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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quinta-feira, 22.06.17

O GENE DA LEITURA

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      Existirá? Haverá um gene da leitura? Será o gosto da leitura de ordem genética? Estará no nosso corpo o desejo de ler e a satisfação com a leitura? Há leitores analfabetos. Há gente que não sabe ler, mas tem em si o gosto de ler. O Amor de Perdição era nacionalmente conhecido e querido num país cuja taxa de analfabetismo rondava os 90%. Não possuíam a técnica, mas como tinham o gosto, pediam-no emprestado a quem o tinha e tornavam-se leitores pelos ouvidos. Hoje ainda há gente que tem todo o perfil do bom leitor, mas, como não sabe ou mal sabe ler, não pode ler. Será a leitura uma aquisição meramente social, cultural? O que é um leitor? Pode ter-se adquirido a técnica da leitura, que é oficialmente obrigatória, e não se ser leitor. Os números das estatísticas estão à vista e comprovam-no. Pode, por outro lado, não se ter essa técnica e ser-se um leitor impotente…Como é ser-se leitor? É gostar de se achegar ao aconchego de uma boa história generosamente dada pela faculdade das palavras; é gostar de gastar os olhos nas letrinhas do jornal, molhar os dedos para lhes soltar as folhas; estreitar a vista coluna acima, coluna abaixo, perder-se na busca da continuação.

   Ser leitor é: gostar de estar sossegado e só esforçar os olhos e a cabeça para ficar a saber coisas que, magicamente, sem pincéis nem tinta, têm cor e forma e, sem projector, têm movimento; é ser-se curioso, e gostar de seguir roteiros e de encontrar respostas; é ser infantil na abertura à fantasia e adulto no jogo dos sonhos escondidos; é o gosto da intriga, do enredo, da novidade e da descoberta; é o gosto dos nomes, das referências, das frases bem-dizentes; o gosto das palavras bem-soantes; o gosto da fuga, de ultrapassar o real pela fuga e lhe fazer uma espera mais à frente, já ficticiamente senhor das suas estratégias.
   Ideal é que o ensino da técnica garanta a realização do desejo. Mas o desejo, esse, não se ensina. Provoca-se. Desperta-se. Pro­voca-se a curiosidade, proporciona-se o agrado com o efeito de surpresa. Faz-se com que ler seja acontecer. A escola pode ser um lugar onde, enquanto se ensina o ler, se desperta a fantasia. O tempo e o modo de ler podem ser vividos na escola como quem aviva um desejo, um fogo que velaremos ao abrigo das coisas da vida que tendem a apagá-lo, fazendo dos livros um espaço pessoal de liberdade, aprendendo que ninguém está no espaço incolor em que as histórias que lemos se tornam reais, senão nós. Só se quisermos e quando quisermos o partilhamos.
   A escola pode ensi­nar que ler é uma porta que se abre, um acesso, uma entrada; que, quando alguém abre um livro e se põe a ler, como que fica intocável. Mas não só a escola. Desejável é que aqueles que parecem geneticamente mais dados à leitura contrariem a tendência social para ler pouco, peguem ostensivamente em livros, jun­tem dinheiro para comprar livros, a prestações, se for preciso, como fazem com outros bens; em segredo primeiro, se tiverem vergonha, e, depois, à vista de todos, causem o escândalo da leitura, numa sociedade que não lê, e, depois, talvez, o respeito.
   Se não há um gene da leitura reconhecível num exame médico, que se garanta, pelo menos, meios de transmissão social: a escola, e todos os que gostam de ler. Que ninguém diga: quem não quer ler que não leia, colocando no mesmo leque de opções coisas ontologicamente distintas. Pasmoso é o esforço insano que fazem as escolas para desenvolverem práticas, às vezes espantosas, e espantoso é que ninguém se lembre da hipótese de haver nelas coisas como, por exemplo, a Leitura ao Fim da Tarde.
   Ler já foi uma arma da adolescência. Esta perdeu-a, mas deve re­cuperá-la. A leitura já foi um espaço de mudez-surdez, tão caro aos adolescentes, habitado por sonhos e ousadias; era um espaço de imobilidade pesada, atirada contra a presteza e prontidão dos adultos; era um espaço de atraso e de demora, de desculpa, de teimosia, de ultrapassagem subterrânea dos legítimos superiores.
   Hoje, o adolescente não suspeita de quão estrategicamente útil lhe poderia ser a leitura, e foge a desgastar-se noutras andanças. Há um vazio imenso a fingir que é movimento e alta voz. Ler não é uma actividade essencialmente grupal, mas garante ao grupo a existência do indivíduo. Um grupo não é só uma coincidência de gente na mesma escola, na mesma rua, na mesma praia, na mesma discoteca. Não é apenas uma simultaneidade.
   No equilíbrio das forças que sustentam um grupo tem de haver um lugar para a distância, para a pertença a si próprio. A lei­tura é um elo que nos solda a alguma coisa de sólido que vai havendo em nós, enquanto a diversidade nos interpela, ao som de uma voz pública que nos pretende ditar, como se fôssemos só uma folha branca onde nos vão inscrevendo. Porque ler é também rejeitar, revelar, identificar, abrir, descobrir.
   É muito provável que não haja o gene da leitura, mas tem de haver a educação para a leitura como imperativo de uma cultura humanista.

