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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Da graduação do que nos é necessário.
A necessidade de ler.
A genuína necessidade de ler não é da ordem da rotina. É de outra ordem. Mais profunda do que a do hábito. A necessidade de ler é da ordem do gosto. A produtividade de programas e de asserções atinentes à defesa do desenvolvimento da leitura, conceptualizados e verbalizados dentro da ordem dos bons hábitos, mesmo quando positiva, é sempre precária e sujeita a mutações regressivas. A sua solidez, pouca, é afetada pelo mover dos tempos e dos espaços, das influências. O desenvolvimento da genuína necessidade de ler faz parte de um outro jogo de ideias. O da educação do gosto. O gosto educa-se: cria-se, alimenta-se, abre-se, descobre-se... Da educação do gosto, onde nasce e se desenvolve a necessidade de ler, nasce e desenvolve-se também a necessidade de fruir outras artes para além da literária, criações várias do imaginário. A fruição das diferentes artes tem efeitos transversais e relacionais no gosto por todas elas, e sobremaneira na leitura, ou seja, no gosto pela arte literária pois que a linguagem em que esta se constrói é referencial último e primeiro de todas as artes. Pobres são os programas de desenvolvimento da necessidade de ler — pessoais, familiares, institucionais — que se apliquem tão-só na multiplicação de discursos, ações, objetos, tecnicamente limitados à leitura. A necessidade de ler germina e floresce, frutifica, fertilmente, na confluente educação do gosto pelas artes, ou seja, pela fruição das obras do imaginário. A educação pela arte. Da educação pela arte, pelo seu gosto e fruição, faz necessariamente parte a educação pela arte literária e pelo seu gosto e fruição que é a leitura. Educação pela leitura e não educação para a leitura. Educação da sensibilidade e do gosto que se autoalimentam necessariamente fruindo o seu objeto: as obras da criação literária. Encontrar, descobrir, desenvolver a necessidade de ler pode acontecer-nos sem mestre, sem orientação alheia, sem inculcação. Pode ser uma descoberta íntima, ingénua, que tem, no seu adn, energia suficiente para se desenvolver e acrescentar tornando-se gosto. A educação do gosto faz-se pela experiência, pelo conhecimento, pela partilha crítica. Faz-se na estranheza, na descoberta, na confrontação, na afinidade, na eleição/rejeição. Sejam eles autónomos ou tutelados, é nos processos de formação-construção-aprendizagem, que se educa o gosto motor da necessidade, desta necessidade de grau superior que é a necessidade de ler.
CONTO DA SÉRIE O DETETIVE DAS PALAVRAS
Foi durante uma visita de estudo que tudo começou.
Tudo, o quê?
Leiam, leiam, que já descobrem.
Saímos de manhãzinha num autocarro que andou, andou, andou, até que parou num lugar chamado sítio arqueológico. Assim nos disse a professora que nos acompanhava. Eu achei logo graça: sítio arqueológico! Ali, há milénios, tinham vivido romanos! Nem imaginam como era sossegado, perdido no meio dos campos. À nossa vista, ficava uma extensão de terreno plano onde se alinhavam fieiras de pedras. Pelos carreiros que as circundavam, lá nos íamos aproximando de ruínas que outrora tinham sido construções inteiras.
Junto a duas árvores baixinhas, de tronco largo, cinzento, ressequido e aberto por uma fenda, a professora disse:
— Estas oliveiras foram contemporâneas de Cardílio e Avita, um casal de romanos que aqui viveu há quase dois mil anos.
Caramba! E eu que nunca tinha pensado que pudesse haver árvores tão antigas ainda vivas!
E o Vítor a perguntar:
— E como é que eles vieram aqui parar?
E o Manel a gozar:
— De autocarro!
E a professora a ralhar e a ensinar:
— Juízo, meninos! Então, Vítor, não te lembras de como os romanos conquistaram a Península Ibérica e nela se fixaram?!
E a professora continuou:
— Sabem uma coisa? Ver este par de oliveiras e pensar nesse casal, Cardílio e Avita que, segundo a inscrição que estivemos a ler, aqui viveram felizes, faz-me lembrar uma história que li num livro chamado Metamorfoses escrito por Ovídio.
— O que é Metamorfoses?
— Quem é Ovídio?
Dispararam as perguntas de todos os lados.
