Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Julio Cortázar, Rayuela
«Rayuela», o jogo da macaca, uma persistente e repetida procura da última casa que, as mais das vezes, ou sempre, falhamos. Um jogo. Ganhamos? Perdemos? Nunca chegamos a ganhar definitivamente. Nem a perder. A vida. Movimento. Insegurança. Saltos de lugar em lugar, de situação em situação, de pessoa em pessoa. Indo em frente, voltando atrás, recomeçando. Rayuela, jogo, essência mas também forma. Explicitada na criação de uma referência metaliterária: Morelli. Morelli e os seus escritos trazidos para o plano da narrativa/escrita, um alter-ego literário de Cortázar a respaldar as suas opções no que à montagem da história diz respeito. Morelli, o defensor do aleatório, ele também ficcionalmente fruto do mais puro acaso, antagonista do que chama «romance crepe-chinês» ‘comestível’ de uma ponta até à outra. Esta literária ousadia morelliana, mas também aquele exorbitante atrevimento da condução da leitura cortazariano. E ainda outras extravagâncias discursivas e distorções linguísticas: a invenção do glíglico, o dialeto dos amantes; a alternância gráfica, linha sim/ linha não, de duas fontes e continuidades discursivas no mesmo texto; o h inicial a acrescentar às palavras o modo psicológico da sua articulação; a construção de sentido através do halo referencial projetado de citações e ecos culturais; a dinâmica sempre dialética, às vezes quântica, das sequências — Tudo, na forma e na essência, é rayuela, jogo.
Rejeitados linhas e invólucros ordenadores, todo o recheio do inexistente crepe se derrama, se fragmenta, e, no entanto, não deixa de ser recontável, referível: um grupo de jovens amigos, artistas, intelectuais, ociosos, em Paris, anos 50 do século XX: Etienne, Gregorovius, Maga, Horacio, Ronald, Babs, Perico, Wong, Guy. Várias nacionalidades, vários desenraizamentos, várias carências, várias procuras. Amizade. Amor. Traição. Egoísmo. Leviandade. Cobardia. Humanidade. Encontros e desencontros. E ainda, no banho parisiense em que se movem, Berthe Trépat, clochards, Pola. Uma teia. Fios que se vão segregando, enredando, sob o olhar dominante, explícito ou subterrâneo, do argentino Horacio Oliveira que, com Maga, a uruguaia, e o bebé Rocamadour, expoente supremo deste caos, geram um eixo irradiador da relação feminino/masculino, do amor, da morte, do afastamento, do sofrimento, das afinidades, das indiferenças, das contradições, das obsessões, da separação, da partida.
Um romance de personagens, na sua dimensão humana, intelectual, artística, sociológica, psicológica. Um portento na construção de personagens, talvez o seu ponto mais forte, este romance. Com grandes e pequenas pinceladas, do corpo-inteiro aos pormenores mínimos significativos. Só pela personagem de Maga, vale a pena a sua leitura. É um pedaço de vida, uma viva fatia de uma era cultural. Personagens que são indivíduos, que são terreno relacional, que são coletivo sob a figura do Clube da Serpente; que se organizam em dinâmicas de alternância, de ziguezague, em saltos quânticos, em simultaneidades. E Paris. Uma certa Paris é também a grande personagem. A sua geografia humana. Um certo imaginário parisiense gizado e vivido no olhar do exilado intelectual e artístico. As ruas, os encontros improváveis. Uma Paris velha, gasta, vivida, suja, pobre, decadente, caldeirão de procuras, cenário de trágicos desenraizamentos, a luz sombria, o sofrimento, uma baudelairiana flor do mal, a desordem, o álcool, a raia da loucura, as vidas vividas no fio da navalha, sem filtros nem defesas, boiando num realismo mágico citadino.
Não só no fundo, também na letra do romance, as personagens emergem, vivíssimas, num aparentemente desarticulado conjunto de intromissões reflexivas-teoréticas-filosóficas, numa colagem de fragmentos-citações, uma varia semeada, quiçá, ao acaso (e não é o acaso rayuelianamente significativo?).
