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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Domingo, 26.11.17

SARAMAGO

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    Os grandes romances de Saramago, como o Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis, não são rios, são maremotos provocados pelo brusco desajuste das placas em que assenta o pensamento comummente aceite. Subjacente, no seu magma profundo, é acionada uma ideia que não busca simplesmente uma solução. Autoalimentando-se, crescendo, inventa uma nova geografia. Uma resposta direta, bombástica, definitiva, transformá-la-ia num debate, não num romance. Que dispositivo é, então, esse que transforma uma grande ideia num grande romance? Que dinâmica é essa que transforma energia mental em energia literária? Que corrente capta essa ideia e a distende, conduz, temporiza, disjunta? Que processo a vai fazendo avançar até que se esgote e pare?

A mais profunda dinâmica coesiva do romance saramaguiano não pertence à linearidade da lógica temporal. O E se...?, profundo e primeiro, circula numa rede nervural complexa, boa condutora de processos de atração/repulsão, contacto, que se desmultiplicam numa sucessão de novos E se...? geradores de novos impulsos. O seu híbrido genoma, oratório e narrativo, configura uma textualização de tipo vieiriano, adoçada por um certo lirismo desviante da pura racionalidade e estimulante da defetível e cúmplice condição humana. O texto dos romances de Saramago é nervurado por trilhos onde vai correndo a seiva da sua ideia original que os mantém vivos e coerentes, literários. A arte romanesca de Saramago é a de saber vigiar, manter, adequar, a pulsação dessa seiva literária como se fosse coisa natural.

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por Maria Almira Soares às 20:24

Sábado, 25.11.17

HÁBITOS VOCABULARES ANTIGOS

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   Quando eu era criança, na minha terra, que também era ainda mais pequena do que é hoje tal qual como eu, muitas das coisas que havia a dizer, sobretudo quando se falava de doenças, mas também de outras coisas da vida, diziam-se com palavras que se foram. Não se dizia um cancro, dizia-se uma «enfermidade», fazendo vénia à doença: ... fulano tem uma enfermidade; não se dizia um AVC, dizia-se um «benzinho», trocando as voltas à tristeza: ... fulana teve um benzinho; não se dizia fulana está acamada, mas «fulana está entrevada», convocando as trevas para situação tão penosa. Nunca cheguei a saber se, quando diziam que era preciso marear/mariar a vida, o diziam com i e, então, seria fazer como as marias que seriam umas grandes fura-vidas, ou se com e e, então, seria como governar bem o barco da vida. Dizia-se canté para o espanto distanciado e estou pra minha vida para o espanto puro. A criação eram os animais de capoeira e a lavagem o comer dos porcos. O pequeno-almoço chamava-se almoço, o almoço, jantar e o jantar, ceia. O folhetim da rádio era o romance. Dizia-se: — Cala-te que está a dar o romance. Havia as donas, as senhoras e as ti’: a dona Raquelinha, a senhora Grácia, a ti’ Maria. À professora primária, chamávamos Minha senhora e, à casa de banho da escola, casinha: Minha senhora, posso ir à casinha? Quando o dia escurecia, o primeiro que acendia a luz em casa dizia sempre: — Boa noite!

 

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por Maria Almira Soares às 17:26

Quarta-feira, 22.11.17

EU FUI A ÁFRICA DE LIVRO

No próximo dia 28, na comunidade de leitores LERDOCELER, o livro bem presente vai ser este:

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   Há quem vá de avião. Eu fui de livro. E foi Chimamanda Ngozi Adichie quem me ofereceu a passagem. Fui de livro e ir de livro não é só viajar, é estar. Durante mais de setecentas páginas estive em África. Estive em África, mas não apenas no lugar, nesse lugar do mundo a que chamam África. Não estive apenas nos lugares, estive em pessoas, em desejos, em emoções, em pensamentos, em gestos, em momentos e circunstâncias. Meio Sol Amarelo levou-me à Nigéria e, de lá, a ver o mundo. Um país é sempre também quem o olha de fora, quem o ignora de fora, quem o confunde de fora. E quem dele sai para o mundo. Levou-me a ver o mundo, porque as pessoas que são um país, neste caso a Nigéria, são um mundo. Andei e sofri e rejubilei com Kainene, com Olanna, com Ugwu, com Odenigbo, com Richard... Mas, tenho de confessar, andei sobretudo com Ugwu. E sinto-me grata pela sua companhia. E sinto-me grata a Chimamanda por ter criado este meu companheiro de viagem-leitura. Andar com ele foi andar com a ternura, com a inocência, com o sonho, com o amor, com a fraqueza, com toda a gama dos sentimentos mais humanos. Ugwu é, entre os habitantes da metade de sol que ilumina este livro, uma espécie de força mansa que os mantém. Na alegria e na tragédia. Do seu lugar, no seu lugar, aparentemente subalterno, Ugwu é, para todos, direta ou indiretamente, uma referência de bravia pureza e de ânsia de bem. Agradeço a Chimamanda ter escrito este livro e, sobretudo, ter criado este rapazinho impertinente e macio.

