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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Imaginemos que um romance é uma casa. Aberta à visita dos leitores.
Lembro-me de duas casas, já antigas: A Rosa do Adro e Madame Bovary. Ambas abandonadas.
A Rosa, fechada, esquecida, coberta de pó, lá para zonas da cidade por onde já ninguém passa, volatilizou-se em pequeníssima memória-história. Ninguém visita a sua ruína. Às vezes, sofre uma referência em conversas de gente antiga como eu que a evocam supondo-a jazente no cemitério dos romances.
A Emma recolheu-se à biblioteca conventual da Irmandade dos Leitores Afetos a Antiguidades Literárias (ILAAL) e, aí, foi musealizada. Nessa condição de peça de museu, é visitada por especialistas e outros seres afetos a preciosidades literárias pouco cógnitas.
A Rosa, sepultada, é lembrada nas orações de quem a conheceu.
A Emma, empalhada dentro das suas vitrines de segurança, é contemplada por quem a cultua.
Entretanto, na Atualidade, esse país confuso de paisagem redutora, a vida continua e os arquitetos de romances continuam a vicejar e até a florir.
Os herdeiros do género rosa — gente apressada, atabalhoada — enveredam pelo fabrico de tendas em vez de casas e produzem, em série, romances-tenda montáveis e desmontáveis e rentáveis onde nem a Rosa, a do Adro, se bem a conheci, gostaria de habitar.
Os descendentes do género emma, embora apequenados pelo esgotamento da imaginação e do rasgo criativo e contaminados também, diga-se, pela pressa própria da época, persistem na sua edificação. Em tal aperto, tornam-se sensíveis ao fácil aproveitamento do risco das atávicas paredes abandonadas, mas, apesar de tudo, já feitas, da velha e abandonada casa da Rosa e é lá que colocam as suas emmas, as que poderiam ser, mas não são da estirpe Bovary.
Nós, os leitores completamente desinteressados de romances-tenda, visitas de romances-casa, ao pretendermos visitar uma emma, acabamos a sentir o perfume fácil de uma rosa. Perplexos e desiludidos, remoemos: — Mas esta não era a Rosa?!
Conclusão: Nem Rosas nem Emmas. Umas coisas. Em forma de casas. Em forma de romances. Como, ao princípio, imaginariamente combinámos.
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