Tem, este caos, já não digo um desenlace, mas uma finalidade, uma tendência? Tende, sim, tende para o fim, para a partida, para o abandono, para um regresso chamado Buenos Aires que carrega consigo outros fins, o de Maga talvez. O trágico tende para o burlesco, para a loucura: o circo, o manicómio, a transferência alucinatória do real para o fantasmagórico, com novas personagens: Talita, Manolo (Manu) Traveler, Gekrepten...
E o fim? O fim mesmo?
«Pof!»
Ou:
«Hum-hum (Que tal monges beniditinos?)»
Há palavras que vivem descansadas nos vocabulários das línguas sem que quase se dê por elas, que são usadas sem causar qualquer alarme, são quase invisíveis e de repente… De repente surge uma conjuntura, um facto, uma circunstância de uso que lhes dá visibilidade e relevo, que as faz andar de boca em boca. Recentemente aconteceu com a palavra parvo, a propósito de Parva que sou, canção dos Deolinda. Curiosamente a circunstância fez com que fosse no feminino: parva. E o que também é curioso é que a palavra parvo até tem uma história semântica engraçada. Começou por significar, em latim, pequeno, isto é, de tamanho diminuto, insignificante, com pouco valor e importância. Daí que, como um tolo é uma pessoa com pouco bom senso, começou a chamar-se parvo, não a quem era pequeno em altura, mas pequeno de juízo, a quem tinha pouco juízo, o tolo. Parvo começou por se aplicar ao que era pequeno em geral, mas depois o seu sentido especializou-se para quem é pequeno de juízo, quem tem pouco juízo ou faz coisas pouco ajuizadas. Em latim, os baixos eram parvos; hoje em dia, pode-se ser parvo, mesmo sendo grande em altura. E com esta mudança, como é evidente, a palavra reforçou a sua hipotética conotação negativa. A palavra parvo tem uma grande fortuna em expressões idiomáticas. Há uma quantidade de ditos e expressões em torno dela: fazer figura de parvo; armar-se em parvo; fazer dos outros parvos; fazer cara de parvo;comer por parvo; chuva molha-parvos; chama-lhe parvo!; a minha alma está parva… Já para não falar na parvalheira, termo usado para uma terra com pouca gente e poucos motivos de atracção. Com Gil Vicente, o parvo ganhou estatuto de personagem. Os parvos vicentinos são figuras que nos fazem rir por serem tolos, desacertados do bom senso nos seus comportamentos, nos seus gestos, no seu uso da linguagem, mas, simultaneamente, vão dizendo verdades com um despudorado sentido crítico. Produzem sentenças inopinadas mas plenas de realismo. A sua loucura liberta-os das baias do que diríamos hoje politicamente correto. O Parvo vicentino é um herdeiro do sot, das sotties medievais que, com as suas tolices e parvoíces faz rir. Mas é também, simultaneamente, devedor do Elogio da Loucura de Erasmo, quando representa aquela inocência, aquela inimputabilidade para dizer tudo que a loucura permite. Representa a ideia de que só sendo louco, sem-razão, sem-juízo, se pode ser inocente, puro, num mundo em que tudo está contaminado por segundas intenções. O teatro vicentino é talvez o lugar de referência mais conhecido para esta figura do Parvo, mas há outro lugar interessante: o dos contos tradicionais onde encontramos a conhecida história do João Parvo. «Era uma vez uma mulher que tinha um filho que se chamava João. Mas ele era, coitadito, meio parvo…» Curiosamente também o parvo vicentino se chamava Joane. João é um nome vocacionado para generalizações, tipificações. Este parvo do conto tradicional revela a sua parvoíce, enquanto incapacidade de reconhecer situações novas e de saber transferir conhecimento adquirido, adequando-o com eficácia a uma situação diferente. Não para de persistir no mesmo erro. É um infeliz sempre a ser ultrapassado por uma circunstância diferente que ele não tem capacidade de ler. Atravessa a vida sem malícia, mas aos ingénuos, aos parvos, ninguém dá presentes. Este João Parvo é, por assim dizer, ainda mais parvo do que os parvos vicentinos, porque não tira absolutamente nenhum trunfo da sua parvoíce nem surte nenhum efeito perante os outros senão o do riso. É a vítima total de si mesmo. Digamos que o vicentino é o parvo espertalhão que escapa do inferno driblando o diabo, enquanto este é o parvo patético que, de todos, apanha tareia. Como muitas vezes acontece com os contos tradicionais representa um tópico universal que tanto se encontra em Portugal como na longínqua Rússia, por exemplo, na figura de Babine do texto do escritor russo Leon Tolstoi,que se inspirou numa antiga história russa. Seja como for, há um traço semântico comum a todos estes parvos: ser parvo é estar ou pôr-se fora do jogo, não fazer parte. O parvo faz, da sua desqualificação atribuída a outrem, o argumento contra quem o injustiça, vitimizando-se. Ser parvo é o argumento do parvo.
