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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 31.07.17

Eis as próximas leituras da LERDOCELER

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por Maria Almira Soares às 23:22

Segunda-feira, 31.07.17

A EDUCABILIDADE ESCOLAR DO LEITOR

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Simultaneidade? Paralelismo? Metaforização? Identificação? Integração? Homogeneidade? Atrito? Paradoxo?

       Desinteresso-me da hipótese de leitura e educação serem meros processos paralelos, cujo espaço interactivo seria um lugar cego, habitado por simultaneidades proféticas, o que, deste modo e nos próprios termos, impossibilitaria a análise da relação que procuro compreender.

       Desinteresso-me da hipótese da dupla e reversível metaforização que toma ler como educar e figura, no educar, uma aplicação do ler, porque a razão de ser desta conexão se situa principalmente no plano nominal do jogo retórico, acumulando espessura verbal sobre um pensamento que se exige clarificador.

       Assim, passo, liminarmente, ao interesse pelo debate sobre se, no acto escolar de educar leitores, educação e leitura são práticas harmonicamente conjugáveis, em ambiente de homogenia, ou se a significação do mútuo efeito de atrito, gerado na educação escolar do leitor, reclama uma chave interpretativa da ordem do paradoxo. É esta a questão que coloco como primeira entrada num percurso de clarificação do conceito de educabilidade escolar do leitor.

       Esta abordagem problematizadora da conexão entre educação e leitura (na sua vertente: educa-se o leitor?) é, nos relatos de experiência frequentemente produzidos, invertida e ocultada, em prol da aceitação de uma suposta evidência testemunhal: a da harmonia implicada nos aparentes resultados educacionais positivos da leitura. Deste modo, a bondade educativa da leitura (presumida a partir do reconhecimento cego dos seus resultados e, a partir deles, generalizada) e, bem assim, a forçosa harmonia aí implicada, abatem a complexidade do problema até à superficialidade demonstrativa de um ovo de Colombo. A colocação de todo o horizonte de interesse do lado do efeito prejudica oportunidades de reflexão sobre a natureza e condições da educabilidade do leitor. O ah! conclusivo e aprovador absorve a questionação do processo, como se este fosse também evidente e participasse da energia benéfica do seu resultado. Educar e ler euforicamente homogéneos?

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por Maria Almira Soares às 11:46

Quinta-feira, 27.07.17

A LEITURA NÃO É UM BRINQUEDO

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    Preocupa-me, por exemplo, verificar a existência de casos, talvez muitos casos, em que infâncias aparentemente conquistadas para a leitura dão em adolescências de abandono brusco ou progressivo e em juventudes que desembocam na aridez de vidas adultas que não leem nem um livro por ano. Entristece-me verificar, durante encontros que tenho tido com jovens, em escolas, a complacência, a aceitação de braços caídos de inevitabilidade, perante a realidade de muitos e muitos, quase todos, desses que foram crianças leitoras muito animadas senão entusiasmadas com a leitura, se revelarem quase fisiologicamente incapazes de ler... Os Maias. E tento articular entre si estas duas realidades exemplificativas: gostar de ler em criança e ser, em jovem, incapaz de ler Os Maias. E saltam-me algumas perguntas a que procuro responder: — Que gostar era esse? — Que incapacidade é esta?

Sou, então, tentada a encontrar respostas como estas: Ler foi para eles apenas uma coisa da infância. Naturalmente, crescer foi, neles, deixar para trás as coisas da infância, entre as quais, esses livros, lindos, em que quase tudo era desenho, objetos nostálgicos de que se lembram com um sorriso, como doutros brinquedos que tiveram, e que, para eles, nada têm a ver com a vontade, a curiosidade, que poderiam ter, de ler um livro como... Os Maias. E que leitores triunfantes muitos deles foram na infância! Os triunfos imediatos esgotam-se em si mesmos e tornam-se, talvez, mais coisa de registos estatísticos do que de ganhos humanísticos.

Conheço muitos casos destes. Fui e vou conhecendo. Pessoas que, na infância leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos.

Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo.

Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro.

Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...

Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro.

Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis.

   Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até, a inseri-los no seio de atividades de leitura.

   Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós.

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por Maria Almira Soares às 10:24

Terça-feira, 11.07.17

LER É MAÇADA?

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   [...]

    Ler é muita coisa e resulta de muitas capacidades e competências, sabemos, mas ler é, sobretudo, um ato de imaginação, um ponto de encontro entre aquilo que um livro permite à minha imaginação e aquilo que a minha imaginação permite a um livro.

