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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 21.02.22

O PROBLEMA DA LEITURA

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     A biblioteca que o Livro veio habitar no outono de mil novecentos e cinquenta e oito ficava numa pequena vila provinciana não muito longe do mar. Arranjaram-lhe um lugar num único e atafulhado armário-estante e lá ficou a sua lombada a ver-se através de uma das vidraças por que se dividia a porta do grande móvel de onde saíam os livros que os leitores requisitavam. Era uma biblioteca benemérita de uma fundação que, naquela vila, encontrara abrigo numa das salas da Câmara Municipal. Em vez de bibliotecário, havia alguém que tinha a chave e acorria à vontade declarada de algum leitor de levar consigo algum dos livros que ali repousavam. Tinha a chave e fazia o registo das saídas e das entradas. Não obstante já ter tido e haver ainda de vir a ter outros formatos, outras letragens, outros espaços de respiração, outras capas, outras línguas, o Livro apresentava-se ali, naquela biblioteca, numa edição de formato vulgar, tamanho médio, sem nenhuma característica especial, legivelmente tipografado no espaço da página que largas margens enquadravam, escrito em língua portuguesa. Vestia-o uma capa de um aguado tom cinzento em que se desenhava um ralo perfil citadino por trás de uma figura esquálida e por baixo de autor e título, este bem mais saliente, em azul. À vista, a impressão que o Livro dava era, de qualquer modo, de um cinzento deslavado nada atrativo para o olhar. Tirando a promessa azul do título, claro!

    Aquela biblioteca parecia uma casa de repouso e, nela, de tão quietos, os livros chegavam a ganhar bolor. Certamente também devido à humidade provinda da proximidade do mar. Apesar da diminuta procura, mantinham-se, no entanto, ali, os livros, não fosse alguém, de repente, lembrar-se de sair de casa em busca de uma leitura que lhe trouxesse novidades aos dias silentes da vida na pachorrenta vila. E, um dia, assim aconteceu com aquele Livro.

     Já não era outono, o arco do tempo tinha já rodado quase um ano inteiro desde que o Livro ali chegara. O tempo rodara, mas o livro não. Permanecera no mesmo sítio em que o tinham depositado, mas, em breve, a sua espera por um ansiado leitor iria, enfim, terminar.

     E assim foi. Nesse verão, alguém, depois das alegrias da praia e do campo, e das conversas e dos passeios, e das festas e lembranças, lembrou-se do armário dos livros que sabia existir na sala da Câmara. Tratava-se de uma rapariga.

      A Rapariga olhou a correnteza das lombadas e escolheu aquele Livro. Era um primeiríssimo encontro cego. Nada sabia do título e do autor, nem da coleção, nem do editor. Escolheu-o porque sim. E trouxe-o para casa.

     A casa era antiga e estava fresca. Respirava-se bem na casa da avó em que o silêncio poderia escolher o quarto em que se instalar. Era uma casa grande onde harmoniosamente conviviam lugares de silêncio e lugares de algazarra sem se incomodarem mutuamente. A Rapariga escolheu um lugar de silêncio: o quarto onde, nessas férias, dormia. Escolheu uma cómoda posição sobre a cama e pôs-se a ler.

     Ao princípio, no decorrer das primeiras frases, um bem-estar profundo ia-lhe acompanhando a leitura dessa história escrita numa linguagem macia a que se ia aconchegando o ouvido interior da leitora.

     Animada pela felicidade do começo daquela leitura, a Rapariga continuou a avançar. À medida, porém, que ia conhecendo gente de dentro do Livro, começou progressivamente a levantar-se-lhe da leitura uma atmosfera perturbadora feita de suspeições de intrigas ameaçadoras, de temor quanto à sanidade mental da personagem pela voz da qual tudo era contado... A aguda sensibilidade da leitora estremecia já, como a de quem faz um caminho antecipando a desgraça a cada esquina. A Rapariga era estudante, dava os primeiros passos num curso de História e tinha como tema de sua preferência o da história das instituições. Era estudante e bastante idealista, crente na sua vontade de tornar melhor a vida futura. Quando a leitura a mergulhou na visão profundamente cínica e cética, por parte da personagem narradora, quanto à bondade e à seriedade dos mecanismos supostamente garantísticos da aplicação da justiça, a Rapariga suspendeu um pouco o seu ler, sentindo-se perturbada pela acutilância de uma tal desmistificação. Respirou fundo e continuou. Continuou, mas já sem a sensação de navegar num rio largo e manso que o contacto inicial com o livro lhe dera. Somavam-se, agora, incongruências continuadas que deveriam ocultar alguma causa misteriosa, mas que, a seu desprazer, a enervavam.

