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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 20.07.20

COMUNIDADES DE LEITORES

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LEITURA, SUBSTANTIVO COMUM

     A ideia do incremento da leitura é preferencialmente associada a atividades com crianças, o que se compreende bem, já que a infância é a idade boa para o lançamento de sementes de futuro. Uma vez, porém, que essas sementes, por vezes, muitas vezes, não frutificam e dão em pouco-leitores ou não-leitores, torna-se também desejável incrementar a leitura junto dos adultos.

   Note-se que incrementar a leitura tem valor quantitativo e qualitativo e, por isso, implica mais gente a ler, a ler mais livros, mas também a fazer boas escolhas e a apurar os seus critérios, o que não se torna fácil, dados os contextos pouco favoráveis a estes desideratos.

   De facto, não são apenas as crianças que são alvo de manobras de atratividade fácil, de adesão à superficialidade e à rapidez de contacto. Os adultos leitores ou possíveis leitores são cercados — por quase todos os lados — pela oferta insistente de histórias leves, rápidas, muito ao rés do viver rotineiro e das emoções típicas, das emoções de catálogo.

   Trata-se de histórias que não têm o poder de despertar o imaginário para paisagens de espanto e de perplexidade. São histórias com as quais é previsível a identificação com um construído modelo único de leitor e em que a pluralidade dos leitores suavemente se encaixa falseando a sua autenticidade e singularidade pessoal, em prol de formatados prazeres ou passatempos pouco exigentes. Em poucas palavras, trata-se de leituras rasas, rentes às vividas rotinas quotidianas sentimentais ou outras, a que o leitor se submete alienando-se da sua própria complexidade e do seu poder de autodescoberta.

     Assim, leitores adultos alheiam-se de pôr à prova a leitura de emoções, sentimentos, sim, mas na grandeza literária de um desses sublimes romances como por exemplo Gente Feliz com Lágrimas de João de Melo. Não procuram a experiência do estranhamento, da confrontação, do alargamento do seu mundo de referências que a leitura de, por exemplo, Conversa na Catedral de Vargas Lhosa  suscitaria no seu imaginário.

   Sob o pretexto de falta de tempo, de paciência e até de gosto pelo que é de produção antiga, demorado, trabalhado, muitos leitores ou possíveis leitores respondem, à fraquíssima probabilidade de lerem um desses grandes romances, com a afirmação de um gosto e capacidade externamente formatados para eles e para todos, para quantos mais melhor. E, por um movimento que quase pode parecer de orgulho, os grandes romances, os grandes clássicos universais, obras-primas, retiram-se da possibilidade de qualquer encontro. Claro que não é orgulho, é perda, na agressiva competição de atrair os leitores para o gesto de compra e, talvez, de leitura. A viciosa massificação do gosto e do desejo e a subserviência às tendências dominantes comandadas pelo desígnio de retirar o risco do negócio dos livros fazem quase-desaparecer do alcance do leitor-adulto tudo que não seja fruto da espuma dos dias. Perda considerável!

       É, neste contexto, que por vezes ouço advogar a ideia de que é melhor que haja muitos a ler «lixo» do que, como dantes, em que só alguns liam... Então penso que, se há tanta (toda) a gente a afirmar-se contra os atentados alimentares e se ninguém se atreve a dizer que comem porcarias, mas comem, não é como dantes em que havia tanta fome... porque não há de ser a mesma, a atitude perante a leitura? Ler não é um mero divertimento. Ler é um alimento. Ler «lixo» faz tanto mal como comer lixo.

   Neste contexto, os leitores consistentes do literário, os grandes leitores das grandes obras literárias, têm um papel a desempenhar entre pares: o papel de abrirem e partilharem as suas experiências de leitura e de alargarem, a rodas de gente, as conversas, os comentários, as citações, os pensamentos e os sonhos suscitados por essas leituras. E é assim que, no intuito de alcançarem estes desígnios, se formam comunidades de leitores.

   As comunidades de leitores são naturalmente uma coisa simples: gente que leu o mesmo livro e se reúne para debater as leituras que desse livro fez. Coisa simples, mas altamente atuante e produtiva quer para o leitor que coordena e modera quer para os leitores que a elas acorrem. Acorrem por motivos vários: o gosto de se mostrarem como leitores, de falarem dos livros e dos seus habitantes; a necessidade de romper o cerco comercial e acederem a referências e a propostas de leitura de obras que não estão visíveis nem ao alcance, na montra geral.