     Um livro começa por ser história no imaginário do seu autor, depois é só papel pintado com tinta numa livraria, numa biblioteca, e eu, leitora, eu com o meu imaginário faço-o de novo ser história nem sempre totalmente coincidente com a do autor, diga-se, e é essa a minha eufórica façanha. Não posso apenas ficar sentada no lugar que me deram a assistir ao que outros com os seus imaginários projetaram do livro para me servir, para me aliciar. Há um momento fundamental em que tenho de ser eu a sós com aqueles bichinhos sobre o branco do papel como o Tarzan chamou às letras quando as viu pela primeira vez.

    Peço desculpa, mas não resisto a que todos leiamos ou releiamos, aqui, um pequeníssimo extrato do 1º vol. dos livros de Edgar Rice Burroughs, respeitante ao primeiríssimo encontro entre Tarzan e um Livro, porque, para mim, este textinho é uma lição:

«Inicialmente tentou tirar das páginas as pequenas figuras, mas logo compreendeu que não eram reais, embora não soubesse o que poderiam ser e não tivesse palavras para descrevê-las. Os barcos, comboios, vacas e cavalos, não tinham qualquer significado para ele, mas todavia não lhe pareceram tão intrigantes como as estranhas figurinhas que apareciam abaixo e entre os desenhos coloridos - deviam ser insetos, talvez, porque muitos tinham pernas, mas não encontrou um só que tivesse olhos e boca. Era o seu primeiro contacto com o alfabeto e tinha mais de dez anos. Evidentemente que nunca vira, antes, caracteres impressos, nem falara com qualquer criatura viva que tivesse a menor ideia sobre a existência de linguagem escrita. Não sabia que fosse possível ler. Por isso não admirava que não pudesse fazer qualquer ideia sobre o significado daquelas estranhas figuras. A cerca do meio do livro, descobriu a sua velha inimiga, Sabor, a leoa, e mais adiante viu Histah, a serpente. Aquilo era maravilhoso e absorvente! Nunca antes, nos seus dez anos de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tanto prazer. E tão absorvido estava que não notou a aproximação da noite senão quando a escuridão já não lhe permitia ver. Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.»

Edgar Rice Burroughs, Tarzan dos Macacos, vol I

    Receio que haja quem pense que esta narrativa da descoberta da leitura por um Tarzan de dez anos é pura fantasia. Que isto não é senão ficção. A história é fictícia, sim. Porém, a emoção é verdadeira. Haverá quem pense, que não é de fantasias, mas de estudos científicos e técnicos, que se deve tirar lições. Será assim, será, mas quanto a isso sou um caso perdido. Aprendo imenso com a arte literária. Não é que não aprenda também com esses estudos, mas sei que, muitas vezes, a literatura vai beber a fontes mais profundas e mais perduráveis que as do conhecimento científico.

    Pois... o textinho de Edgar Rice Burroughs acompanha-me na convicção de que ler é cá uma coisa entre mim e as palavras e que, como lá diz, o mais intrigante de tudo eram aqueles desenhinhos, ou seja, as palavras. Penso que o que temos de valorizar num livro são precisamente as palavras e resistir à ideia de as disfarçar por trás de biombos que pensamos mais atrativos.

    Tem de ser, a criança, insisto, a projecionista daquele escuro desenrolar das letras pretas sobre o papel branco que é o livro. Porque isto, por mais que invoquemos coisas paralelas e complementares e lhes chamemos livros e lhes chamemos ler, isto de papel e letras — ou de letras num ecrã, se quiserem, mas isso seria todo um outro debate — é que é o essencial de um livro. Se assim não for, que ninguém espere que um dia ela não olhe Os Maias como uma grande maçada, e não metafórica, que quer evitar. [...]

   (Excerto da palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar.)