    Naquele verão sem escola, a tarde era longa, larga, luminosa, a preguiça consentida, e certamente haveria, dentro em pouco, o tempo certo para um qualquer volte-face na história que lhe devolveria a calma leitora: por isso, continuou. O dentro em pouco, porém, começava a demorar excessivamente para o desejo da leitora. Não surgia. Pelo contrário, a voracidade da espiral conducente, talvez, à loucura e ao crime, cada vez mais se lhe enroscava nos nervos. Mudou a sua posição sobre a cama, alteando as pernas até ao limite da cabeceira, o livro comodamente recostado na dobra natural do seu corpo. Continuou a leitura. Na sucessão das páginas pairava sempre a suspeita de fortes angústias futuras. Crimes? Infelicidade profunda? Mas, então, porque haveria nas palavras do título aquele tão notório índice de felicidade? Malhas tecidas pela perversa imaginação do autor? Ou, senão perversa, pelo menos, irónica? Com o dedo entalado a marcar o ponto em que deixara a leitura, pôs-se a olhar de novo a capa... Realmente, vendo mais atentamente, havia ali um contraste ameaçador entre o azul do título e o pó cinzento tintando escorrências pálidas que preenchia toda a capa. Realmente, a figura plantada sobre este fundo triste tinha uma expressão facial e um descair de ombros que nada de bom augurariam... reparou, agora, melhor. Sinais de quê? A vontade de, naquele risonho dia de verão, não se deixar imaginariamente entristecer começava a tolher-lhe a leitura. É que não lhe apetecia mesmo nada angustiar-se.

    Fosse como fosse, não obstante este nascente somar de resistências, o seu ouvido interior de leitora não conseguia ainda negar-se ao desafio de vir a deslindar as revelações que haveriam de fazer desabar aqueles muros de incongruências e ambiguidades que começavam a assombrá-la. Virtude do autor. Virtude da sua arte de contar. Leitora jovem, ainda não muito experiente nos caminhos da leitura, sentia-se numa encruzilhada: queria saber, mas não queria sofrer. Queria saber como é que tudo iria acabar, mas não queria sentir a dor fictícia quase tão concreta como uma dor real, aquela, a propósito da qual, o poeta que não nos larga dissera «Sentir, sinta quem lê!» A Rapariga não era, não era mesmo nada, especialista em distanciações reflexivas que a salvassem de ficar presa nas malhas emocionais.

      Prosseguiu, menos quieta, remexendo-se mais, mudando mais vezes de posição, sinais de nervosismo crescente. O seu corpo que lia parecia imitar os ziguezagues da história, as contradições indomáveis da personagem que a contava, a falta ainda de um caminho claro para um desenlace. Onde ia já ela, a distensão corporal, a respiração tranquila na clara luz e no silêncio macio daquele seu quarto de férias cheio de sorridentes memórias fotografadas sobre os móveis antigos, com que começara, pela leitura, uma desafiante investida no desconhecido? Desaparecera. A luz exterior estava cada vez mais doce e cada vez mais coalhava, de um morno afável, a atmosfera do quarto. Mas a luz trémula e sombria, que do livro cada vez mais irradiava, estava a vencer. Como era possível? Como era possível a luz negra de uma história dentro de um livro apagar a dourada luz do sol? A angústia crescente com que lia subia-lhe nos nervos, trepava-lhe até às mãos, punha-lhe insegurança no virar das páginas e, às tantas, num piparote desabrido, descolou-se do livro que, sacudido com força, cruzou o ar do quarto num voo rápido e foi aterrar sobre o antigo psiché. A Rapariga, com um «ufa!» libertador, distendeu o corpo, espreguiçou os braços e acendeu de novo a luz e o calor do sol apagando o negrume da leitura. O Livro não foi lido até ao fim. Dele, a Rapariga guardaria para sempre a lembrança de um insustentável peso opressivo sobre o seu inato e pouco maturado desejo de alegria, desembocando naquele caricato arremesso.

    A vida do Livro, porém, nem sempre correra assim, tão acrobática. A história que, dentro de uma capa triste, depois de algum tempo jazer, repudiada, no quarto da Rapariga, foi devolvida à biblioteca, tivera já outras vidas. O Livro fora, vinte seis anos atrás, um jovem livrinho recém-editado num pequeno formato, apresentando-se, ao primeiro olhar, em tons fortes de negro e vermelho. Na sua capa, derramavam-se estas cores fortes vertidas sobre um grande rosto enigmático. Título e autor abaixo, no limite do corte, em negro maciço. Estava-se, então, no já longínquo ano de 1932, ano esse em que aquela história, excessiva para a Rapariga de 1958, conseguira, pela primeira vez e não sem alguma dificuldade, emergir para a luz da edição. Suscitara, desde logo, entusiasmo ledor de quase todos os recetores profissionais de literatura, críticos e afins, e até o bem abonado aplauso de alguém como Hernâni Cidade que, sobre ela assim escreveu: «Considero este livro a mais notável revelação de romancista da nova geração.» Tal não significou, porém, uma corrida à sua leitura por parte dos leitores anónimos. Um ou outro, sim. Ia aparecendo nas montras das livrarias consagradas que então havia e nas mãos de alguns leitores que a liam sentados nos bancos de jardim que, então, também havia ou nas suas cadeiras de descanso, em casa, depois do trabalho.

