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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sexta-feira, 06.03.20

NA POSSÍVEL TRANSPARÊNCIA DA FICÇÃO

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NA POSSÍVEL TRANSPARÊNCIA DA FICÇÃO

O céu que nos protege de Paul Bowles

   Talvez este romance seja sobre o Sahara, a vida nas cidades do deserto.   Talvez este romance seja sobre a viagem. Não a turística, mas a genuína. Talvez este romance seja sobre um homem e uma mulher. Talvez este romance seja sobre tudo isto. Este romance é sobre um homem e uma mulher viajando pelas cidades do deserto do Sahara.

     Este romance conta-nos a experiência da viagem no deserto norte-africano, vivida profundamente até ao abismo. A entrega ao deserto, sem cortinas, sem resistência. Até com uma certa gula. A gula de experimentar, de se testar no maravilhamento e no risco, na procura do desvendamento de um sentido outro para o ser-se humano, um modo diferente do ser-se americano, do ser-se europeu. Ser-se o quê? O encontro com o que sentem e o modo como vivem homens e mulheres que se vestem de outra maneira, que constroem as casas e as cidades segundo outras ideias. E o pensamento ocidental, vário, sobre o sentido da relação com estes homens e mulheres diferentes: Mudá-los? Preservá-los? Deixá-los entregues a si mesmos? Enfrentá-los? Desprezá-los? Aproveitar-se deles? Deixar que sejam eles a aproveitar-se? Saber cruzar amigavelmente os seus caminhos será possível? Trazendo o «ocidente» na mala de mão? De mãos vazias e peito aberto, sem reservas? Debaixo da abóbada sentida fisicamente, material, do céu do deserto, estas questões adensam-se sob a forma do espanto, do horror, do desconforto, da repugnância, da atração abismal, do maravilhamento, da desistência, do abandono, da subalternização da morte, da entrega, do sofrimento, do engano, da afirmação de poder, da inocência, da duplicidade, da maldade, da estupidez. Paul Bowles é senhor de uma gama de tonalidades do Humano que, neste pródigo terreno, vicejam, crescem, se entrechocam, tecem atmosferas cruéis, venenosas.

   Eixo deste tremendo mapa de emoções, é a viagem. Uma estirpe de viagem que não se confunde com a superficialidade, a precariedade, a autoproteção, a complacência, a desumanidade, até e por vezes, da viagem turística. Bowles conhece profundamente esta estirpe de viagem e as suas várias camadas: real, material, cultural, psicológica, existencial, imaginária, religiosa, simbólica. Bowles, o experiente viajante, sabe quanto a viagem pode ser perturbadora, um corpo-a-corpo com o diferente do qual pode até não se sair vivo. Pela sua experiência de vida, está apto a criar o viajante puro (Port), a viajante sempre em dúvida (Kit), o viajante frustrado (Tunner), a repelente fabricante de spots turísticos a partir da vida de gente que não compreende nem quer compreender, com uma superficialidade cruel mas rentável, ignorante mas poderosa, sabida, autoconfiante (Mrs. Lyle e seu apêndice). A experiência da viagem e os seus contextos desdobram-se num crescendo dramático de situações geradoras de emoções várias de maravilhamento, de nojo, de fuga, de medo, de conflito, de coragem, de rendição, de doença, de morte, de loucura, de corte absoluto. Exotismo? Só mesmo muito, muito, marginal. E mais do leitor do que do romance. Mensagem? Difícil equacioná-la, isolá-la. Viagem sem regresso? Sem paragem? Aviso? Estamos no plano do único, do irrepetível e o único não é exemplar. A chave desta viagem não está no lugar, mas nos viajantes, aqueles e não outros, um Port e uma Kit irrepetíveis na possível transparência ficcional da vida, mas também na alucinatória criação do imaginário literário, da arte.