— Ovídio foi um escritor romano. Num dos seus livros conta histórias maravilhosas de transformações fantásticas. De pessoas que se transformaram em árvores, por exemplo. Metamorfose significa transformação.
— Ah! Que giro! — disse eu. — Conte lá essa história, professora, conte.
— Agora não. Agora vamos, é, continuar a admirar o que sobrou desta casa. Olhem como são interessantes, estes mosaicos:
Fiquei bastante desiludido por a professora não querer contar a tal história.
Para compensar a minha decepção, pus-me a fotografar as letras e imagens desenhadas nos mosaicos.
Pois foi quando eu estava muito concentrado a visar a inscrição que fala do Cardílio e da Avita, que ouvi nitidamente atrás de mim:
— Pst! Pst!
Virei-me, olhei, mas não vi nada. Talvez fosse o vento. Talvez fosse um dos engraçadinhos dos meus colegas. Talvez fosse ilusão. Mas, de repente, outra vez:
— Pst! Pst!
Não era ilusão. Alguém me estava mesmo a chamar. Fixei melhor a atenção na direcção do chamamento e, quando olhei para o chão atrás de mim, que vejo eu?
Vejo um dos arabescos da cercadura do mosaico a mexer-se! A mexer-se e, à medida que se mexia, a transformar-se… a transformar-se em quê? Numa lagartixa toda lampeira que, de cabecinha arrebitada e rabito a abanar, me piscava o olho continuando a chamar-me: — Pst! Pst!
Juro. Uma lagartixa, saída do mosaico, estava a chamar-me. E não esperou muito. Largou numa correria desenfreada como costumam fazer as lagartixas. E eu, claro, que, como sabem, não resisto à curiosidade, lá desatei a correr atrás dela. Correu, correu, até à base de um muro que logo subiu com uma tal destreza que eu, tentando imitá-la, para não me magoar, tive de travar repentinamente. Quando me refiz, a lagartixa tinha desaparecido. Mordido pela curiosidade, preparei-me para trepar: queria ver o que havia do outro lado daquele muro. Queria ver e vi. Vi e fiquei literalmente de boca aberta como acho que vocês também vão ficar. Enquanto do lado de cá tudo eram pedras velhas, ruínas, oliveiras antiquíssimas, do lado de lá, tudo estava inteiro, recomposto como se ainda estivéssemos no tempo em que Cardílio e Avita ali viveram: as ruas empedradas, as casas de paredes pintadas, as lojas com mercadorias às portas… Fascinado, até me esqueci da lagartixa mágica. Mas ela é que não se esqueceu de mim:
— Pst! Pst!
Era ela que, com gestos insistentes das patitas e da cabecita me incitava a entrar numa das casas.
Entrei. Dei uns passos um pouco a medo e logo me achei numa sala mobilada e decorada com leitos e tapetes e candeias e jarros e estatuetas… Tudo daquelas cores que costumam ter nos filmes passados no tempo dos Romanos.
A sala era comprida e mal iluminada ao fundo. Para lá do meio, tudo eram sombras. A mim parecia-me que, junto à parede mais afastada, alguém acabava de se reclinar num leito. Parecia-me, mas não tinha a certeza. Por isso, fui andando, andando. Era verdade: um vulto fitava-me. Tinha o olhar da lagartixa, mas já não era lagartixa. Agora tinha figura humana. E disse:
— Não tenhas medo. Aproxima-te. O meu nome é Atentus e sou socorrista de meninos curiosos. Quando um menino quer saber alguma coisa e a sua curiosidade não é satisfeita, se esse menino tiver os olhos e os ouvidos bem abertos, como foi o teu caso, basta seguir-me e encontrará não a resposta mas uma pista para a encontrar.
Eu, muito espantado mas animado pelo convite, dei mais uns passos na direcção do senhor Atentus que continuava a falar:
— Queres mesmo conhecer a história da transformação de um homem e de uma mulher em duas árvores, que Ovídio escreveu? Então, pega lá este rolo de papiro. Trata de o guardar bem. Quando estiveres sozinho, desenrola-o. Ele contar-te-á a história que queres saber.
Ganhei coragem, estendi a mão e agarrei o rolo. Meti-o imediatamente por baixo da camisola e preparava-me para dar meia volta saindo dali a correr, quando, elevando um pouco a voz, Atentus continuou:
— Não vás ainda. Ouve-me com atenção: para conseguires compreender o que aí vai escrito, tens de cumprir um procedimento obrigatório.