   Eu nunca fui a África. Mas... Depois deste livro, fico na dúvida. Há uma maneira, a da leitura, de chegar aos povos, aos problemas, à História, à morte e à vida dos diferentes lugares do mundo, quando o livro e o que nele vai escrito, se abre para nos deixar passar, para nos deixar entrar. De uma maneira simples que é, afinal, aquela que melhor nos conta a complexidade.

   Um livro profundamente humanista.

   Quando Olanna chega a Kano, a casa da tia Ifeka, eu chego com ela. Na distância de todas as áfricas — humanas, geográficas, históricas, antropológicas, sociológicas, linguísticas, que sei eu — e na proximidade de todos os lugares do mundo onde há a ternura que acolhe e festeja, eu chego também. Eu sinto-me simultaneamente nas palavras de uma Chimamanda, de um António Nobre, de um Júlio Dinis... porque comigo, ao ler, chega também o Henriquinho a casa da tia Doroteia. Quando ouço a tia Ifeka a dizer «— A nossa Olanna!» ouço também a avó do poema de Nobre: «— Qu’é dos teus olhos, dos teus braços,/Valha-me Deus! Como ele vem!» Numa realidade muito diferente, a emoção é a mesma, a qualidade do Humano é a mesma. E saber escrevê-la uma vitória.

Eu nunca fui a África. Eu já fui a África. Nomeadamente à Nigéria.

 

Maria Almira Soares

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por Maria Almira Soares às 13:35

Segunda-feira, 20.11.17

A LEITURA FICOU GUARDADA NA ARCA NOSTÁLGICA ONDE GUARDARAM OS BRINQUEDOS

 

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      Entristece-me verificar, durante encontros que tenho tido com jovens, em escolas, a complacência, a aceitação de braços caídos de inevitabilidade, perante a realidade de muitos e muitos, quase todos, desses que foram crianças leitoras muito animadas senão entusiasmadas com a leitura, se revelarem quase-fisiologicamente incapazes de ler... Os Maias. E tento articular entre si estas duas realidades exemplificativas: gostar de ler em criança e ser, em jovem, incapaz de ler Os Maias. E saltam-me algumas perguntas a que procuro responder: — Que gostar era esse? — Que incapacidade é esta?

Sou, então, tentada a encontrar respostas como estas: Ler foi para eles apenas uma coisa da infância. Naturalmente, crescer foi, neles, deixar para trás as coisas da infância, entre as quais, esses livros, lindos, em que quase tudo era desenho, objetos nostálgicos de que se lembram com um sorriso, como doutros brinquedos que tiveram, e que, para eles, nada têm a ver com a vontade, a curiosidade, que poderiam ter, de ler um livro como... Os Maias. E que leitores triunfantes muitos deles foram na infância! Os triunfos imediatos esgotam-se em si mesmos e tornam-se, talvez, mais coisa de registos estatísticos do que de ganhos humanísticos.

Conheço muitos casos destes. Fui e vou conhecendo. Pessoas que, na infância leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos.

Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo.

Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro.

Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...

Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro.

Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis.

   Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até, a inseri-los no seio de atividades de leitura.

   Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós.

 

Maria Almira Soares

(Extratos da palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar, em 30 de junho de 2017.)

