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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Em Cântico Final de Vergílio Ferreira, lemos este relato de uma cena de leitura. A cena é referida em ambiente de conversa entre professores.
«Bom. Este moço que agora saiu é analfabeto. Peguei no soneto e li-o. Perguntei-lhe: entendeste? «Entendi, sim, senhor». «Então explica lá». «Bem, — disse ele. Isso é assim como se eu visse uma casa rica e dissesse comigo: vai lá, João, vai lá que ali há de haver pão, chouriço, vinho e queijetas. E depois eu vou lá — e nicles: não há lá nada.» E aí tem o meu amigo como este pobre analfabeto...»
Os protagonistas humanos desta cena de leitura são alguém que ensina e alguém que aprende, nos extremos de um eixo cuja inclinação os diferencia pela idade, pela cultura, pelo estatuto. O outro protagonista é o texto: o soneto «O Palácio da Ventura» de Antero de Quental. A leitura dá-se. O leitor lê com o seu imaginário: onde está «palácio da ventura», lê «uma casa rica»; onde está «pompa e aérea formosura» e «ouro» lê «pão, chouriço, vinho e queijetas».
Observando esta cena, detetamos no imaginário do leitor a presença de coisas concretas, comestíveis, apontadas pelo desejo de alcançar aquilo que a realidade lhe nega. Para ler a busca, o encontro e o desengano, presentes no soneto, o imaginário deste leitor transforma os motivos idealizados (o amor; o sonho; o encantamento) em ‘coisa’ desejada por si, sim, mas concretizada no real apetite de comer.
Contudo, a leitura imediata do aprendiz-leitor poderia ser alargada, se...
Vejamos:
O aprendiz-leitor abre o seu imaginário, mas o autoinstituído mestre da leitura não.
O mestre limita-se a rejeitar a leitura do aprendiz: «pobre analfabeto».
Se esta fosse uma cena de oficina de leitura e não de puro magistério, haveria, por exemplo, de continuar assim:
— Ah, sim? É nisso que pensas? Em «pão, chouriço, vinho e queijetas»? Pois eu, ao ler este poema, ponho-me a imaginar que o «cavaleiro andante» julgava encontrar naquele «palácio encantado» a bela rapariga, pela qual se apaixonara e, deste modo, a felicidade...
— Sim, mas... porque é que ele não podia sonhar com uma mesa posta de coisas boas?
— Poder, podia.. ou podes tu, mas, já viste, experimenta lá a olhar para aqui, «paladino do AMOR» e, para ali, «a VENTURA» ou seja a felicidade... O que é que vês? Eu, quando li isto, imaginei logo a felicidade de amar e ser amado!
— Mas isso é porque é um «palácio» e eu pensei, foi, numa «casa rica». Eu nunca vi um palácio...
— Sim, é verdade... Mas podes imaginar. E podes imaginar o amor do cavaleiro dentro do palácio, julga ele... Ora, experimenta lá pensar em «portas de ouro», «fulgurante», «pompa», «formosura». O que é que vês?
— É ainda mais maravilhoso do que uma casa rica...
— É um palácio! Hás de ‘ver’ palácios noutros textos que leias... Sabes porque é que eu gosto de ler este poema?
— ...
— Deixo-me levar pelo ritmo de galope do cavaleiro... deixo-me inebriar pela pompa e pelo ouro exteriores... e, de repente, aprendo que...
— Que lá dentro é ao contrário. Este poema é muito triste!
— É, é. Tanto esforço... e...
— Uma grande desilusão.
— Pode ser que o cavaleiro recomece noutro caminho, noutro sentido...
— Sem riquezas por fora... mas com coisas boas lá dentro. Assim, não havia desilusão.
— Pois, não sabemos. Aqui, ficamos num profundo desengano...
Etc., etc., etc.
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