— E qual é?
— Como sou socorrista, tenho meios especiais para ajudar a curiosidade dos meninos. Por isso, fiz com que as palavras que aí vão escritas tenham poderes mágicos. Se as fixares com toda a tua atenção e vontade de compreender, cada palavra escrita em latim passará automaticamente para a tua língua, o português. Mas se a tua atenção fraquejar um bocadinho que seja, elas voltarão imediatamente a ser latim e nada perceberás. Agora vai.
Corri para fora da casa do senhor Atentus, voltei a saltar o muro e cá estava eu outra vez entre pedras antigas, chão poeirento e oliveiras velhas…
— Ah, estás aí. Já estava a ficar preocupada. Onde é que te meteste?
— Distraí-me a ver uma lagartixa e acabei por ir atrás dela…
— Vá, que agora vamos a um parque de merendas para lancharmos.
Era a professora que já estava a reunir-nos a todos para voltarmos a entrar no autocarro. O resto da visita de estudo correu bem, mas sem que nada de extraordinário voltasse a acontecer.
Eu é que estava mortinho por fixar os meus olhos nas palavras da história escrita no rolo que tinha por baixo da camisola. Ali, à vista de todos, não o podia fazer. A curiosidade tinha de esperar mais um bocadinho.
Chegado a casa, fui logo guardar o rolo mágico na gaveta dos meus segredos e, só depois do jantar, é que consegui escapar-me para o meu quarto: ia deitar-me cedo para descansar da fadiga da viagem.
Descansar? Qual quê! Em vez de esperar pelo dia seguinte, em que já estaria fresco e recuperado, a primeira coisa que fiz foi pegar no papiro e começar a desenrolá-lo, cravando bem os olhos em cada palavra, como me recomendara o senhor Atentus, socorrista dos curiosos. Começava assim: “Há nos montes da Frígia um carvalho junto a uma tília…»
— Ah! Cá estão as duas árvores… um carvalho e uma tília… — pensei logo eu.
A vontade de continuar a leitura era muita, mas na verdade, por mais que eu o não quisesse reconhecer, estava bastante cansado da viagem. Ia lendo, mas, de vez em quando, os meus olhos sonolentos deslizavam das palavras quase a fecharem-se. Ora, sempre que isto acontecia, distraindo-me, imediatamente a palavrinha, que eu estava a compreender muito bem em português, se transformava num conjunto de letras de que eu não entendia patavina: latim. Não estava a ser nada fácil. O Atentus bem me avisara.
Por exemplo: eu estava a começar a ler tod…, distraía-me e, quando voltava a olhar, em vez de toda, aparecia-me tota; ou a palavra dois, que me fugia dos olhos transformada em duo. Mesmo assim, prossegui a leitura.
Estava eu a ler uma parte que dizia «o velho trouxe um banco, que Báucis, solícita, cobrira com um pano…», quando, mesmo em cima da palavra pano, um sono quase invencível começou a fazer-me piscar os olhos: abria-os e lia pano; começava a fechá-los e lia textum; voltava a abri-los e lia pano; começavam de novo a descair-me as pálpebras e lá voltava o pano a transformar-se em textum. E isto por três vezes sucessivas, até que eu, intrigado, sacudi a cabeça com força. Contra o poder do sono, renascera em mim a alma de detective das palavras. Esfreguei os olhos e perguntei a mim mesmo:
— Em latim, cobriam bancos com textos?! Que disparate! Mas o que é que a palavra pano tem a ver com a palavra texto?
Mas já não tive forças para mais. Adormeci.
No dia seguinte, porém, continuei a pensar no assunto. Estava convencido de que conhecia muito bem a palavra texto. Embora, na verdade, só tivesse tomado conhecimento da sua existência quando comecei a andar na escola. Antes disso, para mim, havia livros, histórias, poemas, cantigas… Depois, sem que ninguém me explicasse porquê, todas essas coisas passaram a ser textos:
— Vamos ler um texto.
— O texto que tu escreveste é muito bonito.
— De que texto gostas mais?
— De que é que gostaste mais neste texto?
