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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sexta-feira, 27.07.18

LER É MAÇADA?

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada [...

...................................]

        Fernando Pessoa, «Liberdade», in Cancioneiro.

O que diz Pessoa...

       Fernando Pessoa, em um verso do poema LIBERDADE, diz que «ler é maçada».

     Leio estas suas palavras, eu para quem ler é paixão, e, ao contrário do que ligeiramente se poderia pensar, nenhuma perplexidade me toma, nenhum abalo sofre o meu amor ao Poeta. Tranquilizam-me e esclarecem-me não só o seu currículo de leitor, mas também a indubitável importância da leitura para que ele tenha sido quem foi. E sei, sabe quem o lê, que não foi por obrigação entediante que Fernando Pessoa foi quem foi.

     Numa lógica precisamente contrária — e que bem laborava Pessoa a exatidão de uma relação de contrários — penso que esta sua proclamação da maçada de ler, feita num poema tão exultante como um hino à liberdade, radica precisamente na sua genialidade de leitor e de escritor.

     A afirmação de Pessoa «ler é maçada», correndo o risco de confundir, ilumina. Conduz-me, certeira, ao cerne da questão que, aqui, analiso. As perguntas que me suscita são estas:

     — Como chegar a um patamar, a um estatuto de leitor, tão livre, tão seguro de si e tão natural, capaz de permitir — sem medo nem preconceito — fazer, da leitura, metáfora do que é maçador, num poema em que se canta o prazer de uma liberdade tão radical?

     — Como chegar aí, a esse estatuto de leitor, e evidenciá-lo ante aqueles para os quais ler poderá ser, e sem jogo poético, uma maçada?

     — Como dar, da leitura, a imagem de um bem tão seguro e tão natural, de um gosto tão necessário, de uma coisa tão impossível de não ser nossa, que até nos poderemos dar ao luxo de a associar à ideia de maçada?

     — E, sobretudo, como enraizar a leitura em camadas profundas da nossa maneira de ser e estar, como coisa tão necessária, segura e natural, que não se perca, apesar dos contextos que teimam em fazer com que a percebamos como uma maçada?

     Algumas respostas satisfatórias — ainda que incompletas — para estas perguntas, poderão, talvez, provir da observação, atenta, dos modos e processos, hoje em dia repetidamente praticados sobretudo com crianças, com vista à criação e ao desenvolvimento de leitores. Da sua observação atenta e consequente reflexão.

 Dentre as pessoas leitoras investidas na elaboração e na execução desses modos e processos de fazer crescer e amadurecer a leitura, os professores, os bibliotecários, os leitores públicos, os contadores públicos de índole vária, os detentores institucionais do poder distributivo do livro e da leitura têm um estatuto privilegiado, já que a sua condição implica e reforça a desejável experiência de ler. Ora, neste âmbito, uma das componentes que acho interessante observar é a das reflexivas consequências que essas pessoas — privilegiadamente leitoras — tiram da sua condição especialmente experiente da leitura, para, a partir delas, deliberarem sobre o tipo de interação a ter com as crianças e com os jovens.

   Por isso — e continuando em busca de respostas para as minhas perguntas iniciais — suponho que seja interessante observar como os professores, os bibliotecários, os chamados ‘animadores’ da leitura, proporcionam às crianças e aos jovens a experiência de ler ou de assistir a leituras, de modo a que estas se lhes não representem como maçada a rejeitar. Estou convicta de que, para o melhoramento dos caminhos conducentes à concretização plena deste desiderato, será importante e útil refletir sobre as linhas de pensamento subsumidas na elaboração e prática das múltiplas sessões produtoras de momentos de leitura com crianças e jovens. Momentos, sim, mas momentos que queremos tornar fonte de permanências.

       Reflitamos, então, sobre as possibilidades de esses momentos se expandirem, perdurarem, permanecerem, nas crianças e nos jovens, sob forma de uma vontade de ler que não se restrinja a um episódio bem sucedido e apagador momentâneo da tal maçada pessoana; reflitamos sobre as possibilidades de esses momentos não se ficarem apenas por ser lampejos eufóricos, exorcizadores da maçada de ler; reflitamos sobre as possibilidades de esses momentos não ficarem encerrados numa fase das suas vidas marcada pela infantilidade ou pela juvenilidade.

   De facto, há um mas, há alguns mas, que a minha observação e reflexão me pedem que interponha nesse panorama — intenso e pleno de vitalidade — de planos continuados e abrangentes de motivação para a leitura, envolvendo crianças e jovens.

