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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 28.04.18

HISTÓRIA BREVE DE UM NÃO-LEITOR

Estilo-europeu-Criativo-Retro-nostalgia-livros-Est

 

     Era uma vez um Não-Leitor.

     Não-Leitor vivia cego e surdo para tudo o que fosse livro e leitura, principalmente leitura de literatura. Em algum momento da sua vida, algum mecanismo parasita se instalara em alguma parte de si deixando-o em denegação da possibilidade de ler. Ou, então, tratara-se do crescimento, do avolumar de alguma longínqua má vontade que, alastrando, lhe veio a ocupar a vida toda em modo de não-leitor.

     Chegara o Não-Leitor a um ponto tal do seu estado de não-leitura, que nem sequer se sentia interpelado por nenhuma hipótese, ainda que ténue, de ler, por exemplo, um conto, um romance e ainda muito menos um poema. Passava pelos livros sem os ver, indiferente, como um vegetal. Cortava, de imediato, a sua participação em qualquer conversa em que o tema da leitura pudesse estar embrionário. Dava-se com gente que não lia. Deus o livrasse de assistir a qualquer programa de televisão (dos pouquíssimos que havia) sobre livros e leitura. Ou de estar presente em qualquer sessão com alguma componente respeitante a livros, por mínima que fosse.

   A sua mulher, que também não lia, tinha, por razões de ordem decorativa, posto uma meia-dúzia de livros num vão de um móvel livre de bibelots. Deixou-os estar. Para ele, eram só exterior — bibelots também.

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por Maria Almira Soares às 14:37

Sexta-feira, 27.04.18

O PALÁCIO DAS QUEIJETAS

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     Em Cântico Final de Vergílio Ferreira, lemos este relato de uma cena de leitura. A cena é referida em ambiente de conversa entre professores.

     «Bom. Este moço que agora saiu é analfabeto. Peguei no soneto e li-o. Perguntei-lhe: entendeste? «Entendi, sim, senhor». «Então explica lá». «Bem, — disse ele. Isso é assim como se eu visse uma casa rica e dissesse comigo: vai lá, João, vai lá que ali há de haver pão, chouriço, vinho e queijetas. E depois eu vou lá — e nicles: não há lá nada.» E aí tem o meu amigo como este pobre analfabeto...»

 

     Os protagonistas humanos desta cena de leitura são alguém que ensina e alguém que aprende, nos extremos de um eixo cuja inclinação os diferencia pela idade, pela cultura, pelo estatuto. O outro protagonista é o texto: o soneto «O Palácio da Ventura» de Antero de Quental. A leitura dá-se. O leitor lê com o seu imaginário: onde está «palácio da ventura», lê «uma casa rica»; onde está «pompa e aérea formosura» e «ouro» lê «pão, chouriço, vinho e queijetas».

   Observando esta cena, detetamos no imaginário do leitor a presença de coisas concretas, comestíveis, apontadas pelo desejo de alcançar aquilo que a realidade lhe nega. Para ler a busca, o encontro e o desengano, presentes no soneto, o imaginário deste leitor transforma os motivos idealizados (o amor; o sonho; o encantamento) em ‘coisa’ desejada por si, sim, mas concretizada no real apetite de comer.

   Contudo, a leitura imediata do aprendiz-leitor poderia ser alargada, se...

   Vejamos:

   O aprendiz-leitor abre o seu imaginário, mas o autoinstituído mestre da leitura não.

O mestre limita-se a rejeitar a leitura do aprendiz: «pobre analfabeto».

   Se esta fosse uma cena de oficina de leitura e não de puro magistério, haveria, por exemplo, de continuar assim:

— Ah, sim? É nisso que pensas? Em «pão, chouriço, vinho e queijetas»? Pois eu, ao ler este poema, ponho-me a imaginar que o «cavaleiro andante» julgava encontrar naquele «palácio encantado» a bela rapariga, pela qual se apaixonara e, deste modo, a felicidade...

— Sim, mas... porque é que ele não podia sonhar com uma mesa posta de coisas boas?