 

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por Maria Almira Soares às 20:27

Sexta-feira, 17.11.17

LER, ESSA COISA SIMPLES E COMPLICADA

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[...] Quando a Alice foi atrás do coelho aquilo ainda não era o país das maravilhas; aquilo era só um buraco na terra sem graça nenhuma. Ninguém o tinha pintado de muitas cores nem polido com muito brilho para atrair a Alice. Ninguém fizera dele um irresistível motivo de atração. Ninguém? E deixamos de fora o imaginário de Alice? O imaginário de uma criança que viu um coelho tirar um relógio do bolso e o ouviu falar. As crianças, — as crianças? pensando melhor, as pessoas em geral — parece-me, andam é a ser demasiado convencidas a só valorizarem o gosto do que é, exterior e imediatamente, colorido, movimentado, sonoro, sensorialmente agitado e feitas esquecer de que têm mundos por dentro de si, por dentro das suas cabeças.

Somos nós, os leitores, somos nós com o nosso imaginário que transformamos os livros em histórias. Ao deixar-me escorregar, ao deixar-me cair pelas palavras de um livro acima ou abaixo, simultaneamente eu experimento acionar um mundo paralelo. Sou eu o “projecionista” daquela fita contínua de palavras e simultaneamente o seu espectador e, até, participante, pois nelas me projeto. E com uma liberdade insuperável [...] Valorizamos muito o livro, achamos que, nesta história da leitura, o livro é a personagem mais importante — e, sim, está muito bem, os livros são parte fundamental desta história — mas é muito importante também, é, acima de tudo, importante, valorizar o leitor, fazer com que cada um aprenda a ser leitor, ou seja, esse tal “projecionista”.

Para que a leitura seja, nelas, uma coisa perdurável, têm de ter sido elas, as crianças, a experimentarem, tem de ter sido cada uma delas, com o seu imaginário, a detentora desse livre poder de transformar as letras sobre papel — não esquecer nunca as letras sobre papel — em gente, em cenas, em sonhos, em gargalhadas, em sustos, em histórias, em perguntas, em coisas que nem souberam bem nomear, mas cuja descoberta deixou inscrição profunda. Mais do que inventar essa plétora de estratégias motivadoras, temos de insistir em fazer essa coisa simples e complicada, que tantas vezes também fazemos, que é ler. Ler com eles livros escolhidos com um critério de que não esteja ausente a ideia de que estamos a semear para o futuro. Ler com eles e, pressentindo o momento certo, passarem a serem eles a ler connosco, passarem a serem eles a ler sozinhos. Acompanhá-los de perto e conhecê-los como leitores ou como futuros leitores e dar-lhes o momento de se tornarem leitores.

Isto, que é ler, tem de ser, num dado momento, uma descoberta pessoal e solitária, um encontro íntimo entre alguém e as palavras de um livro, sem mediações e interposições. Este prazer de ler tem que ser descoberto como um prazer solitário, que se multiplica na posterior partilha, sim, mas que para que fique verdadeiramente entranhado, tem de resultar de ser eu a transformar um livro em história. Tenho de aprender, eu, a projetar-me nas palavras e das palavras, fabricando coisas com o meu imaginário a partir das palavras que aprendi a descodificar. Ler é muita coisa e resulta de muitas capacidades e competências, sabemos, mas ler é, sobretudo, um ato de imaginação, um ponto de encontro entre aquilo que um livro permite à minha imaginação e aquilo que a minha imaginação permite a um livro. Um livro começa por ser história no imaginário do seu autor, depois é só papel pintado com tinta numa livraria, numa biblioteca, e eu, leitora, eu com o meu imaginário faço-o de novo ser história nem sempre totalmente coincidente com a do autor, diga-se, e é essa a minha eufórica façanha. Não posso apenas ficar sentada no lugar que me deram a assistir ao que outros com os seus imaginários projetaram do livro para me servir, para me aliciar. [...]

 

Maria Almira Soares

(Extratos da palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar, em 30 de junho de 2017.)

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por Maria Almira Soares às 18:22

Quinta-feira, 16.11.17

COISAS QUE HÁ DENTRO DESTE LIVRO

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— Ó avô, tu és fi-ló-so-fo?

O Nuno articulava muito bem e vagarosamente as palavras difíceis. As outras, dizia-as a correr.

— Sou.

— E o Mendes?

— O Mendes é linguista.

— Lin-gu-is-ta!?

— Sim, gosta de estudar as palavras.

— E tu gostas de estudar o quê?

Iam a pé a casa do Mendes que não morava muito longe. Iam andando e conversando. De momento, José Vicente não estava descontente com o teor da conversa. Falavam de livros. O Nuno, quando chegara, trazia um livro, um desses álbuns de divulgação histórica para crianças sobre a biblioteca de Alexandria.