   As comunidades de leitores têm a virtude de porem em voz e em prática aberta, a natureza da leitura, a plural qualidade dos leitores, e de desmontarem pretextos que arredam as pessoas da leitura. Decorrem em lugares que se tornam de convívio pela leitura e criam um tempo próprio — contíguo mas não miscível nesse outro tempo manipulado pelo viver atual que parece arrasar qualquer veleidade de ler em extensão, em complexidade, em continuidade.

   As comunidades de leitores criam elos e sentimentos de pertença cujo cimento é a leitura. O ser humano é genericamente gregário e oferecer-lhe a oportunidade de se agregar por via dos livros e das leituras é inserir, no seio de um grupo de gente adulta, o desejo de ler cada vez mais e melhor. Note-se que digo agregar-se, mas não igualar-se ou alisar-se por uma qualquer rasoira mais ou menos qualitativamente elevada, já que, em leitura, a singularidade é marca de genuinidade. Nenhum leitor se confunde com outro e nenhuma comunidade de leitores deve servir como lugar de submissão discipular a leituras magistrais.

   Claro que há a possibilidade de uma comunidade de leitores ser apenas formada por gente altamente capacitada para fazer e mostrar a sua leitura de obras difíceis, complexas, exigentes, cuja beleza e significado se situam num patamar pouco acessível. E, então, temos um círculo de disseminação de inteligentes lampejos, de sensibilidades refinadas, de descobertas surpreendentes suscitados pela leitura de obras-primas.

   Sim, mas, numa comunidade de leitores que tenha a vocação de fazer crescer e estender a leitura entre gente adulta, é muitíssimo profícua a mescla de pessoas mais ou menos capacitadas para ler, com gostos de leitura mais ou menos experimentados, com critérios mais sólidos e mais frágeis. É na circulação por ambientes pessoais até desencontrados que as diferentes leituras de um livro abrem caminhos diversificados para o enriquecimento comum. Os vasos são comunicantes, não sendo todos feitos da mesma matéria, tamanho, transparência. A partilha torna a leitura uma coisa que a todos invade e entra, em cada um, segundo o que cada um pode e alcança; atinge, em cada leitor, um nível singular, sim, mas também já marcado pela influência dos seus companheiros de leitura.

   As comunidades de leitores têm programas, funcionam em ciclos, estão ligadas a lugares e integram alguém que tem a função específica de selecionar os livros a ler.

   A seleção dos livros a ler balança normalmente entre dois polos: o dos valores e critérios inscritos nos termos da criação da comunidade e que normalmente se identificam com os do seu criador/coordenador; o dos gostos e capacidades — imediatas e de partida — dos leitores que nela se inscrevem. Interceta este balanço um arco de convicções e objetivos determinantes da seleção dos livros a ler: desde os clássicos que tempos perdidos remeteram a nichos pouco acessíveis, até aos livros de massas sancionados pelo agrado geral. Há, pois, um terreno de escolha aferido pela distância/proximidade relativas entre dois limites: o limite do grau máximo de qualidade e o limite do banal. Tais limites são normalmente paralelos a outros dois: o da exigência/dificuldade e o da facilitação.

   A escolha da proximidade ao gosto mais generalizado e mais banalizado entre os leitores garante uma adesão mais rápida e fácil, uma identificação imediata, mas sonega possibilidades que, sendo menos visíveis e menos conscientes, contudo, interessa fazer brotar.

   A opção pela qualidade/exigência/dificuldade, embora corra o risco de menor adesão, garante uma via de acesso, talvez única, às grandes obras literárias universais.

   Por mim, penso que a programação de um ciclo de leituras de uma comunidade de leitores — sem prejuízo de aclarar o fio condutor que as fez agrupar — deve alargar-se por variadas paisagens literárias. O que não deve nunca é perder o desígnio de que aquela comunidade foi criada para ali se ler mais e melhor e não para nos deixarmos conquistar pelo best seller do momento.

   Na maior parte dos casos, as comunidades de leitores são criadas em ligação com outras instâncias: bibliotecas, livrarias, lugares vários de cultura e de lazer... e, não deixam, como não poderiam deixar de ser, não deixam, dizia, de serem matizadas pelos tons e os reflexos pré-existentes nessas instâncias.

   É natural que uma biblioteca, uma livraria, um café, procure visibilidade através da sua programação cultural. Visibilidade que se concretiza na quantidade dos frequentadores e na constância da sua frequência. Outros indicadores, de maior profundidade, não se alcançam à primeira vista. Ora, este desejo de conquistar presenças pode, só por si e como em qualquer outra atividade, sobrepor-se ao que deva ser a alma de uma comunidade de leitores: lugar único de encontro, de descoberta, de acesso e ganho cultural dado pela partilha da leitura de livros que ali nos é dado ler e ali procuramos.