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por Maria Almira Soares às 17:01

Terça-feira, 06.06.17

O SONHO DO CELTA

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    Talvez seja mais difícil escrever um bom livro sobre um argumento pré-existente tão sólido, do que uma pura ficção em que tudo é, à partida, instável e manipulável. Neste livro de temática tão sólida, a escrita continua a ser arrebatadora, a fazer-nos ver e sentir na pele e em todos os sentidos os mundos narrados. É grande literatura. Não é apenas uma transparência lançada sobre a História, uma janela sobre um Casement historicamente documentado, mas tem a espessura de uma escrita que nos dá uma visão, que nos interpela, que nos coloca em situação. É uma leitura cheia de motivos de interesse: dá a conhecer factos que possivelmente ainda não conhecíamos; revela outros ângulos, pormenores, de figuras que eram para nós nomes conhecidos a que associávamos uma imagem; aborda a história do nacionalismo irlandês e o tema da Grande Guerra; mergulha no Humano e nas suas obsessões, fraquezas, crimes, mentiras, cobardias; retrata a enormidade de crimes contra a Humanidade; constrói a figura de um homem, Roger Casement, o celta que tinha um sonho e que morreu por causa desse sonho.

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    É perigoso ter um sonho radicalmente obsessivo que tudo ultrapassa, que se sobrepõe a tudo, um sonho nascido num momento de lucidez ou de loucura, o momento da revelação da criminosa exploração colonial da borracha e da criminosa dominação britânica da cultura celta, do apagamento da cultura do negro e do índio como do apagamento da cultura celta. SER RADICAL É MORTAL? O excesso é perigoso, porque, em última análise, imperam as leis da sobrevivência. Há uma razão, legitimada pelos denominadores comuns dos juízos maioritariamente aceites, que não aceita, condena irremediavelmente, o excesso: perante a razão patriótica, até a razão particular da amizade soçobra, pelo menos em público; perante a moral familiar publicamente aceite, um comportamento que se singulariza é sentido como prejudicial e denegado. A leitura llosiana de Casement articula o excesso, o idealismo, a obsessão com a perda. Narra uma dimensão do Poder que é a das vítimas individuais das grandes ironias da História. Afinal, Casement vinha desaconselhar a Revolta da Páscoa, mas foi apanhado nas voltas da História. Afinal, havia uma boa dose de fantasia no que Casement escrevia nos seus diários, mas Casement esqueceu-se de os esconder ou destruir, permitindo que fossem tomados como verdade. Roger Casement é uma figura trágica, cuja grandeza não resistiu aos seus pequenos erros e fraquezas. Os heróis trágicos serão obrigatoriamente ingénuos?

 

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por Maria Almira Soares às 20:23


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