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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O meu conto Subir o tempo à procura da infância está na página 139 da Antologia, editada pelo Centro Mário Cláudio, A Criança Eterna
e começa assim...
José Vicente, o filósofo, andava a sentir-se velho e, para se distrair dessa perturbante sensação, decidira seguir o conselho do Mendes, o seu melhor amigo. Em vez de ficar dias inteiros encafuado em casa a escrever, passara a caldear a sombria intensidade da escrita com frívolos passeios, mais ou menos diários, pelas sossegadas ruas das redondezas do bairro lisboeta onde morava. Não o fazia com grande convicção e os resultados eram efémeros. Acabava o passeio, terminava a distração, voltava a perturbação. Em todo o caso, o filósofo persistia e lá ia deixando que as pequenas curiosidades da vida das ruas lhe desviassem a atenção da irrefutável ameaça que obsessivamente o assaltava: no tempo futuro que viesse a ter, tudo em si se encaminharia, sem paragem nem regresso, para um progressivo fim. Em suma, o filósofo estava, já não à porta de uma idade onde tanto resistira a entrar, mas dentro dela, da velhice, e ninguém estaria em condições de retirar esse peso dos seus ombros já um pouco curvados. Só mesmo o Mendes, sempre lesto em não ficar calado, para, perante o suspiro envelhecido do amigo, não hesitar em passar-lhe a receita: menos sessões de escrita-pensamento-análise de ideias; mais andanças, passeios, distrações de exterior. Conhecia tão bem as ligeirezas do Mendes, o filósofo! Mas deixou-se embarcar no pródigo conselho do amigo que talvez até nem fosse assim tão irrazoável: remexer em problemas insolúveis só os agrava. Esquecer talvez não fosse a pior aspirina para a doença incurável da velhice. Se a vencer não podes, foge dela, da morte. E, de facto, olhar o imparável filme das ruas, sem propósito nem objetivo, embalava-o, adormecia-o. Precisava de berço, de inconsciência, de, pelo menos durante os seus passeios, ser a criança que olha o mundo e se espanta.
Pelo meio, é assim...
Iam a pé a casa do Mendes que não morava muito longe. Iam andando e conversando. De momento, José Vicente não estava descontente com o teor da conversa. Falavam de livros. O Nuno, quando chegara, trazia um livro, um desses álbuns de divulgação histórica para crianças sobre a biblioteca de Alexandria.
— Aquele livro que tu trazias…
— O da biblioteca de Alexandria?
— Sim, tu…
— Outro dia, vi na Net coisas fantásticas sobre a biblioteca de Alexandria.
— Ah, na Net…
— Tu não gostas da Internet?
— Sim, gosto, mas… Então, tu não sabes o que é um filósofo?
— Pois não.
— Um filósofo é alguém que gosta muito de saber.
— Ó avô, há mais filósofos como tu?
— Há, claro que há, e já há muito, muito tempo. Olha, no tempo da biblioteca de Alexandria, já havia filósofos. E muito antes, até.
— Não sei o nome de nenhum filósofo, sem ser o teu.
— Sabes nomes de quê?
— De jogadores de futebol, de cientistas, de músicos… Vá lá, diz lá o nome de um filósofo.
E acaba assim...
... O filósofo meteu de novo a mão à primeira gaveta de onde tirou um saquitel de cetim grosso e coçado, de um cor-de-rosa carregado mas já descolorido nas velhas dobras. Desenlaçou a fita de seda que o fechava e virou-lhe o conteúdo sobre o tampo da cómoda: o grosso cordão de ouro escuro, as arrecadas e uma chave de feitio arcaico. Pegou na chave, meteu-a no bolso das calças e voltou a repor aqueles tesouros na gaveta. Depois, entrou no quarto, distraidamente encheu com alguma roupa o seu habitual saco de viagem, apanhou umas coisas na casa de banho e um ou dois livros pousados por ali, vestiu o casaco e, sem olhar para trás nem dar atenção ao telemóvel que estava a tocar, saiu acenando a uma ideia. Adeus, Nuno, podes ir, podes ser.
Numa era em que, nos discursos, o tema da escola é favorecido pela tecnocratização, funcionalização, a ideia do agigantamento cultural/literário do professor corre o risco de ser considerada uma entrada não pertinente. As entradas pertinentes para o tema do professor de Português tendem a ser designadas como competências: a competência de vencer a iliteracia enquanto dificuldade de conseguir servir-se de escritos da vida corrente; a competência para vencer a incapacidade de utilizar bases de dados ou ler/apreender tabelas ou esquemas; a competência para ensinar a redigir notas breves para relatórios... Incongruentes com o desígnio de educar leitores.
Educar o leitor é abrir uma brecha neste discurso e falar, a propósito da leitura escolar, de preponderância do professor como modelo, pensando a educação como uma metamorfose iniciada pelo desencadear de uma impregnação. Educar o leitor é desclassificar o desejo de alguém se deixar impregnar por um escrito da vida corrente, por uma base de dados; de alguém sentir o poder transformador de umas notas breves para um relatório.
Integrar a educação do leitor num processo de mudança identitária da escola é desclassificar uma atitude educacional «sempre pronta a sacrificar o inútil à utilidade imediata.»[1] e dar razão à asserção de Patrick Wormald: «Who wants to be useful when one can sit there looking pretty?»[2]
[1] LOPES, Silvina Rodrigues, Literatura, Defesa do Atrito s/l., Edições Vendaval, 2003, pág. 16.
[2] Patrick Wormald in TLS nº 5259, 16/1/2004.
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