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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora, o Já Sei, que era pontual, apareceu no mesmo sítio do jardim, onde o Luís e a Susana se costumavam sentar depois de ficarem cansados com tanta brincadeira. Vinha a dançar e a cantar:
— B B B B B B B B B!
— Olá! Vens todo contente. Que é isso que vens a cantar?
— Olá! É a cantiga do B.
— Qual bê? Não conheço nenhum bê.
— O B é a segunda letra. Vem logo a seguir ao A.
— Ah! As letras também servem para cantar! Julguei que era só para brincar… — Disse a Susana.
— As letras servem para escrever. Depois de escritas, podemos lê-las, dizê-las, cantá-las…
— Já vi o meu pai a escrever.
— E eu já vi a minha mãe a ler.
— Mas nós ainda não sabemos.
— Pois não. Ainda sois pequeninos. Mas, agora, já sabeis como é o A.
— E o bê como é? — Perguntou o Luís.
— Assim: B
O Já Sei soprou com força e um grande B ficou desenhado na areia.
— É muito diferente do A. Tem duas barrigas!
— E hoje a que é que vamos brincar? — Perguntou o Luís.
— Ao B. Olhem muito bem para este B que aqui está. Eu vou contar até 10. Quando chegar ao 10, este B desaparece daqui e vai esconder-se nos arbustos do jardim. E vocês vão procurá-lo. Se souberem muito bem como ele é, pode ser que o encontrem.... Mas, se não se conseguirem lembrar de como ele é, mesmo que esteja à vossa frente, não o conseguirão ver. Preparados? Vou começar: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10. Pst!
— Desapareceu! — Disseram os dois.
— Agora, podem começar a procurar. Eu fico aqui à espera.
E estendeu-se na areia todo repimpado. Parecia uma lagarta gorducha.
O Luís e a Susana lá andavam por um lado e por outro, afastando os ramos dos arbustos, espreitando para trás dos vasos de flores, à procura do B, mas, por enquanto, nada! Ou estava muito bem escondido ou eles tinham-se esquecido de como ele era e, por isso, não o conseguiam ver. Era bem divertido este jogo do B, parecido com a caça ao tesouro ou com o jogo das escondidas. De repente, ouviu-se um gritinho. Era a Susana:
— Está aqui!
E lá vinha ela com um grande B na mão, a cantar toda contente: bê-bê-bê-bê!
— Onde é que o encontraste? — Perguntou o Luís.
— Estava atrás da roseira. Ia-me picando toda. Mas vi-o logo. Lembrava-me tão bem das suas duas barriguinhas!
— Eu também me lembrava. Mas tu chegaste lá primeiro.
— Tive sorte.
— Muito bem, muito bem. — Disse o Já Sei. — Este jogo das letras está a correr muito bem.
— Pois está. Já sabemos o A e o B.
— Agora, são horas de me ir embora. Até amanhã! — Disse o Já Sei e lá foi, pulando, até ao fundo do jardim.
Era verão. Estava calor e os dias eram grandes.
A Susana e o Luís, cansados de tanto brincar, sentaram-se num murinho do jardim. Os dois amigos já tinham brincado a tudo: a correr, a saltar, a jogar à bola. Agora, estavam a descansar, calados, a olhar para o chão, sem fazerem nada. Ao fim de algum tempo, começaram a ouvir um barulho, baixinho e repetido, como se alguém viesse a aproximar-se. Levantaram um pouco a cabeça e viram, a mover-se na areia grossa da álea do jardim, uma figura que ainda não conseguiam perceber quem era. Deslocava-se aos pulos, com a cabeça bem levantada e dirigia-se ao lugar onde eles estavam. O seu corpo tinha a forma de um harmónio e era muito colorido — vermelho, amarelo, verde, cor de rosa, azul, cor de laranja — como os balões do São João ou os bonecos das festas chinesas. Pelas marcas deixadas na areia, parecia ter vindo assim a pular, lá desde o fundo do jardim, uma parte onde havia muitas árvores. À medida que se ia aproximando, a Susana e o Luís iam vendo melhor a sua cabeça, redonda e bem erguida. Até já conseguiam ver que tinha uns olhos risonhos, uma boca muito bem desenhada, um nariz e duas orelhas. Os meninos estavam de boca aberta de espanto a olhar para o que não sabiam o que era. Mas sabiam— agora já não tinham dúvidas — que vinha ter com eles. Quando já estava muito próximo, parou. Esticou o corpo, levantou ainda mais a cabeça, olhou para eles e disse:
— Olá!