No pressuposto de esconjurar a palavra que Pessoa tão livremente atira contra a leitura, maçada, numerosas atividades educativas, destinadas a fazer, das crianças, crianças leitoras, têm vindo a ser desenvolvidas com intensa vitalidade recíproca, sim, mas...

   Mas, sendo intensos, esses encontros com a leitura, deixarão eles uma inscrição perdurável no gosto e no desejo de ler das crianças e dos jovens? E, se não, porquê? E se um quantum de submissão a essa antipática palavra pessoana se revelasse mais profícuo?

   Para tentar responder a esta questão de, na educação infantil, a crescente pujança da leitura como coisa agradável e lúdica ter ou não ter consequências perduráveis, acho útil fazer um recuo na minha reflexão.

   Assim, começo por elaborar, não ainda sobre a educação especificamente votada à leitura, mas sobre educação em geral, sobre alguns aspetos do processo educativo genericamente considerado.

   A educação, em todas as áreas (e daí que na área da leitura também), é um processo que se desenvolve por aprendizagens cujo mecanismo de sucessividade é o da imbricação. O seu impulso de avanço tem de simultaneamente recuar a uma incompletude anterior que, trazida do patamar precedente, é o lugar de encaixe do patamar seguinte que, por sua vez, contém, em aberto, novas necessidades-desejo propulsoras de nova aprendizagem que, por sua vez, hão de deixar em aberto... e, assim, sucessivamente.

   Estar a ser educado é, pois, um processo perifrástico contínuo e não uma soma de sincronias conclusas, cabalmente satisfeitas. O processo de educar (na área da leitura também) não é — acrescento ainda — uma fiada ou um amontoado de momentos de aprendizagem enfileirados apenas pelo tempo.

   Em suma: a satisfação de um desígnio educacional só se completa se cada aprendizagem orientada para tal desígnio cuidar de criar também o vazio a vir a ser habitado pelo desejo de outra aprendizagem ainda, e outra ainda, e outra ainda... Assim: cada uma dessas aprendizagens não deve limitar-se a ser sentida apenas como satisfação/realização, mas também como estímulo para o novo, para o ainda desconhecido: como estímulo para o novo e como capacidade para o enfrentar.

     Da perceção-sentimento de ter aprendido, deve fazer parte o desejo-necessidade do ainda não-conhecido, ou seja: porque já sei isto ou porque já sou capaz de fazer isto, é que ganho consciência de que ainda não sei fazer aquilo ou ainda não sou capaz de fazer aquilo, mas quero saber e fazer aquilo.

   Para que não seja efémera mas efetiva, a educação vai sendo sempre um processo de resultado em parte diferido, de resultado não cabalmente imediato, sustentador de novos e superiores horizontes. Em cada momento, deixa sempre em aberto algo de ainda não-aprendido que aponta para o futuro. É esta maçada da insatisfação que a torna perdurável através da metamorfose de um saber passado num saber futuro mais profundo e mais abrangente. Não será perdurável, se uma autossatisfação cabal — erradicadora de qualquer tom menos embalador e de qualquer textura menos macia — encerrar cada etapa da sua prossecução, como acabada em si mesma sem fermento de futuro. Para ser perdurável, há de deixar em aberto uma margem de insatisfação. Em educação, a sensação-experimentação-memória de que sobrou alguma coisa de que ainda não sou capaz é preciosa para o meu desenvolvimento futuro. É talvez uma maçada termos de o reconhecer, mas esta sensação de dificuldade, de desagrado no imediato, não significa rejeição, mas promessa e desafio. Assim também, estou convicta, no que diz respeito à educação do leitor.

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por Maria Almira Soares às 11:38

Terça-feira, 24.07.18

A LEITURA NÃO É UM BRINQUEDO

  

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     Naturalmente, crescer foi deixar para trás as coisas da infância, entre as quais, esses livros, lindos, em que quase tudo era desenho e cor, objetos nostálgicos de que se lembram com um sorriso, como doutros brinquedos que tiveram, e que, para eles, nada têm a ver com a vontade, a curiosidade, que poderiam ter, de ler um livro como, por exemplo, Os Maias. O que foi ler o conto infantil e o que é ler um grande e denso romance desencontram-se, antagonizam-se mesmo, incapazes de se reconhecerem na mesma realidade semântica e pragmática da palavra leitura. E, neste desencontro, implanta-se uma terra de ninguém, em que já não é possível a leitura da infância e é impossível a leitura de adulto. Implanta-se a desorientação, a rejeição, o alheamento da leitura. E que leitores triunfantes não foram eles na infância!