     Ora, numa manhã de chuva miudinha, passava, numa rua da Baixa lisboeta, um homem dos seus trinta anos, a caminho do emprego. Era num escritório de uma dessas antigas ruas retilíneas que o Homem se sentava todos os dias em frente à máquina de escrever. Datilografar era o seu principal ofício. Passava, na rua, o Homem e, na montra da livraria que então ali havia, lá estava o Livro que, mais de vinte anos depois, haveria de voar das mãos da Rapariga angustiada. O vermelho e o negro da capa fazia-se notar entre os outros livros predominantemente pardos ou de cores esbatidas. O Homem ia com tempo e resolveu entrar. Cumprimentou elevando e inclinando o chapéu, mudou a pasta de mão e, depois de olhar em volta, pediu com decisão o livro pequeno de capa vermelha e negra que vira na montra. O livreiro disse muito bem e ainda acrescentou é um bom livro, saiu há pouco tempo. Enquanto o livreiro rasgava um quarto da folha de papel pardo com que, a seguir, embrulhou o Livro, o Homem fazia saltar do porta-moedas para a palma da mão duas moedas, uma de cinco escudos e outra de um escudo com que o pagou. Ouviu-se ainda, quase simultâneos, o tilintar da máquina registadora e o estalar do fecho metálico da pasta em que o Homem guardou o Livro. De novo fez inclinar o chapéu em jeito de cumprimento e saiu agora apressado e como que sentindo-se acompanhado pelo mistério que guardara na pasta. Cada livro ainda não lido é um mistério! Pelas dezoito horas, escuras de inverno, o Homem, já em casa, sentou-se na sua cadeira de descanso perto da janela e junto à luz do candeeiro de pé. Tinha nas mãos o Livro. Era o caminho pelas suas 166 páginas que agora ia iniciar. Começou. À medida que o recorte da personagem narradora ia emergindo nas suas facetas de luz e sombra, suscitando-lhe tanto pensamentos conclusivos como dúvidas, tanto sensações de reconhecimento como de quase-absurdo, o Homem ia-se sentindo agarrado quase como se estivesse ao leme de uma viagem que queria por força terminar. Que fim? Que fim iria ter tudo aquilo? Era a pergunta que latejava nos seus dedos de cada vez que moviam mais uma página. Tratava-se de um leitor muito racional, sempre a pensar nas causas dos comportamentos e muito blindado para influências emocionais desprevenidas. E, depois, havia no ambiente de vida daquela personagem alguma semelhança com o da sua, mas, curiosamente, um antagonismo perfeito quanto ao modo como o viviam. Era como se ali, naquela história, estivesse pintado o outro lado da sua Lua. Que esperava nunca vir a pisar, mas gostava de ver ali narrado. Era um lado obscuro, tingido de sentimentos malévolos, em que, sabia-o firmemente, nunca iria entrar. Esta distância abismal entre si e o escriturário da história mantinha-o alerta. A sua atenção de leitor seguia os passos daquela personagem que, simultaneamente, era e não era um espécime vulgar. Interessava-se quase cientificamente pelo surgimento de cada perturbado assomo de vontade de crime por que a personagem frequentemente era tomada. E, simultaneamente, pensava na genialidade narrativa que colava na mesma figura a sanidade aparente e a profunda alienação, o cumprimento profissional e os gestos descontrolados conducentes à autodestruição. À hora de jantar, fechou o Livro e com gestos tranquilos, bem diferentes do arremesso brusco da Rapariga da vila sossegada vinte e seis anos mais tarde, pousou-o na mesinha ao lado da cadeira. Pousou-o e, com ele, deixou também de pose a vontade de continuar a lê-lo no dia seguinte. Tinha ficado na página 66. O Homem gostava daquele tipo de histórias que não se multiplicavam por muitos meandros e recantos, mas permaneciam coesamente unidas por um fio de sentido forte e intrigante. Aquele autor sabia fazê-lo, pensava. Gostava também de histórias que, como aquela, lhe contavam o fundo psicológico oculto por baixo da superfície dos gestos aparentemente normais. E de acompanhar a progressiva contaminação da nitidez dos gestos superficiais pela luz negra de neuróticos impulsos descontrolados, quem sabe se até ao crime... Iria haver crime? O Homem que levava uma vida completamente normal e era feliz assim, gostava, no entanto, de, pela leitura, mergulhar em situações e personagens feridas pela anormalidade que a leitura lhe tornava claras, expostas. Tinha acertado com aquele livro. O desacerto entre as festivas palavras do título e o vermelho e o negro derramados sobre aquela cara, ali na montra da livraria, não o enganara. A sua escolha, porém, não fora totalmente furtuita. Para além da intuição vinda dos sinais que o aspeto exterior de um livro sempre emite, a verdade é que o nome daquele autor associado àquele título não lhe era totalmente estranho. O Homem gostava de ler jornais que, por essa época, quase todos, traziam breves ou mais desenvolvidas resenhas e até anúncios de livros. Tinham-lhe ficado na memória as palavras que, há tempos, lhe tinham passado por baixo dos olhos, na rubrica dos livros e dos autores do Diário da Noite, subscritas pelo prestigiado jornalista Julião Quintinha e que, acerca do Livro, diziam: «... demonstra-nos que Portugal conta, hoje, com um Grande Novelista». O Homem concordava: a arte narrativa e o interesse temático daquele Livro só de um grande novelista poderiam ter saído! E foi assim que, em fins de tarde sucessivos, não muitos porque a leitura correra bem, o Homem acabou de ler o Livro. Logo a seguir à leitura das palavras finais [«O resto, já o doutor sabe. Não me pregunte (sic) mais nada, foi exactamente assim que tudo se passou — nem podia ser de outra maneira, embora eu próprio duvide algumas vezes e o senhor possa julgar que eu não passo dum pobre alucinado.»], o Homem suspirou de satisfação e deu uma palmada afetuosa no Livro já fechado, enquanto ia repetindo «Sim senhor, sim senhor!». Depois, foi guardá-lo na estante fronteira. Lá, ficou o Livro, quieto, à espera que outras mãos, que outro olhar, que outro pensamento, o viessem de novo desassossegar.

