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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Várias são as formas de a política se tornar agressão. Uma das mais vis é a do roubo da identidade. A besta política, quando emerge furiosa e mortífera, como foi o caso do nazismo, ateia o sopro da desumanização, despojando as suas vítimas do que lhes é identitário: a confiança e tranquilidade dos seus lugares, das suas casas, dos seus objetos, dos seus afetos, das suas memórias, das suas vidas. O que o monstro parece, contudo, não saber é que as suas patadas lhe sobrevivem sob o signo da infâmia e são, simultaneamente, sinais reconstitutivos do rasto das memórias espezinhadas, da identidade roubada. A identidade roubada, queira ou não queira a besta política, fica semeada no mundo.
Austerlitz, o livro de Sebald, é a reconstituição do rasto identitário de um homem que foi/é a criança judia forçosamente separada da família e depositada num comboio do Kindertransport em fuga do extermínio nazi.
Sebald constrói a personagem de Austerlitz com um olhar/espírito atento à psicogeografia do mundo, a partir de cuja leitura, vai fazendo a reconstituição de si mesmo.
Neste livro, a história contada equilibra-se, comovente, entre a vontade narradora de si de um homem que se busca e uns ouvidos que no-la vão remetendo enquanto a sabem ir acolhendo.
Seguimo-la, e viajamos; seguimo-la, e aprendemos; seguimo-la, e refletimos; seguimo-la, e emocionamo-nos.
Desde o abandono radical presente na ignorância do próprio nome até à recuperação da imagem da mãe, Austerlitz reconstrói-se, emerge, desfaz a agonia da anulação que, em si, o nazismo tinha perpetrado.
Na reconstrução da sua memória identitária, a observação dos lugares em que houve vida e morte, alegria e sofrimento, é essencial e, por isso, a sua narração é minuciosa. Lugares e pessoas/personagens vão renascendo ao sabor de andanças e paragens, encontros, despedidas, reencontros, coincidências, regressos.
Austerlitz é a história de um homem em movimento, um homem que se move à procura da História, da sua história, do tesouro inalienável que, em cada um, são as pedras, os ares, as luzes, as vozes, os rostos, os abraços, com que viveu e cresceu, que lhe são memória e, por isso, vida.
Há, neste livro, uma densa simplicidade reveladora das coisas essenciais que sempre permanecem em nós, por mais que elas, essas coisas, em nós tenham sido esmagadas. Neste livro, é da essência de um homem que se trata, de um homem vítima da pata política do mal, neste caso, a pata do monstro nazi.
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