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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Num desses dias da sua infância, quando a criança lia em voz alta uma tradicional história de fadas, pronunciou a frase: — E a bruxa estourou como uma castanha! A criança, sabendo-aprendendo a reconhecer a leitura como surpresa-espanto, interrompeu-se e perguntou: — E queimou a princesa? Leu mais um pouco e soube-aprendeu que não; que, nessas histórias, a palavra princesa é, geralmente, um índice-garantia de sucesso.
Nesta cena de leitura, uma criança está a aprender a ler, naquele sentido de dominar o fluxo textual em proveito próprio. Talvez esteja a ler sozinha e talvez seja a primeira vez na sua vida de leitora que depara com o estourar de uma bruxa na presença de uma princesa. Talvez histórias de bruxas e princesas tenha já lido muitas, mas este é o momento de enfrentar a novidade, a estranheza. E fá-lo reflexivamente e com repercussão no progresso da leitura, movida pela curiosidade.
Assim se lê e, assim, lendo, a criança está a aprender a ler: cria e guarda um dispositivo de domínio da durabilidade sequencial do texto, que lhe assegurará atenção/proficiência/maior domínio/maior satisfação, em outras leituras que hão de vir, mais densas e complexas: articula o alarme da surpresa («estourou como uma castanha») com a procura, ou não, de pacificação (a princesa não se queimou?) e aprende a garantia de imunidade de certos elementos, em certo tipo de histórias (as princesas têm de se manter belas e vivas para serem felizes no final).
Em outras cenas de leitura, a criança estará já mais apta a moderar o impacto de uma passagem com a espera do seu desenlace mais à frente, sabedora que vai ficando de que ler não é uma soma de momentos, mas um tecido de harmonização de tons, espessuras, desenhos. A criança aprende a não esgotar a leitura em cada momento do livro; a moderar reações mais cabalmente apropriadas a outros momentos, futuros; a gerir intelectual e emocionalmente a leitura. Esta aprendizagem é fundamental para a sua capacidade de, à medida que cresce, ir sabendo ler histórias e linguagens cada vez mais complexas.
Para que assim seja, é necessário que essa aprendizagem seja garantida pela presença, na cena de leitura, de elementos fundamentais:
— a construção sábia da trama da história posta em livro;
— a disponibilidade/atenção/concentração do leitor.
Nem todas as histórias nem todos os livros permitem ao leitor esta atitude.
Livros, em que as palavras correm como um rio manso sem obstáculos, ou jazem como águas de um lago, deixam, talvez, a criança parada, dominada pela fruição da beleza como que de uma paisagem, mas não a preparam para os movimentos mentais-emocionais de futuro leitor de grandes e complexas histórias, em livros com os quais só temos duas hipóteses: ou os dominamos e é a exaltação; ou eles nos dominam e é o abatimento, o cansaço, a desistência.
Se nos limitarmos à idade da infância sem perspetiva de desenvolvimento, pode, até, esta disjunção não ser muito notável, dado o carácter genericamente simples dos livros infantis e as características ainda pouco estruturadas dos leitores. Mas, se olharmos a infância como raiz do futuro, teremos consciência de que a disjunção infantil entre desistência e exaltação poderá vir a desenvolver-se segundo uma linha de inversa proporcionalidade. Ou seja: se uma criança larga, antes de o acabar, o livro que lhe pede mais atenção/reflexão, não deixou, no entanto, mesmo se pela negativa, de ganhar experiência de ler, útil para uso futuro; se outra criança abarca a totalidade de um livro que só lhe pede a paragem do encantamento, não ganhou experiência para leituras futuras que lhe exigirão muito mais movimentação mental e emocional. Uma desistiu; a outra leu tudo. E, não obstante, a que desistiu tem mais futuro como leitora do que a que globalmente absorveu o livro como quem engole de uma vez uma saborosa gulodice.
Como se resolve este paradoxo?
Garantindo os tais elementos na cena de leitura: ambiente de disponibilidade/atenção/concentração e, sobretudo, livros mais complexos do que aqueles cuja história, no momento em que floresce logo se acaba como um balão efémero ou lucilante fogo de artifício. Cabe ao adulto leitor trabalhar na composição de cenas de leitura propiciatórias.