Texto para aqui, texto para ali, o dia a dia da escola estava cheio da palavra texto. E, se querem que vos fale com toda a sinceridade, eu até nunca consegui gostar muito desta palavra. Tem um som muito apagadinho, coitada. É toda feita de sons baixinhos: t-x-t. Até parece estar a mandar-nos calar e ficar quietinhos. Confesso que gosto mais de palavras sonoras, vibrantes.
Estava, pois, convencido de que a palavra texto não tinha segredos para mim e acontece-me agora uma destas confusões!
— Que fazer? Acreditar em mim que sabia que texto era uma coisa escrita que se podia ler? Ou acreditar no papiro mágico que usava a palavra texto com o sentido de pano?
Mais um mistério a descobrir.
E não demorou muito.
A seguir às visitas de estudo, era costume escrevermos um relato do que se tinha passado e a tradição manteve-se. Logo ao princípio da aula, a professora disse:
— Agora, cada um de vocês vai escrever um texto acerca da visita de estudo que fizemos ontem.
Mal ouvi a palavra texto, imediatamente me lembrei do problema que tinha ficado por resolver no dia anterior. E, talvez porque sou um bocadinho maroto, em vez de me preocupar, decidi pôr-me a brincar. Às vezes, brincar ajuda a resolver os problemas. E, desta vez, ajudou.
Não sei o que me passou pela cabeça que, à medida que ia escrevendo o meu relato da visita, ia trocando pano com texto e vice-versa.
Talvez fosse uma espécie de vingança do rolo de papiro mágico que, na noite anterior, me dera tanto trabalho a ler.
Não sei. O que sei é que, de cada vez que precisava de escrever pano, escrevia texto; e, de cada vez que precisava de escrever texto, escrevia pano. Assim:
«Depois, vimos um mosaico onde estava escrito um pano que dizia…»
«Quando fomos lanchar, estendi um texto sobre a mesa de pedra, antes de lá pousar a minha merenda…»
Estava tão divertido a escrever estes disparates, que parece que nem tinha medo do que a professora iria pensar acerca de mim, quando os lesse. Normalmente é assim: quando estamos a fazer uma asneira nem nos lembramos das consequências. Mas, olhem, desta vez, as coisas nem correram mal de todo e foi, até, por causa desta minha maluqueira que ficámos todos a conhecer a origem da palavra texto.
No dia seguinte, a professora estava a comentar os nossos relatos da visita de estudo, quando, a certa altura, começou a dizer:
— Há aqui um menino muito brincalhão. Não lhe bastou andar a brincar com as lagartixas durante a visita. Também se pôs a brincar com as palavras ao escrever sobre ela…
Corei tanto que todos perceberam logo que era de mim que ela falava.
E continuou:
— O que esse menino talvez não saiba é que às vezes, a brincar a brincar, falamos de coisas sérias. Ora vamos lá ver se me sabem responder a umas perguntinhas: — Quem é que sabe como se chama a indústria que fabrica tecidos?
E logo muitos dedos se puseram no ar e algumas vozes não se contiveram:
— Têxtil! Têxtil! Têxtil!
— Muito bem. E para que servem os tecidos que a indústria têxtil fabrica?
— Para fazer roupa!
— Para fazer almofadas!
— Para fazer guardanapos!
— Para fazer panos de cozinha!
— Muito bem. E, então, vamos lá pensar um bocadinho: porque será que a indústria que fabrica os tecidos com que se faz a roupa, as almofadas, os guardanapos, os panos de cozinha, se chama têxtil?
— …
Ninguém sabia.
Eu começava a desconfiar, mas achei melhor ficar calado. Não fosse piorar ainda mais a minha situação.
— Não sabem? Pois eu vou explicar-vos. É muito engraçado: reparem numa palavra que vocês conhecem muito bem, a palavra texto. É nesta palavra que reside a solução deste problema.
— …
— Em latim, língua que, como sabem, foi a origem do português, texto era o mesmo que tecido, queria dizer tecido. As duas palavras até têm a primeira sílaba igual. Então, estão a ver, aquilo que produz um tecido (que em latim era texto) chama-se têxtil.
— Pois é. — disse o Carlos. — Mas, então, porque é que agora chamamos texto ao que escrevemos?