— Poder, podia.. ou podes tu, mas, já viste, experimenta lá a olhar para aqui, «paladino do AMOR» e, para ali, «a VENTURA» ou seja a felicidade... O que é que vês? Eu, quando li isto, imaginei logo a felicidade de amar e ser amado!

— Mas isso é porque é um «palácio» e eu pensei, foi, numa «casa rica». Eu nunca vi um palácio...

— Sim, é verdade... Mas podes imaginar. E podes imaginar o amor do cavaleiro dentro do palácio, julga ele... Ora, experimenta lá pensar em «portas de ouro», «fulgurante», «pompa», «formosura». O que é que vês?

— É ainda mais maravilhoso do que uma casa rica...

— É um palácio! Hás de ‘ver’ palácios noutros textos que leias... Sabes porque é que eu gosto de ler este poema?

— ...

— Deixo-me levar pelo ritmo de galope do cavaleiro... deixo-me inebriar pela pompa e pelo ouro exteriores... e, de repente, aprendo que...

— Que lá dentro é ao contrário. Este poema é muito triste!

— É, é. Tanto esforço... e...

— Uma grande desilusão.

— Pode ser que o cavaleiro recomece noutro caminho, noutro sentido...

— Sem riquezas por fora... mas com coisas boas lá dentro. Assim, não havia desilusão.

— Pois, não sabemos. Aqui, ficamos num profundo desengano...

Etc., etc., etc.

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por Maria Almira Soares às 20:52

Quarta-feira, 04.04.18

O LEITOR A HAVER

images.jpgEliseu Visconti

 

   Era uma vez um Menino que, sem ninguém dar por isso, começava a ser leitor. Não tinha ainda idade nem vontade de aprender a ler. Para o Menino, o melhor da vida era brincar. E brincar era simultaneamente sentir. Sentir cores, luzes, cheiros, gestos, movimentos, texturas e tudo isso misturado. Brincar sob sol aberto e chão coberto de ervas, flores, árvores... ar livre. O Menino começava a ser um leitor que ainda não lia. Sob a bênção do poeta que nos não larga, poderemos chamar-lhe um leitor a haver. Nada sabia de letras, mas, em cada momento de vida, crescia em imaginário. Adorava o faz-de-conta. E nesse seu fazer-de-conta tudo no seu mundo se transformava em situações inventadas cheias de palavras e de coisas postas e repostas sem limitações de realidade. Nesse seu fazer-de-conta as coisas e coisinhas que lhe vinham à mão transformavam-se magicamente em tudo o que ele queria, em tudo o que ele via por uns olhos de desejo de alegria: fosse um pedacinho de papel rasgado de jornal amarelecido perdido no fundo de uma gaveta, sobre o qual, sem nada entender do que lá se dizia, saboreava palavras misteriosas que ouvira sem as entender também; fosse uma bela e perfeita folha de videira que punha a boiar no rego da água e era já um barco, uma jangada, um peixe...; fosse uma pedra, arredondada pelo tropeço dos tamancos que faziam os caminhos, atirada aos ares e logo transformada num belo rasgão do céu azul. O Menino pequenino não lia, não sabia de livros, nem sabia se outras pessoas — dentre os pais, dentre os avós, dentre os irmãos — tinham livros. Mas sabia de histórias: das que inventava e das que ouvia. Todos, à sua volta, estavam sempre a contar histórias uns aos outros: infelicidades, desejos, segredos, espantos, maldades, notícias boas, notícias más, partidas e regressos, alegrias, viagens, mortes e vidas. E ele ouvia muito bem. Não as entendia, essas histórias que enchiam o mundo em volta. Não as entendia, mas, pelo modo como os corpos e seus gestos e as vozes e suas demoras as contavam, pareciam-lhe ser saborosas. Sabores doces e ácidos, picantes e brandos que, no Menino, iam plantando o leitor a haver. Saboreava a mestria das vozes dos outros e ficava a saber, ainda que imperfeitamente, de histórias e mesmo de réstias de palavras que não chegavam a formar nenhuma história, mas eram boas de sentir na boca e nos ouvidos.

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por Maria Almira Soares às 13:33


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