   Um ano passou, outros anos passaram, e este Livro, na sua capa vermelha e negra, foi sendo empurrado para trás pelo tempo que acelerava. De quando em quando, porém, a intervalos lentos de anos volvidos, faziam-no vestir de novas formas gráficas e lá surgia ele de novo à tona da leitura. A sua vida de livro ia-se desenhando num horizonte pontuado por picos e depressões. Tudo, embora, suavemente modelado, sem grandes sobressaltos. Revelava ser um Livro de procura um tanto sonolenta, mas ainda assim persistente, estremecida, de vez em quando, por uma ou outra voz que asseverava a grandeza da arte com que fora escrito. Longas temporadas, parecia adormecido no silêncio à sua volta ou no íntimo dos seus leitores obscuros. Ia envelhecendo, o Livro, ilustre quase-desconhecido, como um segredo bem guardado? Os livros de boa casta, como este, parece que envelhecem, mas não. A espaços irregulares mas marcantes, o tumulto psicológico que a sua leitura, talvez inesperadamente, desocultava, expandia-lhe as oportunidades de redescoberta, tornando felizes, os seus leitores. A cada uma das décadas que sobre ele iam passando, o Livro, que na década de trinta do século vinte nascera, reemergia envergando nova capa, assomando de novo nas montras, caindo nas mãos dos leitores que com ele se encontravam.

      Anos cinquenta, aqueles em que vimos a Rapariga, esmagada de angústia, a atirá-lo pelos ares até cair no psiché, na casa grande e fresca da avó, num quieto verão provinciano...

      Anos sessenta, aqueles em que um Jovem Leitor, fascinado pela temática da loucura e da marginalidade, repetia à saciedade, pelas clandestinas tribunas estudantis o seu espanto e revolta frente ao esquecimento a que o Livro, genial, dizia ele, parecia votado...

     Anos setenta, em que, numa concorrida reunião política, um jovem militante, com o Livro em punho, o agitava contra a burguesia, gritando leiam isto, leiam isto...

     Anos oitenta, em que uma professora apaixonada por Literatura, o colocou na vitrina expositiva da Biblioteca da sua escola...

     O Livro ia vivendo entusiasmos e deceções, paixões e indiferenças...

     Ora, um dia, mudado já o século, dobrara já o livro o ano de se tornar septuagenário, lembraram-se de lhe darem um formato pequeno, daqueles que, pelo menos teoricamente, cabem num bolso. A intenção era a de o tornarem mais próximo, de facilitarem o seu contacto com os leitores, talvez obedecendo à falsa ideia de que o valor está na aparência. E lá encolheu, materialmente, o Livro, apertando a mesma história perturbadora de sempre em páginas de pouca margem, em letra de pequeno tamanho. Tinha, agora, 145 páginas, o Livro que começara com 166. O esboço de perfil citadino desenhado sob a aguada cinzenta da sua velha e mais repetida capa, aquela da década de cinquenta que voara das mãos da Rapariga, era agora substituído por uma fotografia de época, a preto e branco, em que a cidade surgia habitada por homens de chapéu, iguais ao seu leitor dos anos trinta. Homens movendo-se desencontrados, dentre a cinzentez dos quais, olhava, num círculo de menor penumbra, talvez aquele cuja voz diz, ao terminar do Livro, que sobre si se possa pensar que não passa de um pobre alucinado. Bem perdidos trabalhos devam ter sido, os envolvidos no reforçar do Livro como alvo de atenção e de compra! Perdidos, porque o lustro de atualidade que lhe quiseram dar foi na realidade um fogo fátuo. Fátuo, porque muito pouco o deixaram durar, ao Livro, nos escaparates, logo empurrado para ignotos armazéns por novas fornadas, sempre a sair, sempre a sair. Era esta uma época em que não havia, para o Livro, o tempo de ser avistado, de ser referido aqui e ali, de ser motivo de opiniões saboreadas por uns e por outros, de ficar demoradamente a amadurecer no desejo de alguém, de ser adiado para daqui a uns tempos, quem sabe... porque de momento haveria outras prioridades de leitura... Quando a decisão final de o ler estivesse madura, chegar-se-ia lá, à livraria, das poucas que ainda ia havendo, e o Livro... Que é do Livro?! Fora empurrado pela imparável enxurrada para catacumbas donde, apenas por processos mais ou menos complicados e, muitas vezes, desistidos, poderia ser resgatado para a luz da leitura. Porque — desengane-se quem julgue que não é assim demorado o caminho dos leitores, múltiplos e diversos, para um livro — a compra de um livro não é a compra de um legume para pôr na sopa, que se apresenta, um dia, viçoso, e logo, perdido o viço, é remetido para o amontoado do que já não serve, do que já não vende. E foi assim que, nesta altura, o Livro, pese embora o renovado esforço para o pôr presente, muito pouco luziu nas montras.  