— Aquele livro que tu trazias…

— O da biblioteca de Alexandria?

— Sim, tu…

— Outro dia, vi na Net coisas fantásticas sobre a biblioteca de Alexandria.

— Ah, na Net…

— Tu não gostas da Internet?

— Sim, gosto, mas… Então, tu não sabes o que é um filósofo?

— Pois não.

— Um filósofo é alguém que gosta muito de saber.

— Ó avô, há mais filósofos como tu?

— Há, claro que há, e já há muito, muito tempo. Olha, no tempo da biblioteca de Alexandria, já havia filósofos. E muito antes, até.

— Não sei o nome de nenhum filósofo, sem ser o teu.

— Sabes nomes de quê?

— De jogadores de futebol, de cientistas, de músicos… Vá lá, diz lá o nome de um filósofo.

— Olha, por exemplo, Platão.

— Platão! Que nome tão esquisito!

— Era grego.

— Grego?!

— Sim e, na verdade, este nem era bem o nome dele.

— Então?

— Era uma alcunha.

— Alcunha!?

— Tu sabes uma coisa, Nuno, quando eu era novo, um pouco mais velho do que tu, puseram-me a alcunha de Platão.

— Ah, nickname.

— Isso. Esse filósofo grego chamava-se Arístocles, mas como tinha os ombros largos, puseram-lhe a alcunha de Platão. E, a mim, quando eu andava no liceu, os meus amigos achavam que eu sabia muito de Filosofia e puseram-me a alcunha de Platão.

— O que é liceu?

— Liceu é escola, mas já não se usa.

— Mas, ó avô, tu não tens os ombros largos…

— Pois não.

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por Maria Almira Soares às 12:51

Domingo, 12.11.17

ANTHERO DO QUENTAL

 

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«Mas, se já alguma hora da historia impoz aos que fallam alto entre os povos obrigações de seriedade, de profunda abnegação, de sacrificio do eu ás tristezas e miserias da humanidade, de trabalho e silencioso pensamento; se alguma hora lhes mandou serem graves, puros, crentes, é certamente esta do dia de hoje, da edade de transformação dolorosa, de scepticismo, de abaixamento moral, de descrença, que é o nosso seculo. Refundem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idêas. Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O futuro não apparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem, menos dispostas ao sacrifício e ás abnegações da consciencia. Ha toda uma humanidade em dissolução, de que é preciso extrahir uma humanidade viva, sã, crente e formosa.

Para este grande trabalho é que se querem os grandes homens. Sahirão esses heroes das academias litterarias? das arcadias? das sinecuras opulentas? dos corrilhos do elogio-mutuo? Sahirão as aguias das capoeiras?»

in BOM-SENSO E BOM-GOSTO

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por Maria Almira Soares às 11:01

Sexta-feira, 10.11.17

CAMILO sem tir-te nem guar-te

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— Ora, meu fidalgo — continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas — há-se-me desculpar por ter vindo assim em mangas de camisa, mas não dei com a jaqueta.

— Está muito bem, senhor João — atalhou o académico.

— Pois, senhor, eu devo um favor ao seu pai, e um favor grande. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, por causa de um coice que um cavalo de um almocreve deu numa égua, que eu estava a ferrar e, em tão boa hora foi, que lhe partiu a perna por aqui, mais ou menos.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fracturada a da égua, e continuou:

— Como tinha ali à mão o martelo, não me contive e preguei com ele na cabeça do cavalo, que foi logo para terra. O recoveiro de Garção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e disparou-mo logo, sem mais tir-te nem guar-te. «Ó alma danada! — disse-lhe eu — pois tu não vês que o teu cavalo aleijou esta égua, que custou vinte peças ao seu dono, e que eu agora tenho de pagar, e tu queres dar-me um tiro por eu te atordoar o cavalo!?»

— E o tiro acertou-lhe? — atalhou Simão.

— Acertou: mas saberá vossa senhoria que me não matou; acertou-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E então eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, trago uma clavina e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano em que o paizinho de vossa senhoria foi nomeado corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim e todos me diziam que eu ia parar à forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção para com as sete dores da nossa Senhora. Uma vez que ele ia a passar com a família para a missa, disse-lhe eu: «Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença, para eu explicar a minha culpa a vossa senhoria.» O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou apontar o meu nome. Ao outro dia fui chamado à presença do senhor corregedor e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. O seu pai ouviu-me, e disse-me: «Vai-te embora, que eu farei o que puder.» O caso é, meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara onde o seu paizinho põe os pés!?