   Os triunfos imediatos esgotam-se em si mesmos e tornam-se, talvez, mais coisa de registos estatísticos do que de ganhos humanísticos.

   Conheço, fui e vou conhecendo, muitos casos de pessoas que na infância leram os seus livrinhos, mas que, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem. Dentre aqueles que leram com gosto na infância e não assimilaram esse gosto como necessidade, muitos sentem-se, em adultos, como pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos álbuns ilustrados. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos.

   Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, não é um brinquedo. Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro. Penso nestas realidades, procuro razões para elas e atrevo-me a perguntar:

   — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, nunca chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade?

   — Será que isto acontece porque nunca chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada?

   — Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, essa, a posse do verdadeiro truque, a face sonegada da propagandeada magia de ler?

   Pergunto, e penso: não foi suficiente esse lugar de espectadores dos passes da magia da leitura que outros tão bem, para o seu ser infantil, prepararam; teria sido necessário que o seu ser infantil tivesse tido a repetida — e nem sempre bem sucedida — maçada de, uma e outra vez, tentar ele próprio fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhado, ainda pouco destro — a coisa não viesse a correr na perfeição...

   Penso que não devemos cair no estado oximórico de defendermos a leitura maximizando-a como um bem e simultaneamente a diminuirmos, a enfraquecermos com a declarada necessidade de auxiliares como o jogo, a brincadeira, os objetos de entretenimento puramente visuais. Senão, seremos levados a duvidar, a questionarmo-nos sobre que coisa tão defeituosa é afinal a leitura para que precise de tanto amparo, de tanto complemento, de tanto auxílio, que se arrisca a morrer de fartura de tanta presteza alheia?

   Penso que a montagem de cenários excessivamente lúdicos, intencionalmente facilitadores da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro.

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por Maria Almira Soares às 11:22

Domingo, 22.07.18

EÇA

      Um dia, ao dar dos primeiros passos na adolescência, fui encontrada pelas Prosas Bárbaras do Eça e, como diria António Nobre, «Ó sonho! Ó maravilha!/Fazer parte de uma quadrilha...», neste caso de uma metafórica quadrilha de personagens de tragédia, de mortos e abutres, de fogos e de forcas, de ladainhas de dor, de diabos e de deuses, emboscados numa prosa visionária que era poesia, sonho, fantástico, música...! Pairar, pouco conscientemente, naquele mundo tentador e arrepiante! Era o início da imensa descoberta de Eça de Queirós que haveria de me levar a mundos muito diferentes. Era o semear da saudade futura daquela arte narrativa sem igual, daquela mestria verbal. 


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por Maria Almira Soares às 21:47

Sábado, 21.07.18

SER LEITORA

OS LEITORES FALAM ÀS SENHORAS: Maria Almira Soares

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Quando era pequenina (é assim que se diz, não é?) o meu pai, não sendo quase nada letrado pelo menos formalmente, gostava de histórias: de as inventar ou reinventar e de as contar. Contava teatralmente, delirantemente. E tinha um repertório em que campeavam o José do Telhado, os Quarenta Ladrões, lobos, raposas e cordeiros, anões e princesas, botas de sete léguas, caçadores, meninos perdidos na floresta, bruxas e fadas, moleiros e cavaleiros, mantos de sete cores, rouxinóis e imperadores, avozinhas e bolinhos, sapatinhos de cristal, expressões como «saltou-lhe ao caminho», «pegou no facão», «deu três cambalaritas no ar», «cheira-me aqui a carne humana», «Maria-Bebe-Azeite», «mãos ao ar», «passa para cá a bolsa», «partiram para as cavalhadas», «desfez-se o encanto» ... ... ...
Dentro daquelas histórias, rebentava o mesmo encantamento que me chamava para as brincadeiras. Enquanto ouvia/via o meu pai a contar, um fenómeno de bifrontalidade, semelhante à do anjo da História, transmudava-me o rosto: carinha a ver passar e fugir ‘acontecidas’ maravilhas transportadas pela voz sem leitura; carinha a encher-se do desejo de prolongar, de fixar, de guardar aquelas maravilhas no bolso, o ainda desconhecido desejo de ler. Depois, aprendi a ler.