— Porque o texto escrito, em certa medida, é parecido com um tecido. Ora reparem: assim como, para fazer um tecido, as máquinas vão pondo os fios bem juntinhos, uns a seguir aos outros, também, ao escrever os textos, vamos enchendo as linhas de palavras umas a seguir às outras até a folha ficar toda coberta de letras, como se estivéssemos a fazer um «tecido» de palavras. E então resolvemos chamar texto ao resultado do nosso trabalho de escrita! Como dantes, no tempo dos romanos, se chamava ao resultado do trabalho dos teares.
— Que giro! — voltou a dizer o Carlos que estava mesmo a achar aquilo muito engraçado. — Quando eu estiver a escrever um texto, vou pensar que estou a fazer um tecido…
— Muito bem, Carlos. É isso mesmo. Estás a perceber muito bem. E, agora, já todos sabem qual foi o sentido original da palavra texto.
Eu, muito calado, ia devorando toda aquela informação.
E estava radiante por duas razões.
A primeira era que a professora fora discreta e não se pusera a querer saber o que me tinha levado a fazer aquela brincadeira da troca entre a palavra pano e a palavra texto. Tinha preferido aproveitar para nos ensinar a origem do sentido de mais uma palavra. E, assim, não me encostara à parede, obrigando-me a confessar coisas inconfessáveis.
A segunda era que, finalmente, tinha percebido porque é que no papiro dizia que Báucis tinha coberto um banco com um textum. Afinal, no tempo do Ovídio, texto era um pano. Que descoberta sensacional!
Gostei mesmo muito desta aula. E ainda por mais uma razão. Sabem qual?
É que, para alegria geral, a professora disse:
— E, agora, vou contar-vos a tal história das Metamorfoses do poeta Ovídio. Nela, como já vos disse, um casal de velhinhos acaba transformado em duas árvores.
E contou:
«Um dia, Júpiter e Mercúrio, deuses romanos, chegaram disfarçados de humanos a uma terra onde foram pedindo, de casa em casa, abrigo para repousarem. Ninguém lhes abriu a porta, excepto Báucis e Filémon, um casal de velhinhos que vivia numa casa muito pobre. Com o pouco que tinham, receberam muito bem aqueles dois viajantes que nem sonhavam que fossem deuses poderosos. Ofereceram-lhes um banco para se sentarem, cobrindo-o com um pano para que fosse mais confortável e serviram-lhes uma refeição. No fim, os deuses disfarçados revelaram quem eram e, antes de castigarem os outros habitantes pelo seu egoísmo, alagando todas aquelas terras, levaram Báucis e Filémon consigo, salvando-os. Quando Júpiter lhes perguntou que recompensa queriam, disseram que, já que tinham vivido sempre na companhia um do outro, queriam que a sua vida acabasse exactamente à mesma hora. Júpiter fez-lhes a vontade determinando que, quando a sua vida estivesse a chegar ao fim, à mesma hora, cada um deles se transformaria numa árvore.»
Aqui, a professora pegou num livro, abriu-o, começou a ler e nós ficámos todos muito caladinhos a escutar o final do texto que Ovídio escreveu no século I da nossa era:
«Um dia, acabados pelos anos e pela velhice, estando diante da escadaria sagrada a contar o sucedido neste local, Báucis observa Filémon cobrir-se de folhas, Filémon a cobrir-se de folhas vê Báucis. E, embora já lhes crescessem copas sobre os dois rostos, iam trocando palavras… E ainda hoje os habitantes da Tínia mostram ali dois troncos vizinhos, nascidos dos dois corpos.»[1]
[1] Ovídio, Metamorfoses, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia, pág. 217.
E é assim que muitos livros e muitos autores arredados pelos ares dos tempos, surgem — no discurso comum e avalizado sobre a leitura — na pobre qualidade de adversativas: não para serem lidos, mas como objetos de saudade e homenagem como a que se faz a mortos ilustres. São tratados como livros mortos que o apego ao tempo como critério de arrumação cultural silencia e sonega ao desejo íntimo de quem poderia amá-los. A coberto da ideia de mortos queridos, que alguns de nós conheceram, são induzidos como merecedores, tão-só, de uma reza de ressurreição projetada para um inefável juízo final, a partir do seu acondicionamento na memória de quem os ama.
Os livros não morrem de morte natural. Se os não enterrarem vivos, a sua vida está sempre em aberto, em desobediência às prescrições temporais e temporárias e em correspondência com o desejo íntimo de um leitor.
Há lá coisa mais bela e mais séria do que uma árvore a envelhecer?!
