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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
[Excerto da minha palestra durante a ação de formação que dinamizei no dia 7 de dezembro na Biblioteca Municipal de Ovar]
A escola portuguesa do século XXI não é substancialmente diferente da dos últimos anos do século XX. Mas o mundo à sua volta é. Mas os jovens alunos são. Os professores serão? Não sei.
O que sei é que, sendo nós, os professores, quem pede a leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis aos jovens alunos da escola do século XXI, sendo nós quem lha vai apresentar, deveremos começar por refletir sobre as circunstâncias em que provavelmente esta apresentação será feita e sobre o modo como pensamos e sentimos esta situação.
É muito provável que, à partida, muitos de nós estejam convencidos de que não irá ser empresa fácil, de que, para a generalidade dos alunos, não irá ser fácil fazer esta leitura. A nossa experiência vivida e a nossa reflexão não nos deixam grande margem para uma expectativa otimista. Assim, enfrentamos a necessidade de que os nossos jovens alunos do século XXI leiam Saramago temendo o fracasso. O fracasso da leitura inconseguida, rejeitada, sentida como impossível, substituída por paliativos, gerida atabalhoadamente, rendida a mero instrumento de recoleção de saberes-resposta determinados por provas de avaliação escolar.
Sabemos certamente da existência de alguns grandes leitores entre os alunos, mas estaremos sobretudo preocupados com as dificuldades da grande maioria.
Sem prejuízo da sua justeza e fundamentação, a verdade é que este prévio temor do fracasso pode colocar-nos na orla de um perigo. O perigo do preconceito negativo que afetará as nossas opções didáticas. Se dermos como certa ou quase-certa a rejeição desta leitura aceitando-a como um facto inelutável, poderemos ser levados a enveredar por estratégias de resignação que menorizam o mal de não ler, de não conseguir ler Saramago. Deste modo, provavelmente não investiremos na procura de meios cuja aplicação possa desmontar essa resistência e até tornar a leitura, senão totalmente, pelo menos aproximadamente conseguida. Poderemos cair no que nos pareça a única conclusão a tirar: uma vez que não leem, nada a fazer senão arranjar formas substitutivas de aquisição dos conhecimentos programáticos. O romance, esse, ficará intocável ou quase, soterrado pelo fornecimento de uma série de dados que se memorizam. E, assim, se perderá uma importante oportunidade para o desenvolvimento da sua educação de leitores, porque o ler se desenvolve à custa de todas as experiências e de todas as tentativas de leitura, mais ou menos conseguidas, mais ou menos conflituosas, mas nunca com desistências. A desistência marca como uma prova de que sou incapaz de ler ou, até, de que não gosto de ler.
Não nos resignemos, pois, perante as declarações de rejeição da leitura de Saramago por grande parte dos nossos alunos; não recuemos, logo de início, perante as suas mostras de desgosto e aborrecimento.
Ao recuo inicial de aceitação da não-leitura, penso ser preferível — e mais frutífero — o recurso à preparação e à orientação dos leitores. Ainda que esta opção possa retirar autenticidade ao caráter autónomo da leitura, é preferível optarmos por esta intervenção orientadora, certos de que, sem ela, nem autónoma nem acompanhada a leitura se faria.
Tal estratégia inicial não nos dispensará, no entanto, de ficarmos na expectativa de prováveis pequenos recuos perante dificuldades de percurso que se lhes deparem, da necessidade de irmos acorrendo a persistentes dificuldades, de colmatarmos falhas, atentos aos sinais de alarme da desistência. Deste modo, entre os recuos e os avanços do seu próprio processo de leitura, que procuraremos acompanhar, os alunos não deixarão de ir fazendo progressos quanto à sua proficiência de leitores. A leitura desenvolve-se lendo.
Tentaremos, assim, evitar que o romance se transforme em mero álibi da apreensão, por via alheia e alienante, de respostas a devolver em sede de avaliação. Evitaremos que se caia no absurdo de saber debitar ‘coisas’ sobre O Ano da Morte de Ricardo Reis, sem o ter lido! Saramago não o merece! Nem Saramago, nem nós nem os nossos jovens alunos do século XXI! Transformar os romances de Saramago em espécimes organizados em cláusulas compendiáveis ad usum escolar é trair a belíssima utopia do o ler na escola do século XXI. Sem utopia não há futuro. E ser professor, como dizia Vergílio Ferreira, é «colaborar mais eficazmente com o futuro.»
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