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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
E contou:
— Um dia, naquele tempo, pá, vocês sabem, naquele tempo em que os animais falavam, pá, e eu era pequenino...
Era uma desgraça, aquele professor! Mas nós achávamos-lhe graça. Era o professor de Português, daqueles para quem a erudição e a finura do estilo eram sagrados. Frases longas com todas as funções explícitas. Vocabulário cuidadíssimo. Nós, a leste. Sempre a leste. Entre o espanto e o destempero. Tinha a mania de mandar ler e logo, logo a seguir, perguntar «Então, menino, o que é que sentiste?» Dava bronca, quase sempre dava bronca.
Um certo dia, o texto é de cortar as pedras da calçada, muito triste, dois irmãozinhos e, depois, morrem um a seguir ao outro. «Então, menino, o que é que sentiste?» E o Pintas «Ó setor, senti-me muito chateado.» Já o professor sua por todos os poros a maldição da interdita palavra, quando, talvez ainda sob a comoção da leitura, o Pintas a querer ser conciliador, a fazer-se solidário com o professor na sua lástima, solta condoído «Ó setor, deixe lá, não se chateie.»
Lembro-me bem da paragem brusca na irritação do professor. Refletida na surpresa das nossas caras. O professor, retraído na orla da nossa irrevogável ignorância, o professor emudeceu. Salvo. O abismo chama o abismo. E o abismo éramos nós, suicidários náufragos na arte de bem marear a navegação das palavras. O mestre estava a desistir da tripulação. A aula encalhou.
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