   Uma comunidade de leitores não deve aplanar-se, alisar-se pela fasquia do que está à mão de semear; deve sentir-se, julgar-se, como lugar privilegiado de acesso a livros que se diferenciam por acrescentarem, ao plano do que ouvimos referir na voz pública generalizada, um grão de estranheza, um impulso de elevação, o entusiasmo novo de uma descoberta.

     Que, a uma comunidade de leitores, se não vá apenas para somar leituras, mas para nos transformarmos enquanto leitores!

    Muitas das comunidades de leitores existentes são de cariz mais ou menos institucional e, por isso mesmo, têm capacidade acrescentada de recrutar recursos materiais e pessoais que, por serem renomados, atraem. É um caminho.

   Há também outras que derivam mais naturalmente do ato de ler. Estas são resultado de uma vontade-iniciativa de um leitor que faz alastrar a sua leitura de um livro — de muitos livros — e a organiza de modo a partilhá-la à mesma hora, no mesmo local e no mesmo tempo, com um grupo de pessoas que, a partir do silêncio inicial, ergam as suas vozes de leitores, se irmanem ou confrontem na partilha da leitura. Sem mais enfeite. Sem mais enfeite, porque penso que a leitura só tem a ganhar se se mostrar em natureza, tal qual é.    

   As comunidades de leitores são leitura: substantiva e comum.

 

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por Maria Almira Soares às 11:47

Sexta-feira, 17.07.20

O PARVO - O DETECTIVE DAS PALAVRAS

Olá!

   Sou o Luís, mais conhecido como o Detective das Palavras.

   E sabem? Eu até gosto que me chamem assim. É que eu adoro ler histórias de detectives. E, de palavras, então, nem calculam como eu gosto delas! Aliás, sem palavras, não há histórias. Nem de detectives nem de coisa nenhuma.

   Quando ouço uma palavra que nunca antes tinha ouvido ou quando tenho uma dúvida sobre alguma das que já conheço, a minha curiosidade não me deixa parar até ficar a saber aquilo que antes não sabia. Nem imaginam as descobertas que eu já fiz.

   É verdade que, para se ser um bom detective, é preciso ser ágil a resolver problemas e eu, lá isso, costumo ser assim, mas hoje… Olhem, hoje, até parece que estou meio parvo. Só tenho feito parvoíces. Se calhar é influência de uma história que a minha avó me contou ontem: a história do João Parvo. Conhecem? Começa assim: «Era uma vez uma mulher que tinha um filho que se chamava João. Mas ele era, coitadito, meio parvo…» Começa assim, pelo menos quando é a minha avó a contá-la. Nesta história, o João faz tantas mas tantas parvoíces, que a certa altura já não sabemos se havemos de rir ou de chorar.

E eu, hoje, estou quase na mesma: enganei-me nos livros que meti na mochila, vesti a T-shirt do avesso, chamei Miguel ao Pedro, enfim… Ele até me respondeu: — Estás parvo ou quê!?

Não gosto nada de que me chamem parvo, a mim que até sou detective. Estava tão arreliado com isto tudo, que, há bocado, resolvi brincar com a situação para ver se ficava mais bem-disposto. Fui ali pôr-me em frente do espelho do meu quarto a fingir que estava, por assim dizer, dentro da história da Branca de Neve. Com as devidas diferenças, está claro! Que, a mim, não me preocupa nada a minha beleza. O que eu me pus a dizer frente ao espelho tinha a ver com as minhas parvoíces:

— Espelho meu, espelho meu, haverá algum rapaz mais parvo do que eu?

Há quem diga que faz bem brincar com as coisas que nos correm mal. Eu não tenho a certeza disso, mas do que aconteceu a seguir, sim, da coisa espantosa que me aconteceu, não duvido. Pois, à segunda vez que eu, olhando-me ao espelho com um ar entre o triste e o brincalhão, lhe perguntei: — Espelho meu, espelho meu, haverá algum rapaz mais parvo do que eu? — Sabem o que aconteceu? Julgam que o espelho falou? Pois falou mesmo. E disse:

— Parvo? Mas tu tens a certeza de que conheces bem o significado da palavra parvo, ó grande Detective das Palavras?

E eu, apesar de completamente espantado, não me amedrontei e respondi:

— Claro que sei. Um parvo é um tolo.

E o espelho:

— Até pode ser que sim, até pode ser que agora um parvo seja um tolo… Mas vou-te deixar um enigma, um desafio. Se o conseguires solucionar, descobrirás o que parvo já quis dizer noutros tempos.