   Um homem e uma mulher bebem chá no deserto sob um céu que finalmente sairá inocente da sua tragédia. Um homem, uma mulher, um par trágico. Tragédia de ubris e de culpa. De destino? Sem a ubris, sem a culpa, sem o destino, a doença teria sido resolúvel e não teriam fatalmente acabado na morte e na perpétua errância. Port, o jovem apaixonado pela viagem e pelo impulso interior de provar a si próprio e a Kit que haveria ali, para eles, lugares de conhecimento de vidas em estado puro, inocente, e, por isso, impossivelmente felizes. Port, o homem apaixonado por uma narrativa genesíaca sobre o deserto como um éden intocável. Kit a mulher, seguidora, discípula, a viajante do deserto pouco convicta, a intermitente, a cheia de presságios, a suspirante pela amenidade de Itália. Um par. Uma vida de doze anos em comum. O conflito latente. A tentação da tentativa constante. A suspeita da traição e da mentira. O medo. A culpa. A fragilidade e imponderabilidade do amor. A sujeição a Tanner, um manso fermento do mal. Desequilibrador. Menor e, no entanto, poderosa ruína do elo entre Port e Kit. No insuportável calor do deserto, a desconfiança e a culpa transformadas em obsessão e arrastamento até à morte e à loucura. A acumulação das reprovações mudas, das resoluções ocultas, a cavar, nas consciências mútuas, o caminho para o ponto de não regresso.

   Este romance é sobre tudo isto. Este romance é sobre um homem e uma mulher viajando pelas cidades do deserto do Sahara. Segundo Paul Bowles.

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por Maria Almira Soares às 15:57

Terça-feira, 03.03.20

OS LIVROS NÃO MORREM DE MORTE NATURAL

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     E é por ser a leitura coisa pessoal que o ser humano não-leitor é um ser intelectual e sensitivamente em perda significativa: perda, não só de conhecimento e de alargamento cultural, mas, sobretudo, perda de possibilidades de aproximação entre os riscos da vida e as estrias da sua própria natureza. Ou seja, perda de possibilidades de construção e realização pessoal. O não-leitor é, geralmente, assinalado por incumprimento comportamental ou ineficácia cultural e não pela perda de possibilidades de conhecimento de si, que a ausência da leitura implica. A leitura é um formidável catalisador de realização íntima e, daí, de descoberta auto e hetero, com comprazimento ou não.

   Afirmações genéricas a respeito da leitura, desatentas do seu carácter pessoal, produzem-me a sensação residual de alguma hipocrisia. Afirmações tais como: Tal ou tal livro já não é lido, porque nada tem a ver com os tempos em que vivemos...

ou

Deixaram de ler estes livros, porque não entendem os seus mundos de referência, porque essas histórias do passado nada lhes dizem...

ou

A proposta de livros a serem lidos não deve incluir senão os que tenham uma linguagem próxima da sua e situações semelhantes às do seu quotidiano...

obrigam, para contrariar a referida sensação de hipocrisia, a que lhe acoplemos adversativas tais como

...e, no entanto, os livros da Condessa de Ségur estão a ser reeditados e veem-se com frequência no top das livrarias.

ou

...e, no entanto, abundam declarações lamentando não encontrar acessíveis para compra os aquilinos, os ferreiras de castro, os nunos braganças, coisa que impede a satisfação do desejo e da curiosidade de os lerem.

ou

...e, no entanto, que saudades e que roubo às jovens gerações, o apagamento, por exemplo, de Júlio Dinis.

   E é assim que alguns livros e alguns autores arredados pelos ares dos tempos, surgem, no discurso comum sobre a leitura, apenas na qualidade de adversativas: não para serem lidos, mas como objetos de saudade e homenagem como a que se faz a mortos ilustres. São tratados como livros mortos que o apego ao tempo como critério de arrumação cultural silencia e sonega ao desejo íntimo de quem poderia amá-los. A coberto da ideia de mortos queridos, que alguns de nós conheceram, são induzidos como merecedores, tão-só, de uma reza de ressurreição pojetada para um inefável juízo final, a partir do seu acondicionamento na memória de quem os ama. Os livros não morrem de morte natural. Se os não enterrarem vivos, a sua vida está sempre em aberto, em desobediência às prescrições temporais e temporárias, em correspondência com o desejo íntimo de um leitor.

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por Maria Almira Soares às 17:45


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