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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Existirá? Haverá um gene da leitura? Será o gosto da leitura de ordem genética? Estará no nosso corpo o desejo de ler e a satisfação com a leitura? Há leitores analfabetos. Há gente que não sabe ler, mas tem em si o gosto de ler. O Amor de Perdição era nacionalmente conhecido e querido num país cuja taxa de analfabetismo rondava os 90%. Não possuíam a técnica, mas como tinham o gosto, pediam-no emprestado a quem o tinha e tornavam-se leitores pelos ouvidos. Hoje ainda há gente que tem todo o perfil do bom leitor, mas, como não sabe ou mal sabe ler, não pode ler. Será a leitura uma aquisição meramente social, cultural? O que é um leitor? Pode ter-se adquirido a técnica da leitura, que é oficialmente obrigatória, e não se ser leitor. Os números das estatísticas estão à vista e comprovam-no. Pode, por outro lado, não se ter essa técnica e ser-se um leitor impotente…Como é ser-se leitor? É gostar de se achegar ao aconchego de uma boa história generosamente dada pela faculdade das palavras; é gostar de gastar os olhos nas letrinhas do jornal, molhar os dedos para lhes soltar as folhas; estreitar a vista coluna acima, coluna abaixo, perder-se na busca da continuação.
Talvez seja mais difícil escrever um bom livro sobre um argumento pré-existente tão sólido, do que uma pura ficção em que tudo é, à partida, instável e manipulável. Neste livro de temática tão sólida, a escrita continua a ser arrebatadora, a fazer-nos ver e sentir na pele e em todos os sentidos os mundos narrados. É grande literatura. Não é apenas uma transparência lançada sobre a História, uma janela sobre um Casement historicamente documentado, mas tem a espessura de uma escrita que nos dá uma visão, que nos interpela, que nos coloca em situação. É uma leitura cheia de motivos de interesse: dá a conhecer factos que possivelmente ainda não conhecíamos; revela outros ângulos, pormenores, de figuras que eram para nós nomes conhecidos a que associávamos uma imagem; aborda a história do nacionalismo irlandês e o tema da Grande Guerra; mergulha no Humano e nas suas obsessões, fraquezas, crimes, mentiras, cobardias; retrata a enormidade de crimes contra a Humanidade; constrói a figura de um homem, Roger Casement, o celta que tinha um sonho e que morreu por causa desse sonho.
É perigoso ter um sonho radicalmente obsessivo que tudo ultrapassa, que se sobrepõe a tudo, um sonho nascido num momento de lucidez ou de loucura, o momento da revelação da criminosa exploração colonial da borracha e da criminosa dominação britânica da cultura celta, do apagamento da cultura do negro e do índio como do apagamento da cultura celta. SER RADICAL É MORTAL? O excesso é perigoso, porque, em última análise, imperam as leis da sobrevivência. Há uma razão, legitimada pelos denominadores comuns dos juízos maioritariamente aceites, que não aceita, condena irremediavelmente, o excesso: perante a razão patriótica, até a razão particular da amizade soçobra, pelo menos em público; perante a moral familiar publicamente aceite, um comportamento que se singulariza é sentido como prejudicial e denegado. A leitura llosiana de Casement articula o excesso, o idealismo, a obsessão com a perda. Narra uma dimensão do Poder que é a das vítimas individuais das grandes ironias da História. Afinal, Casement vinha desaconselhar a Revolta da Páscoa, mas foi apanhado nas voltas da História. Afinal, havia uma boa dose de fantasia no que Casement escrevia nos seus diários, mas Casement esqueceu-se de os esconder ou destruir, permitindo que fossem tomados como verdade. Roger Casement é uma figura trágica, cuja grandeza não resistiu aos seus pequenos erros e fraquezas. Os heróis trágicos serão obrigatoriamente ingénuos?
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