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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Ouvir o título de um livro, antes de partirmos para a sua leitura, é antecipar inevitavelmente um sentido. Quando ouvimos um título tão forte como este, O Coração das Trevas, o mais certo é imaginarmos que, através da leitura, vamos penetrar num lugar tenebroso, lendo, em «coração», um centro recôndito, núcleo e motor. Não sabemos ainda que trevas serão essas. Mas, se, por hipótese, já tivermos ouvido falar de Joseph Conrad, talvez nos ponhamos a adivinhar algum lugar, simultaneamente terrível e de difícil acesso, até onde a sua vida e o seu espírito aventureiros tenham chegado.
Isto será antes da leitura.
Por outro lado, depois de termos lido o livro, talvez nos contentemos em pensar que ele nos descerrou um lugar oculto num continente selvagem, uma África perigosa, difícil, desumana, polissemicamente negra, que esconde ações/sentimentos terríveis, crueldades, excessos, a desumanidade da ganância. Talvez tomemos este livro como denúncia política de crimes contra a humanidade, numa mistura de poder e sangue, aumentando, assim, o valor metafórico do título. E já não é pequena coisa que o façamos.
Mas, se já tivermos lido que o marinheiro Conrad, nas suas viagens narradas, ultrapassa o exotismo geográfico, para penetrar em paisagens comportamentais insuspeitadas, expostas pelo ser humano quando posto em situação, talvez pensemos na impossível unicidade de ser igual a si próprio em quaisquer tempos e lugares, no incumprimento, no intervalo, na falha, na mentira, presentes em personagens de «la tragédie de l’inexactitude», «des colons qui, parvenus au coeur des tenèbres, perdent pied et s’enfoncent dans une violence sans limites» de que Conrad, nos seus livros, também trata.
Será então que, regressados ao título, ao Coração das Trevas, haveremos de perceber que o abismo mais profundo e mais negro que nos desvenda é entre:
— «O horror! O horror!» — últimas palavras de Kurtz
e
«A última palavra que ele pronunciou foi… o seu nome.» — a mentira de Marlow à «prometida».
Então, haveremos de pensar que o abismo não reside no fundo quase inacessível e perigoso de territórios perdidos no centro latejante do coração de África. O abismo abre-se, espantoso e nefando, entre a cidade branca, a «cidade-túmulo» do norte da Europa e os confins da África, terra tumular de vidas de pouco ou nenhum preço. O profundo intervalo moral, a funda mentira, o covarde incumprimento!
A fatal incoincidência entre o Mr. Kurtz europeu e o Mr. Kurtz em África!
É preciso subir o rio Congo para descobrir que as trevas estão no coração do homem: a tenebrosa paisagem do coração do homem. E, se assim for, se tivermos chegado até aqui, talvez nos lembremos ainda das palavras de Amin Malouf: «Contrariamente à ideia preconcebida, o erro secular das potências europeias não foi terem querido impor os seus valores ao resto do mundo, mas muito exatamente o inverso: terem renunciado constantemente a respeitar os seus próprios valores nas suas relações com os povos dominados. Enquanto este equívoco não for resolvido, corremos o risco de voltar a cair nos mesmos erros.»
Deste modo, não leremos, neste livro, apenas a difícil e perigosa viagem de Marlow ao coração das trevas, mas a entrada reflexiva nas trevas de um coração.
Desde o princípio somos avisados de que as não devemos procurar apenas lá na longínqua e selvagem África:
«— E este também foi um dos lugares negros da terra — disse, de súbito, Marlow.», ancorado no londrino Tamisa. «Mas aqui havia trevas ontem.»; «frio, nevoeiro, tempestades, doenças, exílio e morte»; «a selvajaria absoluta se cerrou em seu redor».
