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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A verdade é que, mesmo quando julgamos estar muito certos do teor de uma dada situação — como por exemplo esta da rejeição da leitura por parte dos alunos — nunca será contraproducente a sua questionação, e muito mais ainda quando se trata de questões didáticas, tendo elas, como sempre têm, um flanco sempre por construir, aberto a cada maré de alunos que vem ter connosco e que tantas vezes desmente as ideias de que vínhamos enformados.
Só num tempo-espaço de preparação e orientação da leitura em que tomaremos o pulso às suas vivências e experiências de leitores, saberemos até onde vai a razão dos nossos receios. Lembro-me, por exemplo, de uma surpresa monumental que tive quando um rapaz com ar de ser muito pouco sentimental, declarou na aula que a leitura de Amor de Perdição o fazia chorar. Insondáveis são os caminhos da leitura que não passa só pelos olhos mas sobretudo pelo coração. E, sendo a vida hoje em dia e sobremaneira entre os jovens, muito mais conduzida pelo despertar de emoções do que pelo analisar de racionalidades, talvez consigamos encontrar, em Saramago e nomeadamente neste seu romance, focos de maravilhamento que atraiam os jovens para a leitura, não obstante as suas dificuldades.
Estou convencida de que ler é uma coisa muito mais de imaginário do que de literacia. Já uma vez ousei até escrever que existem leitores analfabetos. A identificação-reconhecimento de imaginários que nos façam vibrar emocionalmente pode frustrar a iliteracia ou a literacia muito pobre de romances do nível de O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Tenho para mim que há dois tipos de abordagem que, conjugados, poderão facilitar o acesso a este romance, por parte dos jovens leitores: — o da aproximação através do reconhecimento de sinais e situações frequentes e significativos nas suas vidas; e o da ênfase a dar à vertente emocional da leitura.
Ora, para bem orientarmos os nossos alunos no encontro-descoberta do imaginário projetado neste livro e na relação emocional que esse imaginário lhes possa despertar, é precaução fundamental procurarmos aclarar a consciência — a nossa e a deles — dos contextos, epocal, grupal, pessoal em que a sua leitura se faz.
Tratemos, pois, de apurar este conhecimento, não em abstrato, mas por via do contacto direto e continuado. Façamo-lo prevenidos de que, em cada momento, a realidade e a vida estão sempre acima dos quadros doutrinários que sobre elas se constroem.
Dentro desta ordem de ideias, é fundamental que iniciemos o caminho para este romance com uma conversa ambientadora, que tentemos criar um ambiente de verdade e autenticidade em torno das condições da sua leitura.
Assim, neste século XXI em que damos como certo que a apetência de ler é minguada, comecemos por dialogar com os alunos pondo claramente em cima da mesa das aprendizagens o julgamento que de si próprios fazem enquanto leitores; a rede de interesses de que fará/não fará parte, para eles, a leitura; o como vivem as leituras que conseguem/não conseguem fazer e as conclusões que daí tiram; quais são, para eles, os obstáculos e os incentivos da leitura, subjetivos e objetivos, íntimos e alheios; o lugar que ocupa a leitura na sua vida e os sentimentos que têm em relação a isso.
Esta conversa aberta à sua revelação como leitores, criará momentos de afirmação/ negação, de expressão de si mesmos, antes que eles, sem mais discussão, pendurem o livro na frase «Vamos ter de ler aquela seca d’O Ano da Morte de Ricardo Reis».
Como primeira entrada para a tal saída feliz que — todos sabemos — não irá ser fácil, uma boa conversa ambientadora servir-nos-á para descobrirmos/ confirmarmos o que sabemos daqueles alunos no seu contexto de leitores e para, provavelmente, durante essa conversa, a certa altura, lançarmos a frase «E que tal isto?» passando de imediato a ler em voz alta um texto (bem escolhido) de O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago mesmo sem referir a obra. E esperar por reações espontâneas. E colher essas reações.
Em minha opinião, esta conversa ambientadora será muito preferível àquele tipo de apresentação que consiste no mero anúncio de que têm de ler o livro tal e de que ele tem de estar lido no dia x como obrigação escolar, deixando-os, depois, sozinhos com essa tarefa, para se amanharem (e desculpem-me esta palavra) como puderem.
Tratar-se-á também de uma preparação da leitura deste romance específico, que, em função da sua condição de leitores, capte e releve perspetivas de pontes entre eles, jovens leitores do século XXI, e o livro de Saramago.