Em breve, haveria de me aventurar no livro — até aí ignorado — de onde vinham, ainda que transformadas pela inventividade narrativa do meu pai, muitas das histórias que ele me contava... De facto, o meu pai gostava de reinventar as coisas, o real. Assim, com alguns dos livrinhos de histórias que, das suas andanças profissionais por aqui e por ali, ia trazendo para casa, e com um cordel fininho mas forte e uma agulha grande, ele inventara um livro grosso em que os variados livrinhos se sucediam e que eu, agora, lia, sentindo ecos do que tinha conhecido na voz e nos trejeitos e no corpo do meu pai. Assim, li um livro feito de livros: sem sacrilégio, a pequena bíblia do imaginário paternal. Alguma coisa, muito nova na minha vida, tinha começado: a leitura de histórias inventadas. Lido e relido, encaracolado por folheamentos ansiosos em busca daquela história, daquela personagem, daquelas mágicas palavras, o livro ia perdendo estado, à medida que se escoava para dentro de mim: materialmente, era um destroço; magicamente, era um jardim, uma ilha, um mundo maravilhoso.

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por Maria Almira Soares às 11:36

Quinta-feira, 19.07.18

«Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.»

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      «Inicialmente tentou tirar das páginas as pequenas figuras, mas logo compreendeu que não eram reais, embora não soubesse o que poderiam ser e não tivesse palavras para descrevê-las. Os barcos, comboios, vacas e cavalos, não tinham qualquer significado para ele, mas todavia não lhe pareceram tão intrigantes como as estranhas figurinhas que apareciam abaixo e entre os desenhos coloridos - deviam ser insetos, talvez, porque muitos tinham pernas, mas não encontrou um só que tivesse olhos e boca. Era o seu primeiro contacto com o alfabeto e tinha mais de dez anos. Evidentemente que nunca vira, antes, caracteres impressos, nem falara com qualquer criatura viva que tivesse a menor ideia sobre a existência de linguagem escrita. Não sabia que fosse possível ler. Por isso não admirava que não pudesse fazer qualquer ideia sobre o significado daquelas estranhas figuras. A cerca do meio do livro, descobriu a sua velha inimiga, Sabor, a leoa, e mais adiante viu Histah, a serpente. Aquilo era maravilhoso e absorvente! Nunca antes, nos seus dez anos de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tanto prazer. E tão absorvido estava que não notou a aproximação da noite senão quando a escuridão já não lhe permitia ver. Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.»

                                                    Edgar Rice Burroughs, Tarzan dos Macacos, vol. I

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por Maria Almira Soares às 10:30

Segunda-feira, 16.07.18

ELES NÃO CONSEGUEM LER OS MAIAS

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    Não é não querem, é não conseguem, o que se ouve. Rapidamente, aludem-se as causas e ouve-se, então, falar de factores distrativos ou substitutivos, como a Internet, as redes sociais, a preguiça favorecida pela contextual facilitação, a agitação da vida atual que não se compadece com a quietude e o silêncio da leitura... Perante estas alusões, ponho-me a pensar em gente que intensamente se serve da Internet, que convive no Facebook, que venera os seus momentos de preguiça, que vive também na agitada vida atual e, no entanto, lê, lê muito, lê muitos e grandes romances. Sei-o por experiência própria e sei que há muita gente com a mesma experiência. Gente que lê e que sobretudo, quando não lê, lhe sente a falta, tem pena. Porque o problema não é não ler por esta ou por aquela causa pontual ou sazonal. O problema é não ler. O problema não é, numa curva de pensamento, que até pode ser poético, soltar um resmungo de maçada sobre a leitura. O problema é a leitura tornar-se uma maçada, o problema é afastar a leitura como uma maçada. É um erro de perspetiva colocar a leitura em antinomias como ler vs. utilizar a Internet, ler vs. estar no Facebook, ler vs. preguiçar, ler vs. estar presente nos desafios constantes do viver atual. É um erro, porque estas coisas não são comutáveis no mesmo lugar e função. Certo é ver a complementaridade e a frutuosa integração de tudo isso num conjunto cujas partes reciprocamente se provocam. Ler ou não ler não é uma mera questão de ter ou não ter tempo.

    Se eles não leem um grande romance como Os Maias, não é substancialmente por essas causas, é muito simplesmente porque não sabem.

   Eles não sabem, não aprenderam, não foram iniciados nas artes de ler um grande romance.