Como é evidente, a realidade material de grande parte dos livros para a infância que aqui considerei negativa tem causas. Tem causas e aproveitamentos que derivam da opção pela facilidade. São muito apetecíveis, senão irresistíveis, para o olhar, esses livros. E, se vivemos em tudo genericamente sob o privilégio concedido ao olhar, o livro não deixa também de ser afetado por essa predominância visual aproveitando-se dela como um atalho capaz de abreviar o seu caminho até às mãos de um possível leitor. Neste caso, consideramos o leitor que é uma criança. Não será sempre uma criança, mas de momento é-o. O que se espera, aliás, é que naturalmente o deixe de ser. Já leitor, não. Não se deseja que deixe de ser leitor, quando deixar de ser criança. Mas os amigos dos atalhos e da rapidez desacautelada, esquecem, na criança o caminho para o jovem e o adulto e apressam-se no afã de facilitar a adesão ao livro sem deixar raiz para estádios futuros. Partindo da vista de olhos que lançam aos universos de desejo das crianças, em voga, pressupõem — sem muita ponderação nem aprofundamento, sem pacientar ritmos de adesão que poderão ser mais lentos mas mais frutíferos — que a relação imediata e a facilitação é um valor. Ou, em palavras mais simples: se querem isto, damos-lhes isto, sem um momento de análise do que é o querer de uma criança e no esquecimento do que deve ser a responsável transcendência temporal e experiencial de um adulto. Pressupõe-se que o melhor para a criança é aquilo que, disparado à sua sensitividade sem o amparo da reflexão, a atrai, a fascina. Daí, o deixar-se no esquecimento a experimentação de outros caminhos. E acerca desses outros caminhos mais lentos e maturados, ouve-se, por vezes, dizer: «Coisas do passado.» Mas nem sempre as coisas se tornam passadas por metamorfose ou evolução; neste caso, o passadismo das coisas é impositivamente construído por uma espécie de ganância do novo.
Falemos, então, um pouco, de passado.
Se, há sessenta anos, me tivessem posto à frente um livrinho em feitio de boneca que, em todas as cores, fosse abrindo, página a página, as suas roupagens de princesa, eu desenfrearia na sua direção de olhar preso aos chapelinhos, aos toucados, aos sapatinhos de cristal, cega para as duas dúzias de palavras por ali semeadas. Por algum tempo o brilho fátuo do cor de rosa vivo dos folhos do aventalinho e o opalino das pérolas entrelaçadas no ouro dos cabelos, haveriam de me ofuscar. Quem sabe, até, se, deixada à minha sorte de criança, eu não esqueceria... Quem sabe se eu não esqueceria o encantado ritmo das palavras «Não vi velha nem velhinha nem velhão/ Corre, corre cabacinha, corre, corre cabação», ecoando no desenho expressivo a preto e branco de uma grande cabaça (dentro da qual eu ‘via’ a espertalhona de uma velha) a rebolar caminho afora, deixando para trás o focinho agudo do lobo, voraz mas estúpido. Quem sabe se eu não votaria ao esquecimento as histórias impressas nas correntes de palavras, naquele grosso livro artesanal em que o meu pai cosera, com um cordel, os vários livros fininhos das histórias que nos comprara...
E, então, o presente, o presente dos índices de adesão e rejeição infantil, teria sido ontem sem dialética temporal.
As escolhas de livros fáceis que, muitas vezes, são feitas para a leitura infantil, não são consequência da dialética histórica. Trata-se, sim, de dialética preferencial em prol da aceleração da aquisição, do forçar do contacto, da alimentação do movimento. Trata-se de concentrar, de amalgamar os elementos que garantem um mais rápido efeito de atração, mesmo que aconteça — e muitas vezes acontece — que esse efeito se esgote em si mesmo e não entesoure nenhuma descoberta. O que não é bom. Não é bom que seja tudo tão liso; não é bom que, nas cenas de leitura, não existam os degraus de uma escada-descoberta, em que, quando se tropeça, se cai num mundo imaginário por virtude das palavras. E se fique a gostar desses tropeços tão compensadores!
Espantosa, é, muitas vezes, a desproporção quase-ridícula entre o cúmulo de energia investida nos aspetos plásticos e visuais do livro e a anemia do texto encaixado na paisagem. Espantosa e prejudicial, porque faz a criança ter uma aprendizagem-memória inicial de que a leitura é aquilo; de que as palavras são o parente pobre na construção da história. Prejudicial, porque contribui para a desaprendizagem do que é a leitura. Prejudicial, porque se torna cúmplice da preguiça intelectual e não cava, na criança, o lugar fértil para as lavras mais complexas das cenas de leitura do jovem e do adulto, em que reinará, em absoluto, a palavra.
Encerra-se a génese do leitor na experiência de uma plétora plástica e visual, numa quase-ausência da palavra e, deste modo, corta-se, interrompe-se, em vez de impulsionar, a sua história de leitor. E os leitores, muitos leitores, são incapazes de saltar sobre esse abismo e ficam para sempre bifrontes a olhar atrás nostalgicamente os livros da infância e de olhos baços, à frente, para o zero, o nada-leitores em que se tornam.
E é, então, que encontro muitos jovens e jovens-adultos em estado de incapacidade de ler um romance longo.
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