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por Maria Almira Soares às 11:14

Segunda-feira, 10.07.17

O ROMANCE

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  O romance estava pronto. E era um bom romance. Demorara bastante tempo a fazer. Não tantos anos como esses que, miticamente, se diz, ou dizem os seus autores, que demoraram alguns romances. Mas, sim, fora obra de anos. Por ciclos. Houve o ciclo em que o romance parecia um monte de pedras, mas, depois de um faz-e-desmancha arreliador, ele, o autor, lá conseguiu transformar as pedras num muro consistente. Um romance é sempre um muro. Para quem o escreve. Um muro com uma porta para a vida. Escrevê-lo é um constante abrir e fechar dessa porta, um entrar e sair do romance para a vida e vice-versa. Serve aqui a metáfora do camponês arcaico que, todos os dias, tira do bolso a chave, a faz girar na fechadura e vai ao seu campo tratar, por exemplo das suas couves. Entra no seu campo e esquece ou não esquece a rua de alcatrão, as casas umas a seguir às outras, as pessoas que passam e cumprimentam, os carros que às vezes chapinham outras empoeiram, e põe-se a tratar, por exemplo, das suas couves: um dia, sacha remexendo os torrões; outro dia, arranca as ervas daninhas; outro dia, rega; outro dia, fica só a admirar o milagre das couves nascentes, etc. etc.

   Ele, o autor, andou durante muito tempo a remexer no romance sentindo que ele se esboroava como terra seca ou a catar frases daninhas ou a dar seiva à secura, à marcescência, à quase-morte de algumas palavras ou simplesmente a contemplar e achar que o seu romance era uma bela couve. A música dos seus dias era, então, aquele ranger constante da porta entre a rotina da sua vida e o sentar-se ao computador à procura de encontrar soluções para o imperativo da história que era a vida daquele seu romance. Até que um dia reparou que já não havia porta a interromper o muro. O muro estava inteiro e era belo. Estava fechada aquela história. Se a quisesse abrir, só mudando a sua relação com ela e, logo, daí, o nome dessa relação. Só sendo seu leitor, a abriria de novo para si. Então, como o tal camponês arcaico deliciado com a frescura e a ternura das suas couves, o autor sentou-se à mesa e comeu, perdão, leu o seu romance. Era um bom romance. Contava uma boa história. Escrita com boas palavras.

   Ora, nenhum camponês arcaico que se preze cria couves só para si. Morreria se comesse todas as suas couves. Que fazer, então? Encher com elas um belo cabaz e ir pousá-las no chão da praça à espera de que lhas comprem, de que lhas comam, de que lhas gabem, de que voltem à procura de mais. Assim, um dia, o autor, meteu o seu romance num cabaz, perdão, num envelope, e atirou-o ao mundo, perdão, deixou-o numa estação dos correios endereçado a coisas semelhantes às praças onde se vendem couves mas para romances e pôs-se a esperar. Esperou, esperou, esperou... E nada.

   De nenhuma dessas metafóricas praças saiu um som, uma palavra, um grunhido, nem um miado de gato desses que andam de roda da beleza total de um peixe-livro pousado nas bancas. Nada. Ninguém iria ler, perdão, comer, o seu romance, perdão, o seu peixe, perdão, as suas couves. E o que faz um camponês, ainda que arcaico, triste? Melancoliza. E um escritor também. O autor melancolizou, o que quer dizer enegreceu, esquecido ou fazendo por esquecer-se das tenras folhas do seu romance amarelecendo em caixotes de lixo. E, no entanto, o seu romance era bom. Muito bom. Que sabe alguém de uma couve que não provou? O mundo inteiro ignorava aquele seu romance consistente como um muro, tenro e gostoso como uma couve bem cultivada.

   O autor abandonou o campo, seguindo o êxodo de que já em tempos falara Gil Vicente, 'todos do paço/ todos do paço'. Limitou-se a viver um bocadinho mais temperado pela amargura. Azedume. Destilando sempre um excessivo vinagre sobre o mundo em que nasciam livros em tudo diferentes das couves do seu velho amigo camponês arcaico. Escrever é que nunca mais escreveu. Abandonou o campo em que as palavras, como uma praga, tentavam assaltá-lo e dedicou-se a ocupar os seus dias com a rotina da casa, da rua, dos amigos. Coisa muito mais leve. Já lá dizia o seu avô que a lavoura era muito custosa e não dava nada. Que vida bela a de quem se levanta, procura o vestido ou as calças, lava o corpo, desenrola o cabelo e parte para o dia em que toma cafés, cumprimenta, tagarela de pé de orelha ou ao telefone, põe umas coisas no facebook e responde a outras, grelha um bife ou trinca uma maçã, calça e descalça os pés, limpa aqui, suja ali, sabe de lugares aonde ir, de coisas inteligentes para ouvir, de casos que alguém esteve a contar. E, depois, o dia fecha-se e, amanhã, há outro. Que vida bela é a do marinheiro que anda com as marés e vai e vem como uma boia. Boiemos, então, resolveu o autor com o romance fechado no computador e na gaveta.