Ouvir o título de um livro, antes de partirmos para a sua leitura, é antecipar inevitavelmente um sentido. Quando ouvimos um título tão forte como este, O Coração das Trevas, o mais certo é imaginarmos que, através da leitura, vamos penetrar num lugar tenebroso, lendo, em «coração», um centro recôndito, núcleo e motor. Não sabemos ainda que trevas serão essas. Mas, se, por hipótese, já tivermos ouvido falar de Joseph Conrad, talvez nos ponhamos a adivinhar algum lugar, simultaneamente terrível e de difícil acesso, até onde a sua vida e o seu espírito aventureiros tenham chegado.
Isto será antes da leitura.
Por outro lado, depois de termos lido o livro, talvez nos contentemos em pensar que ele nos descerrou um lugar oculto num continente selvagem, uma África perigosa, difícil, desumana, polissemicamente negra, que esconde ações/sentimentos terríveis, crueldades, excessos, a desumanidade da ganância. Talvez tomemos este livro como denúncia política de crimes contra a humanidade, numa mistura de poder e sangue, aumentando, assim, o valor metafórico do título. E já não é pequena coisa que o façamos.
Mas, se já tivermos lido que o marinheiro Conrad, nas suas viagens narradas, ultrapassa o exotismo geográfico, para penetrar em paisagens comportamentais insuspeitadas, expostas pelo ser humano quando posto em situação, talvez pensemos na impossível unicidade de ser igual a si próprio em quaisquer tempos e lugares, no incumprimento, no intervalo, na falha, na mentira, presentes em personagens de «la tragédie de l’inexactitude», «des colons qui, parvenus au coeur des tenèbres, perdent pied et s’enfoncent dans une violence sans limites» de que Conrad, nos seus livros, também trata.
Será então que, regressados ao título, ao Coração das Trevas, haveremos de perceber que o abismo mais profundo e mais negro que nos desvenda é entre:
— «O horror! O horror!» — últimas palavras de Kurtz
e
«A última palavra que ele pronunciou foi… o seu nome.» — a mentira de Marlow à «prometida».
Então, haveremos de pensar que o abismo não reside no fundo quase inacessível e perigoso de territórios perdidos no centro latejante do coração de África. O abismo abre-se, espantoso e nefando, entre a cidade branca, a «cidade-túmulo» do norte da Europa e os confins da África, terra tumular de vidas de pouco ou nenhum preço. O profundo intervalo moral, a funda mentira, o covarde incumprimento!
A fatal incoincidência entre o Mr. Kurtz europeu e o Mr. Kurtz em África!
É preciso subir o rio Congo para descobrir que as trevas estão no coração do homem: a tenebrosa paisagem do coração do homem. E, se assim for, se tivermos chegado até aqui, talvez nos lembremos ainda das palavras de Amin Malouf: «Contrariamente à ideia preconcebida, o erro secular das potências europeias não foi terem querido impor os seus valores ao resto do mundo, mas muito exatamente o inverso: terem renunciado constantemente a respeitar os seus próprios valores nas suas relações com os povos dominados. Enquanto este equívoco não for resolvido, corremos o risco de voltar a cair nos mesmos erros.»
Deste modo, não leremos, neste livro, apenas a difícil e perigosa viagem de Marlow ao coração das trevas, mas a entrada reflexiva nas trevas de um coração.
Desde o princípio somos avisados de que as não devemos procurar apenas lá na longínqua e selvagem África:
«— E este também foi um dos lugares negros da terra — disse, de súbito, Marlow.», ancorado no londrino Tamisa. «Mas aqui havia trevas ontem.»; «frio, nevoeiro, tempestades, doenças, exílio e morte»; «a selvajaria absoluta se cerrou em seu redor».