   Tiveram algumas, ou mesmo muitas, experiências de leitura na infância, sim, uma ou outra experiência de leitura muito fácil na adolescência, sim, mas isso era toda uma outra relação com o livro que não encontrou o caminho para o que agora se lhes pede.

   Múltiplos factores fazem com que ler não seja sempre a mesma coisa e, dentre eles, salienta-se a própria natureza daquilo que se lê. Ler, por exemplo, uma ‘coisa’ ligeira como O Código da Vinci de Dan Brown, em que logo no primeiro curtíssimo parágrafo alguém arranca um quadro da parede do Louvre e logo cai em meio do estrépito de uma pesada grade de ferro que tomba, do estremecimento do soalho e do alarme que toca... é muitíssimo diferente de ler um grande romance como, por exemplo, O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e, ao primeiro passo da leitura, estar sob uma mansa e velha jaculatória em latim (Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.), no seio de uma família que, doméstica e pacatamente, acaba de rezar o terço.

   Mas eles não sabem, não aprenderam a saber, nada disso. Não sabem como suspeitar da riqueza de imaginárias vivências exaltantes, a serem reveladas mais adiante, que esse princípio em tom de reza encerra. Não sabem e desistem.

   Põem-lhes nas mãos Os Maias e dizem-lhes agora lê.

   Como se ler fosse, indeterminada e simplesmente, seguir palavras umas atrás das outras. Como se ler um livro fosse só começar na primeira palavra e ir sempre seguindo até à última. Como se não houvesse a arte de ler cujo domínio se pode sempre ir enriquecendo. Como se ler um romance, com gosto e saber e proveito, não fosse toda uma sabedoria que a experiência continuada da leitura nos dá.

   Mas eles — que, da experiência da leitura, se se lembram, é «daquelas páginas em que uma maçã ia sendo desenhada com várias cores e...» ou daquelas histórias que não saem da espiral de cenas espetaculares, de golpes de magia, de surpreendentes missões em série, apoiadas/combatidas por campos opostos que se digladiam até ao fim — eles que estão completamente imersos no choque audiovisual, ao embate no primeiro longo parágrafo descritivo do romance de Eça de Queirós, param e rejeitam.

   Param, porque não estão a ver para que serve aquilo das primeiras páginas. Não estão a ver para que é que aquilo serve nem em que é que aquilo vai dar. Não sabem sopesar o seu valor relativo e estratégico. Sem capacidade relacional experimentada na leitura de histórias densas e extensas, pensam aquilo em bruto, em absoluto. Não lhe veem o encaixe para novidades futuras. Aquilo imobiliza-os como se fosse uma coisa imutável, como se o livro fosse ser todo assim. E, como aquilo, só por si, não os atrai, não dizem maçada, porque não têm o hábito da palavra, dizem: — Seca, chatice. Os Maias são uma seca.

   Eles, infelizmente, não são fruto de um continuado acompanhamento das progressivas exigências das leituras, que naturalmente lhes iria pedindo a sua progressiva idade. Não souberam encontrar o caminho sozinhos — são sempre poucos os que o fazem — mas também ninguém lho mostrou, pelo menos com eficácia. Não fizeram, depois das leituras da infância, aquisições experienciais que pudessem redundar, chegada a altura, em saber ler uma história extensa com muitas personagens e lugares e com diversificadas ações e com passagem demorada do tempo e com transformação complexa das emoções. Tudo isto organizado segundo uma estratégia e uma linha articuladora que dá a cada momento, a cada sequência, um valor relativo na pluralidade de todos os outros e no global significado da obra. Olham para o romance como um amontoado de palavras que terão de ‘encaixar’. Impossível! Impossível, sim. Eles não sabem que ler um romance, é estar sempre a pôr hipóteses, a antecipar, a fazer perguntas, a desconfiar: — ... mas que é que vem agora cá esta fazer? — ...mas porque é que me levam agora para esta terra? — ... mas porque é que de repente há uma mudança assim? Ninguém lhes ensinou que a arte romanesca está cheia de ardilosos indícios; que, em cada momento, o romance não diz tudo desse momento; que o romance não se vaza sobre o leitor como um saco cheio da história; que, ao leitor, compete desconfiar do que lhe vai sendo servido, acreditando, sim, em segundas e terceiras intenções.

   Alguém que até aí só leu as simples historietas infantis e outras coisas com semelhante simplicidade e linearidade, é completamente inocente perante os ardis da grande arte romanesca.

   Dão-lhes Os Maias para as mãos e dizem agora lê.

