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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sexta-feira, 17.01.20

O AMOR EM TEMPOS DE CAOS?

Julio Cortázar, Rayuela

Cortázar.jpg

     «Rayuela», o jogo da macaca, uma persistente e repetida procura da última casa que, as mais das vezes, ou sempre, falhamos. Um jogo. Ganhamos? Perdemos? Nunca chegamos a ganhar definitivamente. Nem a perder. A vida. Movimento. Insegurança. Saltos de lugar em lugar, de situação em situação, de pessoa em pessoa. Indo em frente, voltando atrás, recomeçando. Rayuela, jogo, essência mas também forma. Explicitada na criação de uma referência metaliterária: Morelli. Morelli e os seus escritos trazidos para o plano da narrativa/escrita, um alter-ego literário de Cortázar a respaldar as suas opções no que à montagem da história diz respeito. Morelli, o defensor do aleatório, ele também ficcionalmente fruto do mais puro acaso, antagonista do que chama «romance crepe-chinês» ‘comestível’ de uma ponta até à outra. Esta literária ousadia morelliana, mas também aquele exorbitante atrevimento da condução da leitura cortazariano. E ainda outras extravagâncias discursivas e distorções linguísticas: a invenção do glíglico, o dialeto dos amantes; a alternância gráfica, linha sim/ linha não, de duas fontes e continuidades discursivas no mesmo texto; o h inicial a acrescentar às palavras o modo psicológico da sua articulação; a construção de sentido através do halo referencial projetado de citações e ecos culturais; a dinâmica sempre dialética, às vezes quântica, das sequências — Tudo, na forma e na essência, é rayuela, jogo.

   Rejeitados linhas e invólucros ordenadores, todo o recheio do inexistente crepe se derrama, se fragmenta, e, no entanto, não deixa de ser recontável, referível: um grupo de jovens amigos, artistas, intelectuais, ociosos, em Paris, anos 50 do século XX: Etienne, Gregorovius, Maga, Horacio, Ronald, Babs, Perico, Wong, Guy. Várias nacionalidades, vários desenraizamentos, várias carências, várias procuras. Amizade. Amor. Traição. Egoísmo. Leviandade. Cobardia. Humanidade. Encontros e desencontros. E ainda, no banho parisiense em que se movem, Berthe Trépat, clochards, Pola. Uma teia. Fios que se vão segregando, enredando, sob o olhar dominante, explícito ou subterrâneo, do argentino Horacio Oliveira que, com Maga, a uruguaia, e o bebé Rocamadour, expoente supremo deste caos, geram um eixo irradiador da relação feminino/masculino, do amor, da morte, do afastamento, do sofrimento, das afinidades, das indiferenças, das contradições, das obsessões, da separação, da partida.

   Um romance de personagens, na sua dimensão humana, intelectual, artística, sociológica, psicológica. Um portento na construção de personagens, talvez o seu ponto mais forte, este romance. Com grandes e pequenas pinceladas, do corpo-inteiro aos pormenores mínimos significativos. Só pela personagem de Maga, vale a pena a sua leitura. É um pedaço de vida, uma viva fatia de uma era cultural. Personagens que são indivíduos, que são terreno relacional, que são coletivo sob a figura do Clube da Serpente; que se organizam em dinâmicas de alternância, de ziguezague, em saltos quânticos, em simultaneidades. E Paris. Uma certa Paris é também a grande personagem. A sua geografia humana. Um certo imaginário parisiense gizado e vivido no olhar do exilado intelectual e artístico. As ruas, os encontros improváveis. Uma Paris velha, gasta, vivida, suja, pobre, decadente, caldeirão de procuras, cenário de trágicos desenraizamentos, a luz sombria, o sofrimento, uma baudelairiana flor do mal, a desordem, o álcool, a raia da loucura, as vidas vividas no fio da navalha, sem filtros nem defesas, boiando num realismo mágico citadino.

   Não só no fundo, também na letra do romance, as personagens emergem, vivíssimas, num aparentemente desarticulado conjunto de intromissões reflexivas-teoréticas-filosóficas, numa colagem de fragmentos-citações, uma varia semeada, quiçá, ao acaso (e não é o acaso rayuelianamente significativo?).

   Tem, este caos, já não digo um desenlace, mas uma finalidade, uma tendência? Tende, sim, tende para o fim, para a partida, para o abandono, para um regresso chamado Buenos Aires que carrega consigo outros fins, o de Maga talvez. O trágico tende para o burlesco, para a loucura: o circo, o manicómio, a transferência alucinatória do real para o fantasmagórico, com novas personagens: Talita, Manolo (Manu) Traveler, Gekrepten...

   E o fim? O fim mesmo?

   «Pof!»

   Ou:

«Hum-hum (Que tal monges beniditinos?)»

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por Maria Almira Soares às 17:14


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