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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 31.10.17

BRUXAS

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E uma velha, com mais traça de bruxa que de taberneira, ergueu, da baixa lareira onde estava acocorada, a mal-azada cabeça e tornou logo a descair no que podia ser sono ou letargo.

— Um pichel, bruxa excomungada! Não ouves?

— Bruxa, bruxa!... Já houve bruxas em Gaia, que era a terra delas e sempre o foi. Hoje não há bruxas que valham onde estão as benzedeiras e rezadeiras que todo lo levam e todo lo comem... Má eira as colha!.. Que bruxas? Hum!

Rosnando assim, vinha a bruxa, arrastando-se nos decrépitos tamancos (leia-se socos no mais alatinado dialeto portuense) e, chegando onde estavam sentados os três, estacou de repente. Com olhos que não pareciam já feitos para o ver da vista exterior, se pôs a contemplá-los numa atitude de indefinível expressão. Disseras de um cadáver que reconhece um vivo... de um esqueleto em cuja caveira se iluminasse de repente o vazio das órbitas descarnadas para vos olhar e saudar.

Os três homens estavam fascinados; a velha parecia ter o poder de fixar sobre todos três, ao mesmo tempo e com igual e não dividido alcance, aqueles olhos tão mortos... E tão vivos. Um sorriso infernal correu mais para um lado e sem desfranzir as asquerosas rugas daquela boca sumida. E a velha disse:

— Com que são hoje as ladainhas de Marcos evangelista? Devem ser. E bem as canta quem as canta. São os cónegos na Sé. Dizei-me vós a mim quem é.

E riu-se, riu-se de bruxa: uma risada tossida e para dentro, destas que fazem arrepiar e estremecer. Daí, com uma pieira rouca e desafinada, se pôs a cantar, ou antes, a regougar estas trovas de má mente e mau esconjuro, que lhe saíam trepidando dos beiços como espuma de feitiços que fervem num lar maldito em caldeirão de três pés, manco, rachado e ao lume de figueira verde.

 

O bispo com sua bispança,

Bem lhe praz fazer folgança,

Mais os padres de Santa Maria,

E mais a raposa que fia.

 

Bem fia a raposa, bem ela fiava,

Rezava a Senhora, rezava e cantava.

Caiu a raposa no laço que armava.

Foi o raposinho

Que aventou o ninho.

 

Entraram os lobos... Eles hão de entrar

Oh, se hão de entrar!

E o bispo, a raposa e o seu raposinho,

Tudo há de dançar.

Dançar, dançar, meu São Gonçalinho!

Bebei do meu vinho.

 

E com uns saltos trôpegos como de dança de entrevados, a velha bailava em cadência com o seu arrepiado cantar. Parou de repente, fitou os olhos no mancebo e, soltando uma longa gargalhada infernal, virou-lhe as costas. Arrastando, arrastando. Foi buscar um bom pichel de meia canada, encheu-o de vinho, e voltou a pôr-lho sobre a mesa. Os três pasmavam e não diziam palavra, ainda fascinados do estranho olhar, do mais estranho cantar e das arrastadas evoluções da dança da bruxa. Ela tornou para o seu canto na lareira, acocorou-se e descaiu a cabeça no mesmo letargo ou sonolência de que tão extraordinariamente despertara.

— A que má cova de Satanás nos trouxestes, mancebo? – disse um dos três por fim.

— Peçonha terá este vinho, por mais que me digam.

 

 

 

 

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por Maria Almira Soares às 14:38

Segunda-feira, 23.10.17

RELER UMA ENTREVISTA

 

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ENTREVISTAS - Escritores

Quinta, 11 Março 2010

 

Maria Almira Soares: Plano Nacional de Leitura está a criar condições de acesso aos livros.