E, de repente, o meu espelho começou a envelhecer, a envelhecer, a envelhecer… Como é que um espelho envelhece? Não sabem? Começa a ganhar umas pintinhas cinzentas junto às margens, a ficar menos brilhante, a apresentar alguns riscos e algumas manchas… Assim ficou o espelho do meu quarto. Parecia uma chapa acinzentada, pouco polida. Olhem, parecia que tinha sido encontrado numas escavações arqueológicas de umas ruínas romanas.  

Como devem imaginar, eu assistia a tudo isto meio aparvalhado, mas ainda mais zonzo fiquei com o que aconteceu a seguir: na superfície espelhada, agora bastante baça, começou a aparecer um texto. Aquilo já nem parecia um espelho. Parecia mais um ecrã de uma televisão antiga, a preto e branco, com um texto a preto sobre o fundo cinzento. Eu não percebia patavina do que lá estava escrito. A princípio, ainda me esforcei por tentar perceber alguma coisa, mas depois, com medo de que aquilo se apagasse de repente, corri a buscar a minha máquina fotográfica. Um detective, quando encontra uma coisa extraordinária, nunca deve deixar de a registar. Clak, clak. Já está. Consegui fotografar o texto antes que ele começasse a esfumar-se, ao mesmo tempo que o espelho regressava ao seu estado normal, voltando a ficar mudo como sempre fora. Eu bem insistia: — Que foi isto? Diz lá, que foi isto? Mas ele, nada. Agora só lá havia a minha imagem a fazer figura de parvo. Terei estado a sonhar!? Bem, a resposta está aqui, dentro da máquina fotográfica. Vamos lá ver se ficou alguma coisa na fotografia. Vou já passá-la para o computador. Tá - tá - tá… Tá -tá - tá… Cá está. Ficou mesmo. Afinal, sempre foi verdade, sempre aconteceu. Cá está o texto que eu vi no espelho e de que não percebo patavina:

Parvo.png

— Que grande mistério! Que será isto? Hum! Código secreto? Mas como é que eu vou conseguir decifrar isto? Quando isto apareceu no espelho, eu estava a… Pois, a perguntar se era parvo. E o espelho responde-me com isto?! Calma. Vamos lá por partes. Vamos lá tentar resolver esta charada. E comecei, muito engasgadamente, a tentar ler o que ali estava à minha frente. Fui andando aos tropeções nas palavras (seriam mesmo palavras?) e, quando cheguei à última linha…

— Olá! Aqui há gato! Ou antes, aqui há parvum! Isto talvez comece a fazer algum sentido. Pra já vou mas é copiar isto para uma folha.

E copiei. Verdadeiramente, a única palavra que eu reconhecia era parvum. Um bocadinho diferente de parvo, mas mesmo assim… devia ser do código. Enfim, isto não iria ser fácil de resolver.

No dia seguinte, quando a minha mãe me foi buscar à escola, disse que íamos dar uma volta, antes de irmos para casa. Eu já sabia que as voltas com a minha mãe incluíam sempre passar por uma livraria. Mas não me importava nada. Eu até gosto tanto de livros! E, de qualquer modo, para ir jogar à bola no jardim, posso sempre contar com o meu avô que nunca falha. E, como tinha previsto, lá andava eu com a minha mãe de volta dos livros numa livraria. Ela tinha-me prometido que me comprava um livro e eu ia olhando as capas e os títulos para escolher um que me agradasse. Depois de várias miradas e folheadelas, encontrei um que se chamava Histórias de Animais com uns desenhos tão bonitos que quis logo levá-lo comigo para casa. Fui a correr dizer à minha mãe:

— Mãe, é este que eu quero.

— Ah, esse é de fábulas.

— Fábulas?

De momento, não me estava a lembrar bem do que era isso de fábulas.

— Sim, fábulas. Pequenas histórias em que os animais se comportam como pessoas, uns bem outros mal, outros assim-assim, e no final se tira uma conclusão.

— Como A Cigarra e a Formiga?

— Exactamente.

— Já ouvi contar algumas dessas histórias, mas acho que não tenho nenhum livro de… fábulas.

— Então, levamos esse.

Foi um dia agradável: tinha mais um livro para ler e recordara uma palavra de que já andava esquecido: fábula.

A seguir ao jantar, fui buscar o livro e, sentado no chão da sala, pus-me a espreitá-lo. O meu pai disse logo:

— Que é que estás a ler?

— São umas histórias novas. Fábulas.

— Novas?! Tu sabes há quantos séculos se escreveram as fábulas que ainda hoje se contam? Há dezenas de séculos. As primeiras fábulas foram escritas em línguas muito antigas.

— Que línguas?

— Grego e Latim, por exemplo. O Esopo escreveu em grego e o Fedro em latim.