       Ora foi precisamente quando estes transes se atravessavam na vida do Livro que a professora apaixonada por Literatura que, na década de oitenta, o tinha exposto na vitrina da Biblioteca da sua escola resolveu propô-lo para leitura e conversa, na comunidade de leitores que coordenava. O Livro era, para aqueles leitores que o iriam ler em comum, um desconhecido. Mas não era com o fito de virem a conhecer o que, até aí, desconheciam, que se reuniam?! Era, pois! Vamos a isso! E foram à procura do Livro, crentes um tanto ingénuos, que, sendo livro e livraria palavras da mesma família, seria lá, nesse lugar familiar dos livros, a livraria, que o iriam encontrar. E é, então, que conseguimos ver uma Leitora rondando os escaparates mais salientes, tomando a sua vontade pela vontade do vendedor e pensando, por isso, que seria por ali que o Livro certamente estaria. Mas não estava. A Leitora passou então às estantes, pondo o seu olhar atento a descodificar o critério de arrumação, a triar autores, títulos, nacionalidades, editoras... e nada! Do Livro, nem sombra. Onde estaria o Livro? Então, a Leitora dirigiu-se ao vendedor e perguntou:

   — Boa tarde? Por acaso não tem o Livro?

   — O Livro?! Só um momento, que eu vou verificar no sistema...

   — Olhe, não, de facto, o Livro não temos.

   — Não têm?!

   — Sabe, já saiu há uns dois meses... agora, só encomendando. Se quiser, podemos encomendar e, daqui a quinze dias, no máximo três semanas... Deixa-nos o seu contacto e, nós, se a editora o tiver em armazém... enviar-lhe-emos um SMS.

— Que maçada! Que maçada! -  Ia consigo remoendo a Leitora, desandando rua acima sob o sol escaldante de Lisboa - O Pessoa é que sabia... Ai, que maçada...

 

 

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por Maria Almira Soares às 16:08

Sábado, 19.02.22

A FELICIDADE PELA LEITURA

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In «JULIO DINIS em OVAR», Anthero de Figueiredo in Serões — revista mensal ilustrada, n.º 8 (Fev.1906).

 

JÚLIO DINIS SOB O SIGNO DA MELANCOLIA E DO PRAZER

                «Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também, um prazer suave, íntimo, consolador.»  

    Esta frase é retirada do romance Uma Família Inglesa, o primeiro que Júlio Dinis escreveu, não o primeiro que publicou. Começou a escrevê-lo (presume‑se) em 1858, quando era um jovem escritor com dezanove anos de idade, mas só iniciou a sua publicação quase dez anos depois, em 1867, em folhetins, no Jornal do Porto, com o título Uma Família de Ingleses e publicou-o em volume, em 1868, já com o título que hoje tem. Este foi o seu único romance de temática citadina. Entretanto, deu prioridade de edição a As Pupilas do Senhor Reitor, um romance de cenário rural, que iniciara e em parte escrevera em Ovar, a terra acerca da qual Júlio Dinis disse, em carta de 1863, dirigida ao seu amigo Custódio Passos, «Ovar é uma vila e é uma aldeia».

   Olhando mais de perto as palavras sobre melancolia e prazer, de que parto, situo-as numa passagem do desenvolvimento da intriga sentimental do romance: o encontro aparentemente casual entre Carlos Whitestone e Cecília. Trata-se de um momento melancólico pelo lugar em que se desenrola e pelas memórias que evoca nas personagens.  O lugar é um cemitério, onde convergem Manuel Quintino e Cecília, motivados pela evocação saudosa da mulher e da mãe, e Carlos cuja presença tem uma motivação de sinal emocional diferente, o seu amor por Cecília. Porém, partilhando Carlos com ela a situação de orfandade materna, há razões para pressentirmos que também ele seja contagiado pela melancolia ali reinante. Em fundo e já fora do romance, não deixa de se vislumbrar ainda a sombra do autor, ele próprio vítima da perda precoce da mãe.

     Alheio à intriga, o narrador procura interpretar os sentimentos das personagens e, portador de apurado sentido da ‘verdade’ das suas emoções, associa, à melancolia que sentem, alguma dose de prazer. De facto, é verosímil que, a contragosto do lugar fúnebre em que se encontram e dos tristes acontecimentos que evocam, Carlos e Cecília sintam prazer por estarem próximos um do outro, não só física, mas também emocionalmente, graças à afinidade das memórias que partilham.

     Assim começa, este meu texto, em tom menor. Em breve, porém, como fez o narrador dinisiano, associarei a esta tonalidade melancólica outras notas mais eufóricas: as do prazer de criar e de ler literatura.

     A caminho de deslocar o seu significado para um outro contexto, teclo de novo o pensamento inicial: «Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também, um prazer suave, íntimo, consolador.»      

    Trata-se da expressão de uma “verdade” que não se esgota no sentido que o seu lugar intratextual lhe permite. Há, nela, uma reflexão genérica sobre a complexidade das emoções que me permite recolocar as suas duas palavras fortes,melancolia e prazer, em outras conjugações extratextuais.