 
 

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Maria Almira Soares é licenciada em Filologia Clássica e pós-graduada em Educação e Leitura. Sendo professora de Português, Literatura Portuguesa e Latim, desenvolveu actividades de promoção de leitura na Biblioteca da Escola Secundária José Gomes Ferreira. Actualmente coordena a comunidade de leitores LERDOCELER. No domínio da língua e literatura portuguesas, publicou Como Fazer um Resumo, Para uma leitura de Mensagem e Para uma leitura de Folhas Caídas e, em co-autoria, Saber Escrever Saber Falar e Saber Escrever uma Tese. Publicou ainda os ensaios: Memorial do Convento - Um Modo de Narrar; Frei Luís de Sousa - Um Drama Psicológico; Ensinar-Reflexões sobre a Prática Docente e Como Motivar para a Leitura. É autora do conto infantil A Revolta das Frases. Foi distinguida com os seguintes prémios: Prémio de Revelação da APE/2003 - Literatura para a Infância e a Juventude para: A Revolta das Frases; menção honrosa, no Prémio Vergílio Ferreira – Ensaio Literário/2004 da Câmara Municipal de Sintra para: As Heteroleituras de Fernando Pessoa; Prémio Vergílio Ferreira - Ensaio/2010 da Câmara Municipal de Gouveia para: Vergílio Ferreira - O Excesso da Arte num Professor por Defeito.

 

Livros & Leituras – Como reagiu ao facto de ganhar o Prémio Vergílio Ferreira - Ensaio/2010 da C. M. de Gouveia?

Maria Almira Soares – Foi a primeira vez que concorri ao «Prémio Vergílio Ferreira» do Município de Gouveia. Sabia da sua existência, como parte da minha atenção generalizada às coisas da cultura, nomeadamente da literatura. Este ano, porém, aconteceu que o lançamento do Prémio ocorreu numa altura em que eu estava a concluir a escrita de um ensaio, precisamente sobre Vergílio Ferreira. Assim, como que naturalmente, resolvi concorrer. O meu interesse por Vergílio Ferreira é antigo, profundo e sempre determinante da vontade de saber. Sempre li Vergílio Ferreira como detentor de uma complexidade mobilizadora da emoção e desafiadora do conhecimento. Todavia, verificava que a grande massa do interesse suscitado se polarizava em torno do Escritor, deixando na obscuridade o Professor, talvez como se fosse um tema menor. De outro modo, em mim, a leitura de Vergílio Ferreira provocava um fascínio crescente pela sua identidade docente, pela relação entre o Escritor e o Professor e sobretudo pelas relações alegadamente difíceis entre a Arte e a Escola. E, sendo assim, este meu ensaio atribui importância à Escola e à Docência, enquanto elementos significativos para o conhecimento de Vergílio Ferreira. O seu título, O Excesso da Arte num Professor por Defeito, pretende significar o cerne da minha ideia sobre a relação entre o criador literário e o professor. Vergílio Ferreira assume a Arte como transcendência e consciencializa a docência como perda, mas… — e aqui reside a resolução positiva e harmónica desta equação — a Arte transborda para a Aula e faz com que a docência se una à totalidade do homem, criador literário e professor que foi. O meu ensaio, agora premiado, resulta de um estudo profundo realizado com muito gosto. Assim, sinto uma grande satisfação por ter havido quem o avaliasse positivamente. O reconhecimento do meu trabalho dá-me alegria. Do prémio, faz parte a publicação, facto que considero importante por permitir a comunicação com os possíveis leitores e, desse modo, constituir um contributo para o conhecimento de Vergílio Ferreira. 

L&L – O ensaio é a sua eleição?

MAS – Sou uma leitora incansável mas criteriosa e crítica. Daí a minha propensão para a escrita de ensaio sobre obras literárias mas também sobre temas relacionados com a Escola e a Leitura. Escrever ensaio é pensar sobre o que nos fascina ou nos preocupa. Isto não quer dizer que não pratique e não goste de outro tipo de escrita: a ficção.

L&L – Qual foi o livro que gostou mais de escrever?