— Esopo! Fedro! Que nomes tão esquisitos! Ó pai, tu tens algum livro escrito nessas línguas?

— Por acaso, até tenho. Ora anda ali até à estante.

E o meu pai abriu um livro em que as palavras estavam escritas com umas letras diferentes das nossas. Algumas até pareciam números.

— O que é isso?

— Isto é grego. Os gregos escrevem com letras diferentes das nossas.

E pegou noutro livro.

— E isto é latim. Devo ter para aqui… até devo ter para aqui… um livro de fábulas em latim. Cá está! Este livrinho que o Fedro escreveu está cheio dessas historinhas a que chamamos fábulas.

— Posso ver?

— Podes.

Eu pus-me a folhear, mas não percebia nada.

— É engraçado estar a olhar para as letras como as das nossas palavras e não perceber nada…

— Mas isso acontece com qualquer língua estrangeira que não conheças.

— Pois é. E a ler alto? Como é? Tu sabes ler alto o que está escrito em latim?

— Sei.

— Podias ler um bocadinho para eu ouvir?

— Pra quê?

— Se calhar é engraçado. Vá lá, lê só um bocadinho.

— ‘Tá bem.

E o meu pai, cheio de paciência, abriu o livro ao acaso, pôs os óculos e começou:

Ranae vagantes…  

Até corei. Aquelas eram as palavras que, ontem à tarde, tinham aparecido no espelho e que eu, depois de as tentar ler, de as fotografar e de as copiar, ficara a saber quase todas de cor. Então, era latim! Olha o esperto do espelho!

— Ó pai, diz lá o que quer dizer isso que estiveste a ler.

— Ora deixa lá ver se ainda me lembro.

Sentámo-nos os dois no sofá e o meu pai ia apontando cada palavra devagarinho com o dedo, pensando um pouco e, depois, dizendo em português.

Umas rãs que andavam em liberdade pelos pântanos, numa grande gritaria pediram a Júpiter que pusesse fim aos maus costumes. O pai dos deuses riu-se e deu-lhes um bocado de madeira

E, nesta altura, quando o dedo do meu pai estava mesmo a passar por baixo de parvum e eu à espera de o ouvir dizer parvo, o que ouço eu? … deu-lhes um bocado de madeira pequeno.  

Pequeno?! Então é isso. Olha o esperto do espelho! Mas descobri: parvo também já quis dizer pequeno. — concluí em pensamento.

Tinha resolvido o enigma! Com alguma sorte, é certo, mas qual é o detective que não conta com um pouco de sorte? Com sorte e com a ajuda do meu pai que, logo a seguir, me mandou para a cama. Dormi mesmo bem e, na manhã seguinte, quando ouvi o Pedro a chamar parvo ao Mário, que é o mais alto de nós todos, dei uma gargalhada.Mas o Pedro não achou graça nenhuma:

— Porque é que te estás a rir?

— Porque tu chamaste pequeno ao Mário.

— Não chamei nada.

— Chamaste, chamaste.

— Estás cada vez mais parvo.

— Por acaso até nem estou. Este mês cresci dois centímetros.

E continuava a rir-me. Parvo pra cá, pequeno pra lá, já estávamos quase a pegar-nos à pancada, quando passou a professora de Português:— Então, meninos, que briga é esta?— É ele que está a teimar que parvo quer dizer pequeno. E não quer, pois não?— Calma, calma. Vamos lá ver. Se calhar, no fundo, ambos têm razão.E a professora sentou-se ao pé de nós a explicar que a palavra parvo, em latim, já quis dizer pequeno, insignificante, com pouco valor e importância e que, como um tolo é uma pessoa com pouco bom senso, começou-se a chamar parvos, não aos que eram pequenos de altura, mas aos que eram pequenos no juízo, aos que tinham pouco juízo, os tolos.Parvo começou por se aplicar ao que era pequeno em geral e, agora, aplica-se a quem é pequeno de juízo, a quem tem pouco juízo ou faz coisas pouco ajuizadas. Em latim, os baixos eram parvos; hoje em dia, pode-se ser parvo, mesmo sendo grande em altura.E, como o que a professora nos explicou fazia sentido, acabámos por ficar os dois convencidos e a nossa zanga acabou logo ali.Mais um caso resolvido, para bem do meu prestígio de Detective das Palavras!Ainda assim, não resisti. À noite, virei-me para o espelho, pus-lhe a língua de fora e disse:— Já sei. Sou pequeno, mas não sou parvo.E até me pareceu ouvir o espelho a rir-se, mas deve ter sido o vento a abanar a janela.

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por Maria Almira Soares às 18:11


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