    Penso, por exemplo, na conjugação, harmónica no seu resultado, entre o facto de Júlio Dinis, um homem de temperamento melancólico, ter criado uma obra de carácter genericamente festivo que fez os seus leitores experimentarem o sentimento de felicidade pela leitura. Esta constatação, pela contradição que de certo modo encerra, não deixa de suscitar um certo efeito de espanto e de curiosidade, que pode ser formulado desta maneira: como é que uma obra de leitura tão consoladora pôde ser produzida por uma pessoa de feitio triste e de vida tão torturada pela doença e pela morte!  

    De facto, a melancolia era, segundo testemunhos vários e até confissões do próprio, uma característica bem visível no modo de ser de Joaquim Guilherme, a pessoa subjacente ao autor Júlio Dinis, que boas — ou antes más — razões tinha para ver a vida com olhos tristes.    

     Em 1926, numa peça publicada no Diario do Porto, uma entrevista ao Dr. Alfredo de Magalhães, ex-diretor da Faculdade de Medicina do Porto e reitor da Universidade da mesma cidade, a propósito das homenagens prestadas ao doutor Joaquim Guilherme Gomes Coelho, como forma de celebrar o centenário dessa escola, o jornalista refere-se-lhe nestes termos:

    «A obra de Julio Diniz é uma obra cheia de graça cintilante, cheia de beleza e de expressão. Julio Diniz era, todavia, um espírito melancólico e taciturno, duma expressão triste e dum caracter frio, duro e até intratável.»

   Informação semelhante pode colher-se a partir do relato que Anthero de Figueiredo nos deixou da sua visita a Ovar, mais propriamente da reprodução da conversa que manteve com a prima do escritor, durante o seu encontro na casa que, quarenta anos antes, o tinha acolhido:

   «— Tinha um ar triste, afirmei eu, quebrando o silêncio.

    — No Porto, sim, e aqui quando chegou: tudo lhe aborrecia!»[1]

    Em ambas as situações, Júlio Dinis é referido como dado à melancolia e ao aborrecimento.

    Estariam o jornalista do Diario do Porto e Anthero de Figueiredo a ser exatos?

    De facto, existem outros testemunhos a confirmá-los.

    Camilo Castelo Branco, por exemplo, escreveu acerca de Júlio Dinis, numa carta a Castilho: «É um sujeito doente e triste.»

    E o próprio Júlio Dinis não deixou de se referir repetidamente a estas características do seu temperamento, sobretudo em cartas dirigidas ao seu muito amigo Passos, irmão do poeta ultrarromântico Soares dos Passos, de que respigo umas quantas passagens:

— «... têm-se-me exacerbado os meus humores negros e estou, pelo menos moralmente, algum tanto pior.»;

— «... quando anoitece e pela madrugada, em que os diabos negros se apoderam de mim.»;

— «A solidão longe dos homens é para mim uma coisa agradável»;

— «Eu não tenho a qualidade, que admiro em certa gente, de apreciar a convivência...»;

— «... conspiraram-se variadas circunstâncias para me levarem o espírito àquele grau de melancolia já de há muito meu conhecido.»

    Júlio Dinis não era, pois, um ser dado ao bom humor. Era, pelo contrário, propenso a deixar-se dominar pela tristeza, amante da solidão, pouco dado à convivência, melancólico. E, no entanto, como escreve o jornalista do Diario do Porto, produziu romances cheios de «graça cintilante».

    Admirável talento literário, o seu, que soube criar e compor com um realismo assinalável, a partir da observação e da imaginação, figuras cheias de vivacidade como um João Semana, alegres e até um pouco entontecidas pela alegria própria como uma Clara, e tantas outras movendo-se em enredos romanescos que desencadeiam, nos seus leitores — os mais eruditos e os mais populares, no seu tempo e muito tempo depois — sentimentos de reconforto anímico, sensações de agrado, momentos de felicidade pela leitura.

    À receção da obra de Júlio Dinis que constituiu um caso singular de estrondoso êxito, esteve ligado um culto afetuoso da personalidade literária do escritor, motivado por uma espécie de gratidão, a do leitor que experimenta a leitura benfazeja. 

   Razão há, pois, para espanto perante o facto de um homem de temperamento e vida muito pouco alegres ter dado tanto prazer, através da leitura, a gerações e gerações de leitores! Quem, leitor da sua obra, mas desconhecendo a sua vida, adivinharia que por trás de romances tão solares estaria um homem tão sombrio!?

    Júlio Dinis tem consciência da vivacidade que anima os seus romances. Mais: dá-nos testemunho de como esse apelo literário ao vívido contacto com situações e personagens animadas por um realismo pleno de espontaneidade na exteriorização de sentimentos e anseios, reverte também em seu benefício, interrompendo o seu pendor para a solidão, o seu feitio avesso à convivialidade que não fosse a dos muito próximos. Assim, numa carta, datada do Funchal, dirigida a sua prima e madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho, que trata afetivamente por Ritinha, escreve: «na vida desconsolada e insípida que aqui passo há verdadeiramente só duas ocasiões de satisfação para mim. A primeira é quando recebo e leio com ardor as cartas da família e dos amigos; a segunda é em alguns momentos em que me esqueço da realidade em que vivo, por muito me engolfar em um certo mundo que ando construindo e na convivência de umas criaturas que me devem a tal ou qual existência de que principiam a gozar.» Este «certo mundo» era o mundo de ficção que criava, no caso o de Os Fidalgos da Casa Mourisca que andava a escrever na altura, e as ‘criaturas que lhe deviam a existência’ eram «gente» imaginária como Dom Luís, Jorge, Maurício, Berta, Gabriela... personagens do romance.