Os livros envelhecem como as árvores, mas, desligados que estão da sua raiz, muitas vezes já morta, e, sujeitos como estão à produção múltipla de atmosferas cujo multiplicador é a respiração de cada leitor, os livros não são finitos. Podem apenas — e isso é grave — ser subtraídos à respiração de um, de dois, de três, de muitos leitores provavelmente desejosos de os encontrar. Mesmo sem o saberem. Ainda.
«O encontro feliz com um livro foi combinado fora de nós.», afirmou Vergílio Ferreira. E o desencontro também, digo eu. Não sabemos se feliz se infeliz. Não o encontrámos.
Se, antes de mais nada e mais importante do que tudo mais, os livros vivem na relação íntima com os seus leitores, eles não são suscetíveis de juízos de adequação/desadequação a um tempo/lugar/desejo, à revelia da consciência íntima de felicidade pela leitura de um leitor. Quanto menos combinarem, fora de nós, os nossos encontros com os livros, menos os nossos desencontros combinarão e mais real e intimamente felizes pela leitura seremos. E nenhum livro estará morto e, de nenhum livro, se poderá afirmar aprioristicamente ser mais viável num dado ambiente epocal. Na mais recôndita biblioteca, sobre a mesa menos publicitável, à mão do menos conspícuo leitor, ele estará vivo. Nos taxonómicos discursos sobre a leitura, porém — e que enorme porém! — foi descarregado. Prepotência e engano. Trata-se de discursos que estão sujeitos a imperativos alheios à natureza pessoal e íntima da leitura. Aí, os livros estão sujeitos a motivações regidas por interesses, expectativas, finalidades de uma ordem diferente da felicidade de ler. São caminhos e lugares de «combinação» de encontros entre livros e leitores regidos pela fluidez do dinheiro. Mas há outros lugares cuja natureza pode (poderia) não-sujeitar-se ao imperativo económico gerador artificial de ambientes favoráveis/desfavoráveis a estes ou àqueles livros: as bibliotecas, as escolas.
Neste livro, há um conto meu e, nesse conto, pode ler-se:
[...]
Entretanto, iria afadigar-se com pequenos e variados afazeres domésticos que tinha atrasados, porque era esse um modo eficaz de bloquear a ansiedade, um conhecido e praticado modo de artificioso esquecimento que lhe permitiria surpreender-se com a chegada do neto, como de facto aconteceu:
— Já?
— Já!? Tínhamos combinado a esta hora, avô.
— Pois foi. Eu é que me tinha distraído. Estás grande!
— …
E, depois de um tempo de perguntas talvez supérfluas e respostas a condizer:
— Vou mostrar-te o Mendes, vais gostar do Mendes.
O Nuno estranhava sempre Portugal e aquele «mostrar-te o Mendes»... Seria cão? Seria gato?
O filósofo riu-se.
— Vamos a casa do Mendes, um amigo meu…
— Ah!
— … e, depois, se calhar, vamos até ao café, conversar. Gostas de conversar?
— Gosto. E gosto de ouvir conversar.
— Ótimo.
— Ó avô, tu és fi-ló-so-fo?
O Nuno articulava muito bem e vagarosamente as palavras difíceis. As outras, dizia-as a correr.
— Sou.
— E o Mendes?
— O Mendes é linguista.
— Lin-gu-is-ta!?
— Sim, gosta de estudar as palavras.
— E tu gostas de estudar o quê?
Iam a pé a casa do Mendes que não morava muito longe. Iam andando e conversando. De momento, José Vicente não estava descontente com o teor da conversa. Falavam de livros. O Nuno, quando chegara, trazia um livro, um desses álbuns de divulgação histórica para crianças sobre a biblioteca de Alexandria.
— Aquele livro que tu trazias…
— O da biblioteca de Alexandria?
— Sim, tu…
— Outro dia, vi na Net coisas fantásticas sobre a biblioteca de Alexandria.
— Ah, na Net…
— Tu não gostas da Internet?
— Sim, gosto, mas… Então, tu não sabes o que é um filósofo?
— Pois não.
— Um filósofo é alguém que gosta muito de saber.
— Ó avô, há mais filósofos como tu?
— Há, claro que há, e já há muito, muito tempo. Olha, no tempo da biblioteca de Alexandria, já havia filósofos. E muito antes, até.
— Não sei o nome de nenhum filósofo, sem ser o teu.
