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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
OS LEITORES FALAM ÀS SENHORAS: Maria Almira Soares
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Quando era pequenina (é assim que se diz, não é?) o meu pai, não sendo quase nada letrado pelo menos formalmente, gostava de histórias: de as inventar ou reinventar e de as contar. Contava teatralmente, delirantemente. E tinha um repertório em que campeavam o José do Telhado, os Quarenta Ladrões, lobos, raposas e cordeiros, anões e princesas, botas de sete léguas, caçadores, meninos perdidos na floresta, bruxas e fadas, moleiros e cavaleiros, mantos de sete cores, rouxinóis e imperadores, avozinhas e bolinhos, sapatinhos de cristal, expressões como «saltou-lhe ao caminho», «pegou no facão», «deu três cambalaritas no ar», «cheira-me aqui a carne humana», «Maria-Bebe-Azeite», «mãos ao ar», «passa para cá a bolsa», «partiram para as cavalhadas», «desfez-se o encanto» ... ... ...
Dentro daquelas histórias, rebentava o mesmo encantamento que me chamava para as brincadeiras. Enquanto ouvia/via o meu pai a contar, um fenómeno de bifrontalidade, semelhante à do anjo da História, transmudava-me o rosto: carinha a ver passar e fugir ‘acontecidas’ maravilhas transportadas pela voz sem leitura; carinha a encher-se do desejo de prolongar, de fixar, de guardar aquelas maravilhas no bolso, o ainda desconhecido desejo de ler. Depois, aprendi a ler.
Em breve, haveria de me aventurar no livro — até aí ignorado — de onde vinham, ainda que transformadas pela inventividade narrativa do meu pai, muitas das histórias que ele me contava... De facto, o meu pai gostava de reinventar as coisas, o real. Assim, com alguns dos livrinhos de histórias que, das suas andanças profissionais por aqui e por ali, ia trazendo para casa, e com um cordel fininho mas forte e uma agulha grande, ele inventara um livro grosso em que os variados livrinhos se sucediam e que eu, agora, lia, sentindo ecos do que tinha conhecido na voz e nos trejeitos e no corpo do meu pai. Assim, li um livro feito de livros: sem sacrilégio, a pequena bíblia do imaginário paternal. Alguma coisa, muito nova na minha vida, tinha começado: a leitura de histórias inventadas. Lido e relido, encaracolado por folheamentos ansiosos em busca daquela história, daquela personagem, daquelas mágicas palavras, o livro ia perdendo estado, à medida que se escoava para dentro de mim: materialmente, era um destroço; magicamente, era um jardim, uma ilha, um mundo maravilhoso.
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