   Aos momentos felizes que lhe dava o convívio imaginário com as personagens e com as cenas que criava, soma-se ainda a felicidade sentida, embora nunca muito exteriorizada, com a extraordinária receção da sua obra. Veja-se o caso da adaptação teatral de As Pupilas do Senhor Reitor por Ernesto Biester e o episódio apoteótico da sua estreia no Teatro da Trindade, em Lisboa.

     No caso de Júlio Dinis, o momento da elaboração literária e o da receção obtida pelo produto dessa elaboração, embora distanciados no tempo, estão fortemente correlacionados. A matéria do seu trabalho literário é fruto de uma aguda e justa observação do real, da vida de gente vulgar, e, por isso, os leitores, gente real e comum, sentem-se participantes dos seus romances e, daí, confortados com o reconhecimento de situações por eles vividas ou testemunhadas. Deste modo, experimentam a felicidade pela leitura e agregam grande afetividade ao acolhimento da sua obra. E esta é a principal razão de ter sido, ele, um caso singular de intenso e extenso êxito popular, o que não poderá ter deixado de talhar com momentos de alegria o seu pendor melancólico.

     Os romances de Júlio Dinis tiveram a arte de transformar em leitores e propagadores de leitura muitos que, até aí, não o eram. E isso deveu-se, em muito, à vivência de um gratificante processo de autoprojeção e identificação, que é o cerne da leitura de massas e arrebata amplas camadas de leitores médios.

     Sampaio Bruno, ou seja, José Pereira de Sampaio, de pseudónimo Bruno (de Giordano Bruno), diz em A Geração Nova: «O sucesso de Júlio Dinis proveio, pois, desta alegria do público em se sentir passar de espectador a ator em obra literária e o Sr. Luciano Cordeiro engana-se, julgando que o êxito da obra do escritor era um desfastio, porque, mais do que isso, ela correspondia a uma íntima necessidade de se encontrar na novela a representação da sociedade viva.»

    Teixeira de Vasconcelos, no jornal A Reforma (1871), afirma: «Gomes Coelho não apresenta nos seus livros nenhum d’estes repugnantíssimos typos, cuja história o leitor se enfada de lêr [...] Júlio Dinis retrata cenas que fazem bem ao coração do leitor».        

    Facto notável este, o de os romances de Júlio Dinis, num país com mais de oitenta por cento de analfabetos, encontrarem meios de serem “lidos” até por quem não sabia ler! As suas palavras eram recebidas oralmente em rodas de leitura em voz alta.

    Irene Vallejo diz que as palavras são, antes da existência de qualquer tecnologia cultural de escrita, «meros pedaços de ar»[2]; cita, de Homero, as «palavras aladas» que, posteriormente, procuraram «a sobrevivência»2, através da escrita. É, nessa sua primeira natureza aérea, que as palavras de Júlio Dinis encontram o caminho de muitos dos seus leitores/ouvintes. De facto, muitos dos seus leitores, apaixonados conhecedores e citadores das suas histórias, das suas personagens, eram analfabetos. Viviam-se tempos que nada tinham já de homéricos, mas em que, devido ao enorme índice de analfabetismo existente, a vida decorria, em muitos meios, na mais pura transmissão oral! Viegas Guerreiro recorda: «Eu lia, em rapaz, a camponeses da minha terra, romances de Júlio Dinis e de Camilo. E era vê-los participar na ação, falucando, perguntando, comentando.»[3] É que, e subscrevendo totalmente Irene Vallejo: «Afinal de contas o que é uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o paladar, os dentes ou os lábios.»2 E dessas sequências de palavras, desses «pedaços de ar», possuímos todos a aptidão de ser leitores. Trata-se de uma condição existente no humano, essa disponibilidade de recetor de histórias quer se concretize quer não através da leitura do escrito. Assim aconteceu com as histórias de Júlio Dinis e com o fortíssimo elo afetivo que criaram com os leitores.

   A provar este tão amplo alcance da receção dos romances de Júlio Dinis existem dados factuais, quantificados de que podemos recordar:

— No ano em que foram publicadas em volume, em Outubro de 1867, As Pupilas do Senhor Reitor esgotaram-se num mês!

— Em 1900, As Pupilas do senhor Reitor têm já catorze edições correspondentes a vinte e oito mil exemplares.

Os Fidalgos da Casa Mourisca, publicados já depois da morte do autor, tiveram oito edições correspondentes a treze mil exemplares até 1900.

— Nos inícios do século XX, Uma Família Inglesa ia na nona edição (dezasseis mil exemplares) e A Morgadinha dos Canaviais, na décima (doze mil exemplares).

   Outros dados existem, também factuais, mas medidos não em números, antes na expressão do reconhecimento afetivo e do prestígio do escritor:

— As conferências e discursos vários, pronunciados durante os muitos atos de homenagem prestados ao escritor, dão uma nítida e inegável imagem da receção havida por parte da sua obra. Respigando, entre muitas outras, duas significativas referências exemplificativas do tom e do sentido das palavras dirigidas à memória do escritor em tais circunstâncias: «insigne romancista»; «romancista querido de todos os portugueses», podemos avaliar bem o prestígio e mesmo o amor, advindos do prazer da sua leitura, que alcançou a obra deste escritor.

