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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
— Ora, meu fidalgo — continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas — há-se-me desculpar por ter vindo assim em mangas de camisa, mas não dei com a jaqueta.
— Está muito bem, senhor João — atalhou o académico.
— Pois, senhor, eu devo um favor ao seu pai, e um favor grande. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, por causa de um coice que um cavalo de um almocreve deu numa égua, que eu estava a ferrar e, em tão boa hora foi, que lhe partiu a perna por aqui, mais ou menos.
João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fracturada a da égua, e continuou:
— Como tinha ali à mão o martelo, não me contive e preguei com ele na cabeça do cavalo, que foi logo para terra. O recoveiro de Garção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e disparou-mo logo, sem mais tir-te nem guar-te. «Ó alma danada! — disse-lhe eu — pois tu não vês que o teu cavalo aleijou esta égua, que custou vinte peças ao seu dono, e que eu agora tenho de pagar, e tu queres dar-me um tiro por eu te atordoar o cavalo!?»
— E o tiro acertou-lhe? — atalhou Simão.
— Acertou: mas saberá vossa senhoria que me não matou; acertou-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E então eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, trago uma clavina e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano em que o paizinho de vossa senhoria foi nomeado corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim e todos me diziam que eu ia parar à forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção para com as sete dores da nossa Senhora. Uma vez que ele ia a passar com a família para a missa, disse-lhe eu: «Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença, para eu explicar a minha culpa a vossa senhoria.» O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou apontar o meu nome. Ao outro dia fui chamado à presença do senhor corregedor e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. O seu pai ouviu-me, e disse-me: «Vai-te embora, que eu farei o que puder.» O caso é, meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara onde o seu paizinho põe os pés!?
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