Ora, para que esta preparação inicial seja verdadeiramente produtiva, será bom que comecemos por clarificar, em nós, a consciência que temos acerca do contexto epocal que cria entraves ao gosto e à capacidade de ler. Assim, compreenderemos melhor os nossos jovens enquanto leitores. Eles são as vítimas absolutas e desarmadas desse contexto, porque nele já nasceram. Evitemos, no entanto, dar-lhes oportunidade de o transformar em álibi para não lerem e consequente desresponsabilização do ato da leitura.
É, pois, muito importante que o professor tenha consciência clara das linhas com que se tece o ambiente epocal, no qual vai pedir aos alunos que leiam, muito por causa até de lhe descobrir antídotos que lhe ludibriem os malefícios.
Entre outras, essas linhas de reflexão poderão ser:
— a vivência de um tempo pouco consentâneo com o ritmo da leitura: um tempo veloz e volátil, impulsionado por induzidas necessidades de substituição rápida dos objetos de desejo ou de interesse; um tempo vivido na ansiedade da posse da coisa nova e do descarte daquilo que, muito rapidamente, se faz antigo; um tempo de insistência no que é imediatamente óbvio, acionável nem sequer já rapidamente mas momentaneamente; um tempo de ser impaciente com as demoras, pelo medo de perder as novidades nunca antes vistas ou experimentadas; um tempo em que a metáfora estar a la page (literalmente ‘estar na página’), radicada no campo semântico do livro, enraizada na experiência da leitura e com a qual significávamos ‘estar atualizado em termos de conhecimento e informação’ morreu para a expressão estar on line;
— a tendência reinante para o apagamento do antigo (e antigo começa a ser o que aconteceu ontem), para a experiência do tempo como uma sucessão de cortes e recortes, para a depreciação do que perdeu velocidade, do que está parado, adormecido, como é o caso dos livros clássicos, para a verificação da incapacidade de, perante a avalancha de novidades, manter viva a herança literária;
— a invisibilidade/pouca visibilidade social, pública, da leitura e dos livros, no espaço aqui e no tempo agora;
— a euforia da eficácia, da utilidade, do imediato conforto, que desemboca na pergunta «Para que serve?», inimiga da leitura de um clássico, porque se limita à procura de respostas no nível da exterioridade e do imediato, na ordem prática da vida;
— o delírio consumista que precisa do apagamento da consciência íntima e da desistência de quem somos ou queremos ser para agirmos sobre o mundo, fazendo de nós um conjunto de imediatos atos-reflexo, de seguidores de padrões, perdida a capacidade de distanciação reflexiva e, daí, a tendência, no que toca à leitura, para a superficial procura do livro mais fácil, mais rápido, mais direto, produtor de retorno-resposta linear;
— a verificação de que a leitura do romance de Saramago não se encaixa harmonicamente nesta vertigem de novidades constantes, devoradora do poder de atenção e de concentração;
— a consciência de que, embora implantada num mundo em que os limites do centro comercial tendem a alargar-se à ocupação de todo o perímetro da polis e da vida, não deixando ao humano senão a hipótese de ser consumidor, a escola não pode tornar-se uma loja de gadgets atrativos;
— a consciência de que a vida no século XXI requinta na reinvenção e alastramento do consumismo, tendendo a fazer do humano um mero reflexo do que está na montra, invertendo a direção do desejo.
A partir destas reflexões sobre o contexto em que se lê/não se lê, no século XXI, consideremos, agora, alguns contrapoderes que, nele, apesar de tudo, poderão ser exercidos:
— o papel fundamental da Biblioteca Escolar e da Biblioteca Pública no contrariar desta tendência/estado de coisas, pela exposição e experimentação pública da leitura e dos livros;
— o papel da montra e do escaparate da livraria como factor de visibilidade e como polo atrativo, no quotidiano da paisagem urbana em que o aluno habita, pela qual, quiçá, passa a caminho da escola;
— a colaboração reciprocamente frutífera entre o espaço-biblioteca, o espaço-livraria e o espaço-escola;
— o interesse-esforço por tornar o livro visível na paisagem, fotografá-lo, partilhar a sua imagem, quiçá nas redes sociais, contribuindo, assim, para que o olhar social se habitue à sua presença;
— a assunção do professor como lugar de uma espécie de magistratura de influência sobre a saliência do livro na vida social, relacional, no quotidiano;
— a procura, por parte do professor, e dada a sua posição privilegiada como fulcro de relações intergeracionais, do alargamento de vias contra o fechamento de círculos etários, no que ao interesse pelo livro diz respeito;
— o favorecimento do reencontro do livro de leitura escolar noutros espaços físicos e conversacionais que não somente a escola;
— a facilitação da intercomunicação de grupos de interesse fechados, desfazendo a sensação de que sou só eu, ou de que isso nada tem a ver comigo, ou de que isso são lá coisas de ou de que isso não é a minha praia...
