguinte depois de um salto que não conta, e provoca em seu desenrolar uma quantidade de reações mentais sucessivas, cujo efeito comum é destruir a cada instante a percepção visual dos signos, substituindo-a por lembranças e combinações de lembranças. Cada um desses efeitos é o primeiro termo de algum infinito desenvolvimento possível. Isso é a Leitura. Poderíamos dar-lhe por símbolo a ideia de uma chama alastrando, de um fio queimando de ponta a ponta com, a cada certo tempo, pequenas explosões e cintilações. Esse modo sucessivo e linear requer uma visão nítida e a conservação dessa visão nítida — condição essencial para a produção dos actos elementares do cérebro, que respondem às excitações da escrita com sons virtuais ou reais, com significações. A legibilidade de um texto é a qualidade que esse texto tem de se adequar à visão nítida. Mas em paralelo e à parte a leitura em si, existe e subsiste o aspecto de conjunto de toda coisa escrita. Uma página é uma imagem. Ela produz uma impressão global, apresenta um bloco ou um sistema de blocos e estratos, pretos e brancos, uma mancha com figura e intensidade mais ou menos bem resolvidas. Essa segunda maneira de ver, não mais sucessiva e linear e progressiva como a leitura, mas imediata e simultânea, permite aproximar a tipografia da arquitectura, assim como, há pouco, a leitura poderia ter lembrado a música melódica e todas as artes que esposam o tempo. Existem livros belos que não convidam à leitura, belas massas de puro preto sobre um campo muito puro, mas a plenitude e força de contraste, obtidas à custa das entrelinhas e que parecem muito rebuscadas na Inglaterra e Alemanha, onde procuram alcançar certos modelos do século XV e XVI, não deixam de pesar para o leitor e parecer um tanto arcaicos. A literatura moderna não se adapta a essas formas compactas, como que repletas de caracteres. Existem, em contrapartida, livros bem legíveis, bem arejados, mas feitos sem nenhuma graça, insípidos para a vista, ou até francamente feios. Essa independência nas qualidades que um livro é capaz de ter permite que a tipografia se torne uma arte. Quando ela quer apenas responder à necessidade simples de ler, dispensa os artistas, pois as exigências da legibilidade podem ser precisamente definidas e satisfeitas por meios igualmente definidos e uniformes. A experiência e a análise serão suficientes para determinar o que é preciso ao gravador da letra, ao compositor e ao impressor para obter um texto claro e nítido. Basta, porém, o tipógrafo tomar consciência da complexidade de seu trabalho, para se sentir na obrigação de ser um artista, pois o próprio do artista é escolher e o escolher é comandado pelo número de possíveis. Tudo aquilo que deixa espaço para o incerto clama pelo artista, embora nem sempre o obtenha. Um livro é materialmente perfeito quando é agradável de se ler, delicioso de se mirar; quando, enfim, a passagem da leitura à contemplação e, reciprocamente, da contemplação à leitura é muito fácil e corresponde a mudanças imperceptíveis da acomodação visual. Os pretos e brancos constituem então repouso um do outro, o olho circula sem esforço em seu domínio bem disposto, aprecia o conjunto e os detalhes e sente-se em condições ideais de funcionamento. Tal ideal só pode ser alcançado por meio da colaboração entre o gravador de caracteres e o tipógrafo. Em última análise, a forma toda deve decorrer do carácter. Esse último não pode ser puro fruto da imaginação. Sua figura, seus traços grossos e finos devem depender de sua espessura. Permito-me achar que é um erro reproduzir as mesmas figuras em diferentes escalas. Em suma, um belo livro é, acima de tudo, uma perfeita máquina de ler, cujas condições se definem com certa precisão pelas leis e métodos da óptica fisiológica; e é, ao mesmo tempo, um objecto de arte, uma coisa que, no entanto, possui personalidade própria, traz marcas de um pensamento específico, sugere o nobre desígnio de uma organização consciente e bem realizada. Observe-se que a obra tipográfica exclui a improvisação; é fruto de experimentos que desaparecem, objecto de uma arte que só guarda obras acabadas, rejeita esboços e esquemas, desconhece estágios intermediários entre o ser e o não-ser. Nesse sentido nos dá uma grande e temível lição. O espírito do escritor mira-se no espelho que a prensa lhe oferece. Se o papel e a tinta se adequarem mutuamente, se a letra possuir um belo olho, se a composição for cuidada, a justificação deliciosamente proporcionada, a folha, bem impressa, o autor experimenta de um modo novo a sua linguagem e o seu estilo. Encontra em si mesmo acanhamento e orgulho. Vê-se a si mesmo revestido de honrarias que talvez não lhe pertençam. Julga ouvir uma voz muito mais nítida e firme do que a sua, uma voz implacavelmente pura, articulando as suas palavras, destacando perigosamente todos os vocábulos. Tudo o que ele escreveu de fraco, mole, arbitrário, deselegante, agora fala claro e alto demais. É um julgamento muito preciso e temível, esse de ser magnificamente impresso.

Paul Valéry, As Duas Virtudes de um Livro (Tradução de Dorothée de Bruchard)

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por Maria Almira Soares às 11:54

Terça-feira, 18.04.17

A TORRE

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     A sala de jantar da Torre, que abria por três portas envidraçadas para uma funda varanda alpendrada, conservava, do tempo do avô Damião (o tradutor de Valerius Flaccus), dois formosos panos de Arrás representando a «Expedição dos Argonauras». Louças da Índia e do Japão, desirmanadas e preciosas, recheavam um imenso armário de mogno. E sobre o mármore dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, das pratas famosas dos Ramires que o Bento constantemente areava e polia com amor. Mas Gonçalo, sobretudo de Verão, sempre almoçava e jantava na varanda luminosa e fresca, bem esteirada, revestida até meio muro por finos azulejos do século XVIII, e oferecendo a um canto, para as preguiças do charuto, um profundo canapé de palhinha com almofadas de damasco.

     Quando lá entrou, com os jornais da manhã que não abrira, o Pereira esperava, encostado a um grosso guarda-sol de paninho escarlate, considerando pensativamente a quinta que, dali, se abrangia até aos álamos da ribeira do Coice e aos outeiros suaves de Valverde. Era um velho esgalgado e rijo, todo ossos, com um carão moreno, de olhos miudinhos e azulados, e uma barbicha rala, já branca, entre dois enormes colarinhos presos por botões de ouro. Homem de propriedade, acostumado à cidade e ao trato das autoridades, estendeu largamente a mão ao Fidalgo da Torre, e aceitou, sem embaraço, a cadeira que ele lhe empurrara para a mesa — onde dominavam, com os seus ricos lavores, duas altas infusas de cristal antigo, uma cheia de açucenas e a outra de vinho verde.

     — Então, que bom vento o traz pela Torre, Pereira amigo?

Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., págs. 60 e 61.

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por Maria Almira Soares às 13:02


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