A Susana e o Luís estavam tão espantados, que nem foram capazes de lhe responder. E, então, ele repetiu:
— Olá!
E, desta vez, ao ouvirem um «olá» tão alegre, quase sem quererem, responderam:
— Olá!
— Sabem quem eu sou?
— Não!!
— Pois eu sei quem vocês são. Conheço-vos, porque vivo neste jardim. Tu és a Susana. E tu és o Luís, amigo da Susana, e costumas vir brincar com ela, todas as tardes.
— E tu? Como é que te chamas? — Perguntou a Susana, já mais calma.
— Eu? Eu sou o Já Sei.
— Já Sei?! — Espantaram-se os dois.
— Sim. Chamo-me Já Sei.
Os dois meninos olharam um para o outro muito admirados: não conheciam ninguém chamado Já Sei. Mas também não conheciam ninguém com um corpo igual àquele.
— E quem é que te pôs esse nome tão esquisito?
— Foram os meus irmãos mais velhos.
— Ah! Tens irmãos!
— Pois tenho. Tenho dois: o Já Faço e o Já Vou.
— Ah, ah, ah, que engraçado! Vocês devem ser da família Já. São todos Já! — Disseram, a rirem-se, os dois amigos.
— Como é que adivinharam? É verdade. A minha mãe é a D. Já Está e o meu pai é o Senhor Já Cheguei. Querem saber por que razão vim ter convosco?
— Queremos!
— Pois, então, eu vim, porque vocês já não sabiam ao que haviam de brincar.
— E tu? Sabes?
— Claro! Eu sou o Já Sei.
— Então, diz lá.
— Bem, eu sei uma brincadeira a que acho que vocês nunca brincaram.
— Qual é?
— Às letras.
— Às quê?
— Às letras.
— Letras?! O que é isso?
— Isso é o que vocês vão ficar a saber, se quiserem brincar comigo.
— ‘Tá bem! E há muitas letras?
— Vinte e seis!
— Tantas! E são todas iguais?
— Não. Nada disso. As letras são todas diferentes umas das outras.
— Diferentes, como?
— Cada uma tem um desenho diferente. Umas são mais gordinhas, outras mais magrinhas; umas mais redondas, outras mais bicudas; e assim…
— Ah!
— E também são diferentes no som. Cada letra tem um som diferente.
— Que engraçado!
— E como é que se brinca às letras?
— Se vocês quiserem, eu venho aqui ter convosco todos os dias e, em cada dia, brincamos a uma letra.
— Até já podíamos começar hoje. — Pediu a Susana.
— Pois, estávamos tão aborrecidos sem saber ao que brincar… — Apoiou o Luís.
— Muito bem. — Disse o Já Sei e soprou a areia do jardim.
Imediatamente apareceu um grande A desenhado no chão.
— Que giro! Parece um escadote aberto.
— A mim, parece-me uma cabana.
— Nem escadote nem cabana. Este é o A, a primeira letra. Mas este é um A mágico. Vamos brincar ao A. É assim:
1º — Vocês olham muito bem para o A.
2º — Fecham os olhos com muita força e ficam a pensar no A.
3º — Com os olhos ainda fechados, dizem: A!, virados para o chão.
4º — Abrem os olhos.
Se aparecer um A desenhado na areia à vossa frente, ganharam.
— Ganhámos?! Porquê?
— Porque o A só aparece, se vocês, mesmo com os olhos fechados, se lembrarem de como ele é.
— Vamos jogar?
— Vamos.
Então, o Luís e a Susana olharam muito bem para o A e, depois, fecharam os olhos, enquanto o Já Sei o apagava do chão e, depois, gritava:
— Agora!
E os dois, ainda com os olhos bem fechados, disseram:
— A!
— A!
— Ganharam os dois. Já podem abrir os olhos.
E, na verdade, como que por magia, à frente de cada um, lá estava a letra A desenhada na areia do jardim.
Riram-se e bateram palmas, todos contentes:
— Já sei o A!
— Já sei o A!
— Agora, tenho de me ir embora. — Disse o Já Sei — Até amanhã!
E lá foi, pulando até ao fundo do jardim, enquanto o Luís e a Susana também pulavam, mas de contentes por já saberem o A, a primeira letra.
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