   E, no entanto, enquanto as suas histórias, fruto de aturado trabalho de elaboração literária, iam preenchendo, com cenas cheias de alegria, o imaginário dos portugueses, Júlio Dinis sofria melancolicamente os tormentos da sua tristíssima e tão curta vida.

     Eça de Queirós precipitou-se, arrastado pelo efeito de estilo, quando, afastando-se da realidade dinisiana, que talvez não conhecesse muito bem, disse de Júlio Dinis: «viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve». Júlio Dinis não viveu de leve; ninguém morre de leve; e a sua obra não se concretizou através da espontaneidade simples de uma escrita ingénua, mas foi fruto de pesquisa e de uma elaboração assente em convicções maduramente ponderadas. Provam-no, por exemplo, as páginas publicadas nos Inéditos e Esparsos com o título de Ideias que me ocorrem, escritas no Funchal em 1869. Nessas páginas, segundo Gaspar Simões, e justamente, «está nitidamente exposta uma verdadeira estética do romance realista». As opções literárias de Júlio Dinis são fruto de ponderação, de reflexão e análise da arte do romance e uma dessas suas claras opções é a de desenhar as suas personagens a partir de um agudo sentido de observação do real quotidiano, sobretudo de tipos rurais.

    Nessas páginas publicadas em Inéditos e Esparsos, Júlio Dinis escreveu: «Há uma lei do gosto literário em que eu acredito firmemente. O excecional, o extravagante, o desregrado não é o que desperta nos leitores ou nos espectadores o mais verdadeiro, o mais duradoiro interesse; pelo contrário, é o comum, o vulgar na justa aceção do termo. Quando encontramos em um livro pensamentos que já tivemos um dia, sentimos agradável surpresa, como ao darmos em um lugar, inesperadamente, com uma pessoa conhecida; quando no carácter, no coração de uma personagem literária, há alguma coisa que é nossa, quando nos reconhecemos em parte personificados numa criação, redobra o interesse com que o acompanhamos nas peripécias do drama.»[4]

    Foi em Ovar que Júlio Dinis colheu grande parte dos dados dessa observação do real a que tanta importância atribuía no seu processo de criação literária. E foi também sobre Ovar que o romancista escreveu, em carta a sua tia D. Rosa Zagalo Gomes Coelho: «os quatro meses que passei em Ovar foi o tempo mais feliz da minha vida». Sobre a relação do escritor com Ovar, diz-nos Antero de Figueiredo, no texto já citado e lembrando outras terras por onde Júlio Dinis peregrinou em busca de saúde (Felgueiras, Famalicão, Fânzeres, Funchal...): «A algumas dessas terras creou odio e em todas deixara o rasto amargoso do seu tédio; mas lembrando-se de Ovar sorria

   Ovar foi, pois, para Júlio Dinis, um sorriso, uma aberta solar na sua melancolia. Atrevo-me a pensar que esse sorrisonão advinha de motivações meramente pessoais; tinha um valor literário, associado à importância que a vida vivida em Ovar teve na consolidação das suas convicções estético-literárias e, daí, na fortíssima receção da sua obra. Assim, sorri o autor e sorrimos nós, os seus leitores.

    Ao fornecer-lhe matéria para a escrita de romances em que mergulhava com satisfação e, deste modo, contribuir decisivamente para a ampla onda de leitores que a sua obra desencadeou, Ovar tem, pois, responsabilidade no prazer que pode ter temperado a tristeza dinisiana. Foi em Ovar que Júlio Dinis começou a escrever As Pupilas do Senhor Reitor, romance que desencadeou o movimento da notável amplidão da receção da sua obra e da intensidade do gosto com que era lido. Virginia Woolf escreveu, no seu ensaio The Patron and the Crocus: «To Know whom to write for is to know how to write.»[5] e eu, estando de acordo com esta sua afirmação, atrevo-me a escrever que foi em Ovar que Júlio Dinis, ao conhecer os tipos humanos, reais e vivos, de que haveria de fazer personagens, conheceu simultaneamente quem, desdobrando-se por muitos, haveria de constituir a grande massa dos seus leitores. Aí, encontrou aqueles para quem estava a escrever e, seguindo Virgínia Woolf, implicou, nesse encontro, a consolidação da identidade quer temática quer estética da sua obra. 

 

    Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi um homem cuja vida decorreu sob o signo da melancolia, mas teve o talento de se imaginar como Júlio Dinis, escritor cuja obra foi criada e lida sob o signo da alegria.  

[1] In «JULIO DINIS em OVAR», Anthero de Figueiredo in Serões — revista mensal ilustrada, n.º 8 (Fev. 1906).

[2] In Irene Vallejo, O Infinito num Junco.

[3] Viegas Guerreiro in Para a História da Literatura Popular Portuguesa.

[4] In Inéditos e Esparsos com o título de Ideias que me ocorrem, escritas no Funchal em 1869.

[5] «Saber para quem escrever é saber como escrever.» (Tradução minha.)

 

 

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por Maria Almira Soares às 17:15


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