Por isso, haveremos ainda de pensar que o abismo não é só entre dois rios, o Tamisa, europeu, navegável, cosmopolita, aberto ao mundo e o Congo, africano, difícil, fechado entre os muros da floresta imensa e densa, sobre o qual, abismo, esta narrativa de Marlow é a ponte possível: há falhas sobre as quais só as palavras podem ser a ponte. Haveremos de pensar que o abismo, a falha, o desvio, não é só o do tempo, esse desencontro cosmicamente, cronicamente, irresolúvel; entre uma Britânia bárbara, esmagada pelo Império Romano, e uma África inocentemente selvagem, esmagada pelo comércio do marfim. Não é só de um olhar outrora-agora, de algum modo pessoano, que se trata; não é apenas à travessia histórica do caminho das trevas pelo coração do homem que somos conduzidos.
Se avançarmos ainda um pouco mais por este livro acima, passada a fascinante narrativa de viagens, passada a empolgante história de marinheiros aventureiros, passada a certeira e emocionada denúncia política, haveremos de chegar finalmente «ao meio do incompreensível, detestável mas que ao mesmo tempo possui um fascínio que se exerce sobre ele. O fascínio do abominável».
Chegaremos a Kurtz, a essa experiência inesquecível que reclama a narrativa. Ao fundo negrume, ao latejamento, à pulsação, ao descontrolo, à loucura, como um quase-deus negativo, algo de demoníaco, à descoberta/revelação de uma fonte de mal, de uma experiência-limite do humano. Chegaremos à alma.
Conheço muitos casos de pessoas que, na infância, leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos. Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo. Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro. Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...
Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro. Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis. Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até, a inseri-los no seio de atividades de leitura. Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós. Não apenas para saber distinguir os botões em que carregar e, depois, manter os olhos abertos e os ouvidos focados. Ceder a estas realidades contextuais poderá levar a muitas batalhas ganhas, na infância, mas sou muito levada a pensar que, em muitos casos, essas vitórias darão numa futura guerra perdida, no que à leitura de clássicos fundamentais da literatura universal diz respeito. A boa intenção de evitar às crianças a experiência da tal maçada, as bem intencionadas estratégias motivadoras, determinadas pela antecipação de um temido fracasso, o receio de que um livro menos facilmente acessível ou, só por si, fisicamente modesto, composto quase só de letras negras sobre o branco do papel, seja liminarmente rejeitado, pode levar ao uso excessivo da ornamentação da leitura com coisas mais vistosas, mais agitadas, mais coloridas: coisas cénicas, audiovisuais, gestuais, lúdicas, muito originais como ir para a biblioteca de pijama dormir com os livros, fazer livros com cheiro, fazer livros sem palavras, livros com feitios estranhos, com aspetos exóticos, que sei eu... E, quando se trata de idades mais avançadas já com outras necessidades, desejos e angústias, esse mesmo tipo de estratégia pode levar a estranhas sloganizações prometendo que a leitura é a cura para todos os males... Parece-me haver um excessivo e, por vezes, pouco ponderado proselitismo, no afã atual de divulgar e propagandear a leitura. Eu não digo que se desista do desígnio fundamental de incrementar a leitura. Eu não digo que não se possa relacionar a leitura com a fruição de outras artes. O que eu temo é que, neste pedido de socorro a outras artes (e muitas vezes não são artes), para chamar a atenção para a leitura, haja uma excessiva tendência para esbater o que de facto é ler e uma certa perda de critério de exigência de qualidade e de sentido de responsabilidade para com o futuro dos pequenos leitores que nos empenhamos em motivar. Por vezes, (muitas vezes?) olha-se um livro, que poderíamos ir ler a ou com crianças, e interiorizam-se ou exteriorizam-se apreciações como: tão grande, tão volumoso, sem figuras, com tantas palavras, sem cores... E, daí, procuram-se sucedâneos, companhias, que o tornem ligeiro, colorido, agitado como achamos que as crianças gostam...
Mas...
Será que nunca ninguém leu uma história lindíssima num livro que não devia lá muito à formosura? Eu, já.
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