MAS – Gosto de escrever. De estar a escrever. Do processo da escrita. Seja qual for o projecto de momento.

L&L – Porquê?

MAS – O processo da escrita é um acto de descoberta difícil mas emocionante. Estar envolvida nessa procura do sentido que as palavras prometem e saber reconhecê-lo é uma coisa que gosto muito de fazer.

L&L – Qual o livro que vai merecer um próximo ensaio?

MAS – Gostaria de escrever sobre Hélder Macedo… Vamos ver…

L&L – Por que motivo resolve passar do ensaio para o conto infantil?

MAS – Não se trata de «resolver passar». Às vezes, as palavras que estou a escrever conduzem-me, com a minha conivência, para o chamado «conto infantil». Gosto de escrever histórias para crianças. São histórias movidas pela força ilimitada da fantasia e, contudo, dão voz a dimensões fundamentais da vida. São uma forma de corresponder à avidez das crianças, de lhes alimentar a curiosidade leitora, de lhes abrir horizontes. Tenho várias histórias para crianças escritas e tenho esperança de as ver publicadas. Gostaria muito que assim fosse.

L&L – Já escreve segundo as regras do Acordo Ortográfico?

MAS – Ainda não.

L&L – Que opinião tem destes jovens escritores que vendem milhares de livros em poucos dias?

MAS – A minha opinião sobre um livro decorre da leitura que faço desse livro. E, daí, da sua própria valia enquanto criação literária. Não da idade do seu autor ou da sua fortuna comercial.

L&L – Qual o livro que está a ler neste momento?

MAS – Neste momento, estou, principalmente, a reler os Sinais de Fogo de Jorge de Sena, que serão objecto de discussão na próxima tertúlia da comunidade de leitores LERDOCELER, que coordeno. Em volta, há sempre outros passos por leituras várias… 

L&L – Acha que se consegue motivar um adulto para a leitura mesmo quando isso não aconteceu em criança?

MAS – O encontro feliz com um livro pode acontecer em qualquer idade e ser o momento fundador de uma identidade leitora.

L&L – De que modo?

MAS – Eu penso que a criação de um leitor não decorre tanto do forçar, do «impingir» livros, do condicionar pelos livros, mas do desenvolver de um certo imaginário, de um certo gosto, que, depois, encontra correspondência, encontra alimento na leitura. Eu acredito que é sobretudo isso que faz os leitores, o encontro desse tal imaginário, desse tal capital simbólico que todos temos, com as palavras de um livro. São frequentes, fáceis, óbvios, tais encontros? Não. A leitura chama a nossa subjectividade, mas também traz o mundo. E, portanto, a leitura, este processo de, enquanto nos vemos, vermos também outros mundos, é uma forma extraordinária da nossa construção, da nossa constituição como seres humanos, e é, por isso, importantíssima. Há, nos discursos sobre a leitura, uma palavra que eu considero perigosa e que é a palavra prazer. O prazer é uma coisa evanescente, é uma coisa volátil, é uma coisa que não tem um horizonte de construção, pelo contrário, até pode ser uma coisa muito intensa, mas que desgasta, que dá ressaca. Completamente diferente da leitura.

L&L – Que opinião tem do Plano Nacional de Leitura?

MAS – Sobre o PNL, penso que está a concretizar, no terreno, aquilo que é tema de tantas vozes e discursos: a importância de ler. Só se é leitor depois de ter lido. E, para ler, é necessário ter acesso aos livros, ao tal encontro feliz com o livro. O PNL está a criar as condições desse acesso e dessa efectivação da leitura.

L&L – Quais são os seus projectos futuros?