— Sabes nomes de quê?
— De jogadores de futebol, de cientistas, de músicos… Vá lá, diz lá o nome de um filósofo.
— Olha, por exemplo, Platão.
— Platão! Que nome tão esquisito!
[...]
Os escritores românticos atreviam-se a pressupor os seus leitores e, até, se dirigiam a eles; os realistas, a diagnosticarem as motivações, as perversidades, as consequências da leitura deste ou daquele tipo de livros. Mas isso era literatura, tão incerta e tão pessoal quanto a leitura. E, como esta, tão ambiguamente inútil. Duma inutilidade maravilhosa. Porque — lembremos — o senso comum que, agora, grita os mil e um benefícios da leitura ou disfarça a má consciência de não ler, o senso comum, dizia eu, já teve, sobre a leitura, opinião pouco abonatória. Quando uma coisa, a leitura, sobrevive aos juízos em sentido vário, oposto mesmo, que, no tempo, o senso comum sobre ela vai fazendo suceder, isso é certamente prova de que esses juízos a tomaram por aquilo que ela não é. Tomaram e continuam a tomar. A leitura não tem de ser útil ou inútil. Será? Não será? O que a leitura é, é necessária, que é uma função diferente da de ser útil.
O leitor é, por essência, um desalinhado, mesmo depois dos esforços programados para o fazer perder-se dessa sua essência e tornar-se um discípulo a quem, objetiva ou subjetivamente, se prescrevem horizontes; mesmo depois de o terem tornado objeto de um discurso cultural que se serve de conceitos como, por exemplo, camada (como em camadas jovens), como datado (como em livros datados), como acessível (como em livros mais acessíveis), como procurado (como em livros mais procurados), e que andam por aí a compor frases como: «Os livros mais acessíveis são os mais procurados pelas camadas jovens.» Ou: «Os livros muito presos ao que foi a sua época, datados, são inacessíveis às camadas jovens e não são por elas procurados.» É, este, um discurso que distribui, que qualifica, a partir de razões quantitativas, a partir de uma visão externa. O que é uma leitura genericamente acessível, fora da relação de um dado leitor com um dado livro? O que é uma camada de gente leitora? Sobretudo de gente jovem? Trata-se de uma visão superficial. A relação leitor-livro faz-se em níveis profundos, diferenciada porque criada no ato da própria e singular experimentação de ler. Os livros não são datados pela sua criação. Os livros são datados pela leitura. Quem data os livros são os leitores. Um livro é atual no momento em que eu o leio. Esses livros que se dizem mais procurados em verdade não são procurados, são postos conspicuamente em busca de leitores, à revelia do seu íntimo desejo.
[...] Pensando nisto e lembrando outras situações, tomamos a iniciativa de fundar imaginariamente uns imaginários NÃO-LEITORES ANÓNIMOS.
[...]
Eis um não-leitor anónimo em sessão:
— Eu chamo-me Vanessa e sou uma não-leitora. Não leio, porque, à minha volta, ninguém lê; não leio, porque me sinto desconfortável com um livro na mão; não leio, porque me assalta a timidez de entrar numa livraria; não leio, porque gasto o dinheiro em roupa; não leio, porque a minha cabeça fica parada a pensar na cor do cabelo da minha amiga Carla; não leio, porque, por não ler, esqueci-me do sentido de muitas palavras que vêm nos livros, o que torna a leitura muito difícil; não leio, porque, à minha volta, não é preciso ler para se ser reconhecido socialmente; não leio, porque o meu namorado acha betinho ler; não leio, porque acho que, se começar a ler, vou ser diferente e eu acho que, assim, é que sou gira; não leio, porque, quando tento, fico triste, pois começo a perceber a distância que há entre o que sou e o que poderia ser; não leio, porque está sempre a dar televisão e porque vamos ao cinema em grupo comer pipocas, fazer barulho e dar risadas. Eu sou uma não-leitora e estou aqui, porque quero ser ajudada a ser uma leitora.
Não esta previsto que esta história ficcionada vá ter um desfecho. Esta história não vai acabar nem bem nem mal, mas, mesmo assim, acha-se por bem informar que ainda não é, neste ponto, que esta não-leitoravai ser acolhida com uma ovação; ela ainda não disse não leio, porque não sinto necessidade de ler...
[...]
In Como Motivar para a Leitura (2003)
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