— a desmistificação de afirmações falsas ou enviesadas (uma espécie de fake news no domínio do livro e do ler) sobre o tempo disponível, os estímulos enganosos, as imitações, os simulacros, os efeitos nefastos da repetição de lugares-comuns a este propósito;
— a procura, pela imaginação e pelo pensamento crítico, e respetiva evidenciação, de sinais menos massivos, que sejam contrariadores do estado de coisas dominante e profícuos nesta época em que tudo ou quase tudo se alimenta da visibilidade, da publicidade. Por exemplo: a papeleta pendurada na porta a dizer «Silêncio, estou a ler Saramago.»; o edital na Biblioteca da escola, na porta da sala de aula, no corredor escolar: «Aqui lê-se Saramago», «Por aqui passam alunos que leem Saramago»; o autocolante na lapela: «Eu ando a ler Saramago.»; a constituição e denominação de grupos como por exemplo «Clube dos leitores vivos» ou «Nós, os que lemos Saramago, saudamos-te!», ou slogans como «Saramagar é o que está a dar»...
A consciência, a sensibilidade e a inocência de Nick Carraway atravessam a sociedade americana da Jazz Age, traçando um percurso trágico: desde o grande sonho de James Gatz do Dacota do Norte até ao abandono e solidão na morte de Jay Gatsby em West Egg, Long Island. Uma metamorfose reveladora da significação profunda deste romance.
Nesta viagem pela sociedade americana dos Anos Vinte, Nick Carraway cruza-se com Tom e Daisy Buchanan e Jordan Baker (os do ‘old money’), com Myrtle e George Wilson (os do ‘no money’), com Meyer Wolfshiem (o do ‘ilegal money’), com Jay Gatsby (o do ‘new money’) e, a partir dessa reveladora experiência, conclui, dirigindo-se a Gatsby:
«São uma escumalha. Você vale mais do que eles todos juntos.»
Esta é a sentença final sobre a «grandeza» de Jay Gatsby. Desde o título, mais oblíqua ou mais retamente, ela é enunciada e, ao longo da história, vai sempre repercutindo, em eco, nesse «great» que lhe acompanha o nome.
Sobre que intensidade semântica se equilibra o significado da grandeza do ‘great’ Gatsby?
— A da ironia do esplendor de vida, que o carácter clandestino e sombrio da origem do seu poder económico desqualifica?
— A do enraizamento na profunda obsessão passional, no sonho de que nunca desiste?
— A da incomensurável generosidade destituída pela ingratidão de um amoral abandono?
— A da terrível enormidade do desmoronamento no vazio da deceção, da dor da traição?
A grandeza de Gatsby tem a complexidade do chiaroscuro própria da humanidade profunda de um grande retrato que, neste caso, não é apenas individual, mas capta uma fatia temporal da História americana, de um tempo que foi também o de Scott Fitzgerald.
Durante os quarenta e quatros anos da sua vida, entre 1896 e 1940, a inscrição de Scott Fitzgerald na agitação da Jazz Age, dos Anos 20, da Geração Perdida, é perfeita e, neste seu romance, tal época está tão bem representada, que conhecê-la será uma chave essencial para aprofundar a leitura.