MAS – Trabalhar sempre no âmbito da escrita e da leitura

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por Maria Almira Soares às 10:52

Domingo, 22.10.17

A PRIMEIRA METADE DO MUNDO

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     Quando a Hilda desceu do comboio, na estação da sua terra, sentiu uma redonda carícia a explodir mansamente contra a pele. Tratava-se de uma espécie de interjeição natural que, embora gramaticalmente indescritível, se projetou no pedaço de frase exclamativa «Ora, cá estou eu na minha terra!» que ela então disse, enquanto sentia uma vibração feita de cheiros, vapores, sons, fumos, suspiros, gritos, cores, luzes, ventanias e chuvadas, sóis, vozearias e segredos, noites, rezas, gargalhadas, silêncios, olhares. Nenhum corpo esquece jamais o sopro em que embate ao soltar-se da escuridão de um outro corpo. Aí, nesse momento, começa a memória. Por isso, a Hilda dizia a minha terra, quando falava daquela cidadezinha meio-adormecida perto do mar.

     Saída do comboio e dados os primeiros passos, a Hilda sabia que não iria reencontrar a casa e que todos estavam mortos. Todos estavam já mortos e a casa não aguentara a viuvez e morrera também. Ninguém. Nenhum lugar. E, no entanto, ela voltara como quem se presta a levar um encontrão que a detivesse a pensar histórias, a sair do tempo, atada pela mudez. Nenhum interlocutor. Todos os que alguma coisa souberam da primeira metade do seu mundo estavam mortos. Muito antes de sequer sonhar em vir a ser instruída nas coisas da literatura, de sequer saber as letras com que a literatura se escreve, a Hilda já sabia que, à maneira homérica, nascera in medias res. O que era novo ali não era o ela assim ter nascido, como toda a gente aliás. O que era novo era ela tê-lo sabido logo. A Hilda, pequenina, soubera e sentira que, quando nasceu, metade do mundo, metade do seu mundo, já estava pronta e tinha-se desempenhado bem sem ela. A cada canto e esquina dos caminhos da sua pequena vida, ela ia confirmando que viera para um pequeno mundo já razoavelmente solucionado, onde as pessoas à sua volta sabiam onde ir e o que fazer e dar as respostas certas.

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por Maria Almira Soares às 11:07

Quinta-feira, 19.10.17

LITERATURA ENVERGONHADA

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 ... Entretanto, timoratos do abandono à literatura, os criadores retraem-se. Náufragos em pífias ondulações, por incapazes de suportarem o menoscabo que a literatura pura e dura mereceria aos donos da visibilidade dos livros e da possibilidade da sua leitura, preferem deixar de lado a genuína invenção literária e fazem vantajosas e notórias parcerias com sólidas e emergentes matérias factuais. Descreem da esperança de leitura, ou sequer da esperança de vida, de um  fruto imaginário. É que não estão cá para criarem objetos de desdém! E a literatura fica cada vez mais implícita. A criação literária retira-se para lugares de nevoeiro. Mal se vê. Às vezes, deseja-se. Alguns, poucos, desejam-na.

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por Maria Almira Soares às 12:01

Quarta-feira, 18.10.17

SUBIR O TEMPO À PROCURA DA INFÂNCIA é o meu conto

 

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Lançamento

 

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por Maria Almira Soares às 10:19

Domingo, 08.10.17

ANTÓNIO VIEIRA

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«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro dia, daí uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis, não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.»
 
 
 

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por Maria Almira Soares às 12:06

Terça-feira, 03.10.17

NUNO E OS SEUS IRMÃOS

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 A comunidade de leitores LERDOCELER vai conversar sobre GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS de João de Melo no próximo dia dez de outubro.

 

A PEGADA POLÍTICA no romance GENTE FELIZ com LÁGRIMAS

     Se «a política numa obra literária é», como escreveu Stendhal, «um tiro de pistola num concerto», o estampido mais atroador em Gente Feliz com Lágrimas é a pisadela funda do vil monstro salazarista sobre uma família/sociedade ferozmente patriarcal e miseravelmente autoritária. No tabuleiro familiar e social do salazarismo, o medo e a pobreza são as principais fontes da energia que move as pedras do jogo permitido. O jogo da vida joga-se sob o medo cuja figura fundamental é, neste romance, o pai, incansável gerador de violência, de subserviência, de mentira, de conformismo, de ignorância, de sofrimento.

