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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 30.03.19

O JOVEM TÖRLESS de ROBERT MUSIL

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   Robert Musil, austríaco, nascido em 1880, é filho de uma família da alta burguesia que lhe perspectivava a vida como carreira militar. Atraído pela questionação científica, começa por se tornar engenheiro e, mais tarde, atraído por questionações mais profundas do que as científicas, estuda Filosofia e Psicologia. Vive a experiência da guerra — é oficial na primeira guerra mundial. Tenta integrar-se no meio literário de Viena e Berlim. Escreve em jornais e revistas e torna-se funcionário da administração estatal. Em 1938, com a anexação da Áustria pela Alemanha, exila-se em Genebra onde morre a 15 de abril de 1942.

   Em 1906, escreve o seu primeiro romance, O Jovem Törless, ou melhor Die Verwirrungen des Zöglings Törless (As Confusões do Aluno Törless). Tinha vinte e seis anos. A sua grande obra, O Homem sem Qualidades, só postumamente, e incompleta, é publicada. E daí que, só nos anos cinquenta do século XX, Musil se tenha tornado conhecido universalmente.

   Na sua obra, Musil denuncia os sistemas totalitários e desmonta as estruturas autoritárias que são a sua raiz. Fá-lo, não apenas e não sobretudo, através da sua representação naturalista, mas através da análise e exposição das estratégias psicológicas, sociológicas e mentais, antagonistas do humanismo libertador. Em O Jovem Törless, denuncia particularmente as estruturas autoritárias constitutivas das mentes e atitudes bem-pensantes, acerca da educação-formação, no império Austro-Húngaro, no início do século XX. Fá-lo através da criação da personagem do adolescente Törless e das suas reações, quando confinado ao universo relacional de um internato militar. Musil experimentou sistemas autoritários quer na instituição militar quer no funcionalismo público da época: os malefícios do cumprimento cegamente zeloso do dever que destitui o homem, aparentemente virtuoso, das suas qualidades profundamente humanas como a criatividade, a liberdade, a iniciativa interventora.

     O Jovem Törless é um desses romances de formação — como O Retrato do Artista enquanto Jovem de James Joyce ou A Idade da Razão de Jean-Paul Sartre, — cujo protagonista está em viagem para a maturidade, em crescimento espiritual, moral e intelectual, sexual, desenvolvendo o entendimento de si mesmo, dos outros, do mundo. Esta personagem central é um adolescente que vive as contradições e o sofrimento de um percurso de procura da maturidade-independência, enquanto vai pisando o território de todas as inseguranças. Neste quadro, emergem anseios, urgências sexuais, sensualidade nascente, pensamento próprio, estranhamentos, perplexidades, que o situam na fronteira — ou para lá da fronteira — da submissão, do ódio, do sadismo, do masoquismo, frutos também, ou sobretudo, desse universo autoritário a que está confinado. Törless é um campo de profundas, insuportáveis tensões, no meio das quais, por outro lado, emerge a necessidade de questionação de factos, de pessoas, de linguagens.

   Törless procura o valor e o sentido da convivência da verdade/mentira, da dor/prazer, do erro/retidão e equaciona a questão fundamental: que relação necessária é essa entre o mal e o bem? Acaba, no final do romance, por ser alguém entrincheirado numa fria indiferença acomodada na desvalorização do acontecido, na formalidade e estetização da vida, no distanciamento, na demissão de juízos morais graves — consequência nefasta do que foram os anos da sua formação, essa vivência das relações humanas dominadas por estruturas autoritárias, causa do fortalecimento e da aceitação da violência sobre o outro, quanto mais não seja por omissão.

   Musil dá relevo à análise psicológica e filosófica, mas não deixa, inevitável e desejavelmente, de fazer a representação naturalista da tortura física, do abuso psicológico, do bullying, da violência sexual perpetrados sobre o mais fraco, o «nada», o ‘coisa’, Basini: por Beinberg que veste a figura do asceta moral implacável e hipócrita; por Reiting, o fascista, verdadeira personalidade autoritária que impõe a obediência, levando os colegas ao ataque, à tortura, à punição violenta do mais fraco. A significação mais profunda do romance, porém, não está nesta representação, mas na evidenciação dos factores psicossexuais presentes na mentalidade autoritária. As consequências de tais factores revelar-se-ão, posteriormente, de forma visível e total no fascismo europeu. Trata-se do ovo da serpente, da emergência do mal. Anos mais tarde, por volta de 1930 — já se adivinhava a emergência do nazismo — Robert Musil estabelece uma relação entre a essência deste seu primeiro romance e a raiz do fascismo: cidadãos comuns, pouco interventivos, com um comportamento moralmente aceite, que odeiam o seu vizinho mas nunca se esquecem de cumprimentar e agradecer, são capazes dos atos nefandos que vieram a verificar-se.

   O Jovem Törless cava ainda mais fundo no interior dos comportamentos humanos.

   Há, neste romance, um aprofundamento de ordem filosófica do papel do desconhecido e do incognoscível no mistério do ser humano, dos seus mundos e desejos inconscientes e subconscientes, através da original e eficaz metáfora dos «números imaginários», entes matemáticos inexistentes mas intervenientes no resultado que procuramos. O incognoscível do ser humano mistura mal e prazer. Subjaz ao romance e nele se manifesta a reflexão sobre a impossibilidade de conhecermos toda a banda e fundura do que somos e de, mesmo assim, avançarmos, termos de avançar, de viver, de, em todo o caso, darmos passos sobre o vazio, deixando que esses buracos negros incognoscíveis estejam lá e garantam, também, a prossecução dos nossos atos.

     O Jovem Törless trata do que acontece quando a insegurança conduz ao preenchimento, desses lugares desconhecidos de nós, por um medo extremo que conduz à violência, à aceitação do que simultaneamente nos repugna.

   Três rapazes levam a cabo ações de tortura sobre um outro, porque estão presos numa ordem psicológica de domínio/submissão que — num plano além do dos preconceitos morais — os faz afirmarem-se por comportamentos de identificação/rejeição marcam os ‘fracos’ como seres a serem oprimidos. No fim desta história, nem a religião nem a ciência nem a filosofia ajudam Törless a compreender o que viveu. Não compreende, mas avança. Reprimindo os seus próprios desejos sombrios de domínio dos outros, assume uma atitude não interventiva, moralmente distanciada, não-resistente como forma de autodefesa.

   Neste primeiro romance, estão já linhas de força fundamentais em Musil: a análise das estruturas psicológicas e políticas subjacentes à modernidade do século XX; o reconhecimento da crise da linguagem (não esquecer que Musil foi vizinho de Wittgenstein); a denúncia do mundo estereotipado. A sua leitura ajuda-nos a compreender a nossa contemporaneidade, um tempo de invasiva estandardização dos pensamentos, dos objetos, das pessoas, em que a linguagem se deteriora num punhado de abreviaturas utilitárias; a idade da globalização, da homogeneidade e da redução de quase tudo ao menor denominador comum; a idade do dinheiro, do virtual, do ‘mesmismo’. No complexo de ideias subjacentes à obra de Musil, em que ele evoca os segredos e os escândalos das cosmopolitas Viena e Berlim dos anos 20 e 30, inscreve-se a defesa do individual, do idiossincrático, do pensamento, da palavra, do ato livres.

 

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por Maria Almira Soares às 13:57


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