Por isso, haveremos ainda de pensar que o abismo não é só entre dois rios, o Tamisa, europeu, navegável, cosmopolita, aberto ao mundo e o Congo, africano, difícil, fechado entre os muros da floresta imensa e densa, sobre o qual, abismo, esta narrativa de Marlow é a ponte possível: há falhas sobre as quais só as palavras podem ser a ponte. Haveremos de pensar que o abismo, a falha, o desvio, não é só o do tempo, esse desencontro cosmicamente, cronicamente, irresolúvel; entre uma Britânia bárbara, esmagada pelo Império Romano, e uma África inocentemente selvagem, esmagada pelo comércio do marfim. Não é só de um olhar outrora-agora, de algum modo pessoano, que se trata; não é apenas à travessia histórica do caminho das trevas pelo coração do homem que somos conduzidos.
Se avançarmos ainda um pouco mais por este livro acima, passada a fascinante narrativa de viagens, passada a empolgante história de marinheiros aventureiros, passada a certeira e emocionada denúncia política, haveremos de chegar finalmente «ao meio do incompreensível, detestável mas que ao mesmo tempo possui um fascínio que se exerce sobre ele. O fascínio do abominável».
Chegaremos a Kurtz, a essa experiência inesquecível que reclama a narrativa. Ao fundo negrume, ao latejamento, à pulsação, ao descontrolo, à loucura, como um quase-deus negativo, algo de demoníaco, à descoberta/revelação de uma fonte de mal, de uma experiência-limite do humano. Chegaremos à alma.
Conheço muitos casos de pessoas que, na infância, leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos. Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo. Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro. Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...
Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro. Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis. Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até, a inseri-los no seio de atividades de leitura. Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós. Não apenas para saber distinguir os botões em que carregar e, depois, manter os olhos abertos e os ouvidos focados. Ceder a estas realidades contextuais poderá levar a muitas batalhas ganhas, na infância, mas sou muito levada a pensar que, em muitos casos, essas vitórias darão numa futura guerra perdida, no que à leitura de clássicos fundamentais da literatura universal diz respeito. A boa intenção de evitar às crianças a experiência da tal maçada, as bem intencionadas estratégias motivadoras, determinadas pela antecipação de um temido fracasso, o receio de que um livro menos facilmente acessível ou, só por si, fisicamente modesto, composto quase só de letras negras sobre o branco do papel, seja liminarmente rejeitado, pode levar ao uso excessivo da ornamentação da leitura com coisas mais vistosas, mais agitadas, mais coloridas: coisas cénicas, audiovisuais, gestuais, lúdicas, muito originais como ir para a biblioteca de pijama dormir com os livros, fazer livros com cheiro, fazer livros sem palavras, livros com feitios estranhos, com aspetos exóticos, que sei eu... E, quando se trata de idades mais avançadas já com outras necessidades, desejos e angústias, esse mesmo tipo de estratégia pode levar a estranhas sloganizações prometendo que a leitura é a cura para todos os males... Parece-me haver um excessivo e, por vezes, pouco ponderado proselitismo, no afã atual de divulgar e propagandear a leitura. Eu não digo que se desista do desígnio fundamental de incrementar a leitura. Eu não digo que não se possa relacionar a leitura com a fruição de outras artes. O que eu temo é que, neste pedido de socorro a outras artes (e muitas vezes não são artes), para chamar a atenção para a leitura, haja uma excessiva tendência para esbater o que de facto é ler e uma certa perda de critério de exigência de qualidade e de sentido de responsabilidade para com o futuro dos pequenos leitores que nos empenhamos em motivar. Por vezes, (muitas vezes?) olha-se um livro, que poderíamos ir ler a ou com crianças, e interiorizam-se ou exteriorizam-se apreciações como: tão grande, tão volumoso, sem figuras, com tantas palavras, sem cores... E, daí, procuram-se sucedâneos, companhias, que o tornem ligeiro, colorido, agitado como achamos que as crianças gostam...
Mas...
Será que nunca ninguém leu uma história lindíssima num livro que não devia lá muito à formosura? Eu, já.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.