   Mas ele, o romance, apesar de amordaçado, estava vivo. E latejava. Era bom, muito bom, o romance.

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por Maria Almira Soares às 10:30

Quarta-feira, 05.07.17

EM BUSCA DA LUZ ANTIGA

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   Contar a história de um amor adolescente, ainda que sendo o próprio a contá-lo, ainda que sendo vivido com uma mulher muito mais velha, ainda que sendo essa mulher a mãe do melhor amigo, seria certamente um romance, mas não seria, ainda, uma obra-prima.

   Procurar a textura, a essência, a alma, a luz dessa história antiga, na destrinça de todas as luzes posteriores, até as cegantes luzes do agora, isso sim, é criar uma obra de arte literária com a marca da excelência.

   A luz que dimana dos objetos, das pessoas, dos lugares, das cenas, das emoções antigas, na sua velocidade quase-instantânea de luz, ilude o percurso temporal e faz com que esses objetos, pessoas, lugares, cenas, emoções, apareçam puros, intocados. Porém, esse feixe luminoso transportador de imagens distantes incide numa tela poluída por inúmeras outras luzes dimanadas de outros objetos, pessoas, lugares, cenas, emoções, construtoras de outros percursos com outras luzes, calcorreados ao longo de décadas e também pelo faiscar instantâneo do agora. Duas medidas, duas velocidades, que se fazem atrito: a que transporta a luz de lá para cá e a que, de cá, procura encarar, divisar, isolar, essa luz antiga.

   É o choque destas duas luzes pouco-miscíveis que incorpora neste romance o seu mais interessante significado, quase-desvenda o seu mistério, quase-ilumina o seu segredo, incessantemente buscado por entre o cruzamento de todas as luzes posteriores. Mais do que os ingredientes de uma intriga carregada de incidentes romanescos, é o desenho das figuras, das cenas, das emoções, dos objetos sobre transparências móveis que procuram sobrepor-se, que procuram a impossível coincidência, num atrito por vezes quase insuportável que faz a carne deste romance. Trata-se da memória, essa «luz antiga»...

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por Maria Almira Soares às 10:53

Terça-feira, 04.07.17

LER: A ARTE DE TRANSFORMAR LIVROS EM HISTÓRIAS

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Desenho de John Tenniel

 

 

        Quando a Alice foi atrás do coelho aquilo ainda não era o país das maravilhas; aquilo era só um buraco na terra sem graça nenhuma. Ninguém o tinha pintado de muitas cores nem polido com muito brilho para atrair a Alice. Ninguém fizera dele um irresistível motivo de atração. Ninguém? E deixamos de fora o imaginário de Alice? O imaginário de uma criança que viu um coelho tirar um relógio do bolso e o ouviu falar. As crianças, — as crianças? pensando melhor, as pessoas em geral — parece-me, andam é a ser demasiado convencidas a só valorizarem o gosto do que é, exterior e imediatamente, colorido, movimentado, sonoro, sensorialmente agitado e feitas esquecer de que têm mundos por dentro de si, por dentro das suas cabeças.

    Somos nós, os leitores, somos nós com o nosso imaginário que transformamos os livros em histórias. Ao deixar-me escorregar, ao deixar-me cair pelas palavras de um livro acima ou abaixo, simultaneamente eu experimento acionar um mundo paralelo. Sou eu o “projecionista” daquela fita contínua de palavras e simultaneamente o seu espectador e, até, participante, pois nelas me projeto. E com uma liberdade insuperável de fazer avançar, recuar, acelerar, demorar, parar, contemplar, intervalar, adormecer e acordar; e em plena luz para escrever ou desenhar o que me passar pela cabeça, sem precisar de óculos especiais para o 3D, 4D, ou os DD todos que quiserem, porque todas as dimensões tenho-as eu, até as que não tenho, mas ganho, ao projetar-me numa nova ou de uma nova história contada num livro. Valorizamos muito o livro, achamos que, nesta história da leitura, o livro é a personagem mais importante — e, sim, está muito bem, os livros são parte fundamental desta história — mas é muito importante também, é, acima de tudo, importante, valorizar o leitor, fazer com que cada um aprenda a ser leitor, ou seja, esse tal “projecionista”.

 

    Excerto da Palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar.

 

 

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por Maria Almira Soares às 13:24


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