 

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por Maria Almira Soares às 11:41

Sábado, 04.11.17

A REVOLTA DAS FRASES

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    Aquando da publicação de A Revolta das Frases, Manuela Maldonado escreveu na página do CRILIJ — Centro de recursos e investigação sobre literatura para a infância e juventude:

      «Da combinação de um menino imaginativo, o João, com o uso cada vez mais frequente do chamado “código restrito”, isto é, a redução de palavras e frases a meia dúzia de expressões, nem sempre em bom português, nasceu a ideia originalíssima deste livro. O local privilegiado é uma escola, com um director, uma professora de Português, a Dona Emília, muitos alunos, muitos docentes e funcionários, onde surge um mistério intrincado para decifrar. O João, numa das suas deambulações interiores, frequentíssimas, ao passar a mão, distraidamente por debaixo da carteira pica-se e o seu dedo começa a emitir uma frase luminosa sobre qualquer superfície: “Deixem-me em paz!”. E é uma frase muito bem construída e com uma linda caligrafia. Atónito, o garoto não sabe explicar o sucedido. Apesar de querer guardar segredo, a frase irrompe em qualquer momento, em qualquer local. Na escola vai-se sabendo do fenómeno e o garoto é acusado de usar uma tecnologia de ponta!... Da conversa a que assistiu entre o director da escola e a professora de português, João ficou sabedor que as frases escritas nos tampos das mesas pelos alunos se infiltravam no interior da madeira, desaparecendo, até ao dia em que o João se picou. Posteriormente soube-se que a frase fora escrita por alguém em determinada sala, estando o tampo sem vestígios. Descoberto o autor, o Luís, foi acareado com o João, outro arguido, dado ocuparem o mesmo lugar em turmas diferentes. No momento da acareação, a frase ressurge no tampo e fala através da vibração do ar acima da mesa. Identifica-se como representante da Confederação das Frases Portuguesas, explicando a escolha do João e do Luís para ter visibilidade. É pedida ao director a redacção de uma convocatória para uma reunião da Comunidade no Auditório para explicações posteriores. O director pensando que tudo aquilo era um delírio, redigiu, contudo a convocatória, nos termos convencionados. A ordem de trabalhos era: Palavras, Frases, Escrita e problemas afins. Ao desenvolver o tema, pela vibração do ar, com um microfone em cima da secretária, a representante da Confederação explicou a revolta das frases devido ao seu mau uso, tanto mais que são sujeitas a uma grande exposição. Assim, resolveram tornar-se invisíveis. Claro que o entendimento da sessão passou por vários níveis: a maioria dos professores louvou o director pela sessão, perguntando, todavia, que tecnologia usou para a comunicação e qual o “spray” para o desaparecimento das frases; da parte dos alunos segredou-se que a sessão fora da iniciativa da professora de Português, por causa dos erros.
Nenhum outro acontecimento de monta ocorreu na escola, sobretudo deste teor misterioso, mas no “écran” interior dos grupos da escola, continuava a ouvir-se, em diferido: “sentimo-nos humilhadas e ofendidas”.
De grande alcance pedagógico, não só pelo tema desenvolvido como pela linguagem adoptada, este livro vem corrigir o fraco entendimento de autores de livros para crianças e jovens que insistem em utilizar um código restrito em vez de fazerem aceder os utilizadores da língua ao código alargado juntando, no caso vertente, o imaginário e o real no mundo das Palavras e das Frases.

Ilustrado por Sandra Serra, oriunda do Curso de Design Gráfico do ARCO, dedicada exclusivamente à ilustração infantil, assume-se o azul, expressão da Irrealidade e do sonho, como pano de fundo, ainda que outros tons surjam para explicar sensações como a raiva e a aflição, caso da camisa vermelha do Director. Figurativas, as personagens crianças e adultos diferem, naturalmente, não só nas cores empregadas como, sobretudo, por um traço distintivo corporal: o rosto. É redondo no primeiro caso, sinal de alegria despreocupada, anguloso no segundo pelo desgaste das partidas existenciais.
O texto icónico e o texto escrito interagem de um modo harmonioso.»

                                   A partir dos 10 anos

Manuela Maldonado  

 

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por Maria Almira Soares às 14:10


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