Foi um tempo em que a luta pelo crescimento da prosperidade andou de mãos dadas com a corrupção. A Primeira Grande Guerra terminara. O desejo de refazer a vida como lugar de negócios lucrativos reativava-se aceleradamente, mas embatia em administrações corruptas, na porosidade viciosa entre sindicatos e crime organizado, na afetação por greves e disputas laborais, na miséria do trabalho infantil, em opções fiscais beneficiadoras dos mais ricos. Crises na agricultura e indústrias locais impulsionavam a fuga das populações para as grandes cidades em crescimento acelerado. As grandes cidades eram símbolo de um ideal de vida melhor, mas tornavam-se armadilha dos sonhos dos desprovidos que as procuravam. Elas eram, sim, o reino dos grandes ganhos financeiros das elites económicas. Os dividendos da Bolsa cresciam exponencialmente. O desenvolvimento tecnológico baixava os custos da produção e fazia crescer a produtividade. Os ricos enriqueciam, viviam em excesso e não sabiam conter os seus apetites. Num progressivo materialismo, cresciam os gastos em bens de consumo: automóveis, rádios, telefones, frigoríficos... em quantidades até aí nunca vistas. Tempo e dinheiro eram gastos em lazer e divertimentos. Crescia a popularidade dos desportos profissionais, do cinema, dos jornais tabloides. As elites económicas e financeiras desprezavam os outsiders, os imigrantes. A emigração para os Estados Unidos da América atingiu, entre junho de 1920 e junho de 1921, o número de 800.000. Começavam a surgir leis restritivas da imigração. Era o tempo da aprovação da 18ª Emenda, a do proibicionismo do fabrico, venda e transporte de bebidas alcoólicas. O negócio ilegal do álcool florescia e tornava-se enormemente lucrativo, ajudando a fazer as grandes fortunas dos novos ricos, o chamado ‘new money’. Os jovens mudavam os seus sonhos e o seu estilo de vida. Os homens regressavam da guerra mudados e encontravam uma América mudada. As mulheres que, durante a guerra, passaram a fazer parte da força de trabalho, queriam manter a liberdade pessoal e social que essa independência económica lhes conferira. A 19ª Emenda dava à mulher o direito de voto. Marca simbólica da emancipação feminina foi o corte do cabelo, esse que tradicionalmente fora indicador de feminilidade. As mulheres reinventavam o seu estilo de vestuário, fumavam e bebiam abertamente, relaxavam a formalidade das suas atitudes para com o sexo, quebravam os moldes em que tradicionalmente os códigos sociais as colocaram.
Nestes Anos Vinte, a condição humana deixava-se infiltrar pela necessidade da corrida rumo ao prazer, à satisfação de sonhos e desejos. Corrida cega, fechada à consciência do outro, imersa na competição egoísta, menosprezadora de quem lhe não fosse afim pelo dinheiro e pela condição social.
Nada difícil é reconhecer que é este o ovo — político, económico, social, existencial — em que se concebem as personagens e a história deste romance de Scott Fitzgerald. É este o ninho em que tudo germina: a brutalidade, a mentira e o egoísmo de Tom Buchanan; a fria desonestidade de Jordan Baker; a fraqueza materialista de Daisy; o viscoso empreendedorismo de Meyer Wolfshiem; a tosca ambição de Myrtle; a frouxa inocência de George Wilson; o sonho excessivo e trágico de Gatsby. Ovo em que, aliás, germinou também a vida do próprio autor.
Scott Fitzgerald, com a sua mulher Zelda, viveu uma vida tão romanescamente excessiva como a das suas personagens. Zelda é uma típica flapper, independente, rebelde, esteta, boémia, glamorosa, assertiva, decadente: um emblema da mulher livre dos Anos Vinte. Ela e Scott Fitzgerald viveram um estilo de vida extravagante, estonteantemente acima das suas possibilidades financeiras, em viagens, festas, excessos. A vida de Zelda e Fitzgerald em França, no seio de uma comunidade de artistas expatriados (Hemingway, Picasso, Léger, Stravinsky, Cole Porter, etc.) inspira numerosas biografias, romances, filmes, séries de TV (cf. Meia Noite em Paris de Woody Allen).
O Grande Gatsby capta o espírito desta época, especialmente a vacuidade moral da sociedade americana do pós-guerra, obcecada pelo dinheiro como via de ascensão social. As suas personagens têm uma verdade historicamente honesta, projetada pelo olhar de Nick Carraway, um jovem, em alguma medida pertencente ao ‘old money’, que procura sustentação financeira como vendedor de obrigações em Manhatan e fixa a sua curiosidade nas manifestações de incomensurável e misteriosa riqueza de um selfmade man e na chusma de convivas que loucamente invadem a desproporção das suas festas, sem qualquer vínculo pessoal com o anfitrião.
Numa prosa imagética e poética, traça-se o espelho de uma sociedade, estilhaçado por linhas de fractura sentimental que nunca deixam de ter uma clara significação social e moral: entre Daisy/Tom/Gatsby; Tom/Myrtle/George Wilson; Nick/Jordan; Nick/Gatsby.
Temas como a justiça, o poder, a ganância, a traição, o sonho americano, a estratificação social, são polarizados pelo ponto de vista crítico do narrador, enformado por um vincado sentido de honra, denunciador da superficialidade, do materialismo, da ausência de compaixão.
Para os ingénuos, os sentimentais, os ambiciosos de inexperiente e baixo quilate, enredados numa teia social desprovida de sentimentos altruístas, sobra apenas a morte: a de Myrtle, a de George... a de Gatsby, o tal que era ‘Great’ no título, e termina GREAT apenas na consciência de Nick e no amor do pai.
E na consciência dos leitores?
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