   E daí lavam as mãos. Até ao momento de lhes terem de fazer saber que o Dâmaso é uma personagem-tipo social, que a infância de Carlos é contada em analepse, que o Jantar no Hotel Central é um quadro de crónica social, que a cor dos olhos de Pedro, as parecenças de Carlos com a mãe de Maria Eduarda e tal e tal são omina, indícios de tragédia. Mas eles não sabem verdadeiramente quem é Carlos nem Dâmaso nem Pedro nem Maria Eduarda, nem o que é o Hotel Central! Não sabem, porque não leram. Mataram a leitura com ilegítimos resumos em que a estratégia narrativa original é totalmente desmembrada para ser alinhada na mesa de morgue que esses resumos são.

   A história alisada numa sequência linear, ah, isso eles sabem ler! É só o que a sua experiência — ou inexperiência — de leitores lhes permite.

   Assim, matando a leitura do romance, eles sabem ler.

   Ninguém lhes disse que ler um romance é ir tendo nas mãos e ir seguindo um mapa do tesouro; que toda a grande intriga tende a esconder um mistério de que é preciso ir desconfiando. Ninguém os alertou para que, se Eça de Queirós optou por abrir o romance com abundante descrição de Afonso no seu palacete, tudo pronto, tudo belo, tudo habitado de esperançosas expectativas, é dever do leitor sábio desconfiar da permanência de tão luzida cena. Ninguém lhes disse que, se forem espiar o romance lá para perto do seu fim, hão de encontrar o mesmo cenário em tom de ruina física, estética, moral. E que a sua função de leitores é a de descobrirem o caminho entre a sombra da luz e a luz da sombra. É a de descobrirem que aquele romance, Os Maias, é afinal o romance da destruição dos Maias, da destruição moral dos Maias. Ninguém lhes disse que a sua função de leitores é a de lançarem a si mesmos o alarme: — Como vai ser possível destruir este potentado de firmeza e esperança que é Afonso e a sua vida no Ramalhete? — Quem o fará? — Como? — Com que consequências? Ninguém lhes disse que, alvoroçados por estas incríveis hipóteses, a cada nova personagem, a cada novo encontro, os taxarão de suspeitos de cumplicidade na destruição do prestígio dos Maias, da família Maia, e lhes seguirão no encalço. Porque ninguém lhes disse que ou a situação inicial permanece e não há romance ou, se há romance — e ele está ali para ser lido — aquela luxuriante situação inicial, minuciosamente descrita nas primeiras páginas, tem o fim encomendado e é promessa de destruição. Que curiosidade tão embotada que não se deixe espicaçar por ir ver o desastre?! E que não goste de ficar a discutir o desastre? Quem foi o culpado quem foram as vítimas?

   Esta orientação, se a houver, será também um impulso para levar cada leitor a, naturalmente, ir estendendo a história da sua própria leitura a outros leitores, partilhando interrogações e descobertas, sentindo-se parte do cacho de leitores do mesmo livro. Lê-lo poderá ser, então, sentir a emoção de uma forma de pertença: a de, pela leitura, vir ocupar um lugar de proximidade àquele clássico já tão lido em tantos tempos e lugares e por tão diferentes leitores.

   O leitor experiente sabe que o autor não dá ponto sem nó, sabe que há uma pedra no sapato de cada momento da história que nos conta. Sabe que, sem mal, sem sofrimento, não há romance. Sabe que até a boa alma do Júlio Dinis teve de forjar alguns conflitos entre as boas almas das suas personagens para conseguir armar as suas histórias em romance. É preciso dizer-lhes que eles, leitores d’Os Maias, são os donos de perguntas como estas, desconfiadas e até movidas por alguma maldadezinha de leitor: — Vamos lá ver, Carlos da Maia, «distinto e brilhante sportman», viajado e culto, oriundo de boas famílias, como é que te aguentas nesta pasmaceira hipócrita de Lisboa...?

   É preciso dizer-lhes que, se a extensão das sequências iniciais estiver a incomodar a sua curiosidade, porque não saltar, porque não folhear umas páginas e encontrar-se de repente com um suicídio, o de Pedro, e pensar aqui há gato; descobrir a negreira Maria Monforte; rir-se de um bajulador insuportável e ridículo chamado Dâmaso...

   É preciso dizer-lhes que é sempre preferível encontrar razões para voltar atrás do que ficar nas razões para não andar para a frente.

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por Maria Almira Soares às 14:03


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