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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 11.07.17

LER É MAÇADA?

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   [...]

    Ler é muita coisa e resulta de muitas capacidades e competências, sabemos, mas ler é, sobretudo, um ato de imaginação, um ponto de encontro entre aquilo que um livro permite à minha imaginação e aquilo que a minha imaginação permite a um livro.

     Um livro começa por ser história no imaginário do seu autor, depois é só papel pintado com tinta numa livraria, numa biblioteca, e eu, leitora, eu com o meu imaginário faço-o de novo ser história nem sempre totalmente coincidente com a do autor, diga-se, e é essa a minha eufórica façanha. Não posso apenas ficar sentada no lugar que me deram a assistir ao que outros com os seus imaginários projetaram do livro para me servir, para me aliciar. Há um momento fundamental em que tenho de ser eu a sós com aqueles bichinhos sobre o branco do papel como o Tarzan chamou às letras quando as viu pela primeira vez.

    Peço desculpa, mas não resisto a que todos leiamos ou releiamos, aqui, um pequeníssimo extrato do 1º vol. dos livros de Edgar Rice Burroughs, respeitante ao primeiríssimo encontro entre Tarzan e um Livro, porque, para mim, este textinho é uma lição:

«Inicialmente tentou tirar das páginas as pequenas figuras, mas logo compreendeu que não eram reais, embora não soubesse o que poderiam ser e não tivesse palavras para descrevê-las. Os barcos, comboios, vacas e cavalos, não tinham qualquer significado para ele, mas todavia não lhe pareceram tão intrigantes como as estranhas figurinhas que apareciam abaixo e entre os desenhos coloridos - deviam ser insetos, talvez, porque muitos tinham pernas, mas não encontrou um só que tivesse olhos e boca. Era o seu primeiro contacto com o alfabeto e tinha mais de dez anos. Evidentemente que nunca vira, antes, caracteres impressos, nem falara com qualquer criatura viva que tivesse a menor ideia sobre a existência de linguagem escrita. Não sabia que fosse possível ler. Por isso não admirava que não pudesse fazer qualquer ideia sobre o significado daquelas estranhas figuras. A cerca do meio do livro, descobriu a sua velha inimiga, Sabor, a leoa, e mais adiante viu Histah, a serpente. Aquilo era maravilhoso e absorvente! Nunca antes, nos seus dez anos de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tanto prazer. E tão absorvido estava que não notou a aproximação da noite senão quando a escuridão já não lhe permitia ver. Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.»

Edgar Rice Burroughs, Tarzan dos Macacos, vol I

    Receio que haja quem pense que esta narrativa da descoberta da leitura por um Tarzan de dez anos é pura fantasia. Que isto não é senão ficção. A história é fictícia, sim. Porém, a emoção é verdadeira. Haverá quem pense, que não é de fantasias, mas de estudos científicos e técnicos, que se deve tirar lições. Será assim, será, mas quanto a isso sou um caso perdido. Aprendo imenso com a arte literária. Não é que não aprenda também com esses estudos, mas sei que, muitas vezes, a literatura vai beber a fontes mais profundas e mais perduráveis que as do conhecimento científico.

    Pois... o textinho de Edgar Rice Burroughs acompanha-me na convicção de que ler é cá uma coisa entre mim e as palavras e que, como lá diz, o mais intrigante de tudo eram aqueles desenhinhos, ou seja, as palavras. Penso que o que temos de valorizar num livro são precisamente as palavras e resistir à ideia de as disfarçar por trás de biombos que pensamos mais atrativos.

    Tem de ser, a criança, insisto, a projecionista daquele escuro desenrolar das letras pretas sobre o papel branco que é o livro. Porque isto, por mais que invoquemos coisas paralelas e complementares e lhes chamemos livros e lhes chamemos ler, isto de papel e letras — ou de letras num ecrã, se quiserem, mas isso seria todo um outro debate — é que é o essencial de um livro. Se assim não for, que ninguém espere que um dia ela não olhe Os Maias como uma grande maçada, e não metafórica, que quer evitar. [...]

   (Excerto da palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar.)

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por Maria Almira Soares às 11:14


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