     A figura do pai violentamente autoritário — cujo comportamento é bruto, alucinado, eticamente cego — embora seja tão absurda como um ser humano sem consciência, naquele tempo-lugar é aceite como uma criptoméria na paisagem. Ergue-se e enraíza-se como se fosse parte da flora local e é moralmente muda como os animais que engordam nas pastagens. No quadro familiar patriarcal, é-lhe permitida uma força, sobre a vida e sobre a morte, próxima da selvajaria natural. O salazarismo também é isto. Ali, na Achadinha crismada Rosário, pelas primeiras décadas da segunda metade do século XX, estamos num dos territórios mais densamente cegos da cegueira do negrume salazarista. Ali, o desequilíbrio entre autoritarismo e resistência pende, de modo quase-absoluto, para o lado da submissão ao dictat sem escapatória da pobreza, da ignorância, da violência, do silêncio, da servidão, da quase-animalidade.

   Sobra o sonho, os sonhos.

   O sonho próprio da condição humana e a condição humana sempre cercada pela conjuntura política. A Achadinha/Rosário, Nordeste, São Miguel, Açores, sofre um duplo cerco: o dos longos tentáculos da ideologia e do regime político e o do mar. O sonho tem barcos, vê barcos, fantasia barcos, mas as miseráveis ideias que estruturam o poder, os vários patamares, círculos, espirais, do poder, não lhos permitem. Em vez de barcos, de viagem, de liberdade, de afirmação, de realização, a vida, os dias e as noites, os anos, as horas, o quotidiano, estão cheios de terra, de floresta, de animais, campo, trabalho, gente, lágrimas, gritos, sustos, mortes, nascimentos, doenças, imundície.

   Só através da perversão que embrulha a ânsia do saber livre na capa do seminário e do convento e a necessidade de afirmação própria na violência da guerra, serão possíveis os sonhos, será possível chegar aos barcos, entrar nos barcos, fugir do medo e da violenta miséria. Só dentro da nuvem das trágicas e insolúveis contradições da emigração, a ânsia de acumulação de bens materiais, o desejo de aceder ao progresso material se concretiza em vida.

   Nunca a felicidade sem lágrimas.

   A perversão e a tragédia matriciais nunca mais se afastam das trajetórias das personagens. Da infância, elas são projetadas para os quatro cantos da narrativa: o da problemática literária, o da guerra colonial, o da vida emigrada, o das relações amorosas e familiares. Em nenhum desses cantos tristes, existe a alegria de uma tranquilidade feliz. O escritor amargo, o jovem soldado desenganado, os irmãos pesados do luto da terra-longe e os pais vencidos pela doença-morte, o par destruído pelos duelos do amor, são uma espécie de feixe de destinos gizados lá na Achadinha do Rosário, onde a criança se levantava de noite para mergulhar no estrume das vacas, onde a jovem se deixava empurrar, brutamente tocada como um bicho, de tarefa em tarefa doméstica, onde a mãe era um sítio donde iam nascendo os irmãos. Radical ausência da ternura. Radical presença do sofrimento que, mesmo depois da tormentosa e duvidosa realização dos sonhos, faz da felicidade um remorso. Muito mais difícil que depor as figuras e as estruturas do poder autoritário nos confins perdidos de um país martirizado, é reerguer a liberdade, matar o medo e a cegueira, soltar a felicidade sem lágrimas, lá no íntimo fundo de gente cuja infância se encolheu sob a batida da dor.

De um país triste, avassalado de impotências e sofrimentos vários, Nuno e os seus irmãos guardam para sempre o conhecimento profundo das lágrimas.

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por Maria Almira Soares às 11:21


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