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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Logo na abertura do romance — depois de dois curtos parágrafos iniciais em que, a propósito do apuramento da escrita, já ronda a vontade de destruir a ideia da linearidade qualitativamente progressiva do tempo — o olhar de lince de Agustina ocupa-se a retirar opacidade à imagem de «independência e gosto» de um estudante atual e a vê-lo como transparência, nada mais nada menos, do que do Werther de Goethe descobrindo Carlota «na sala de jantar, pelas quatro da tarde». Nesta perspetiva como que arqueológica mas paradoxalmente enfraquecedora do tempo, Agustina serve-se de marcadores temporais aparentemente irrisórios — objetos, vestuário, predileções várias, a geografia das casas — como modos de localização e de definição. Por exemplo, As Tartarugas Ninja servem-lhe como uma espécie de carbono 14 na ordem cultural para, numa pincelada, definir e datar a educação de António Clara, o Cravo Roxo. Ou, outro exemplo, neste caso de demarcação de uma origem geracional, através de um modismo procedimental: «a geração dos currículos». Ou ainda outro, o da clarificação de uma dada faixa temporal à luz da aquisição e do uso de um termo verbal neológico: «Foi no tempo de Joana que o stress entrou em Portugal.» Deste modo, Agustina faz deste romance um belo fresco da debandada de modos e de objetos culturais e sociais perdidos na voragem do tempo. Ora isto, este mergulho constante nas profundezas do tempo, esta como que caça submarina aos destroços do tempo, tem as suas consequências. O caos memorialístico, em que vão fervendo as várias histórias que se ligam na história axial, institui-se em método que regula, apesar de tudo, o avançar da narrativa. Agustina escolhe narrar solta de amarras normativas, mas não deixa, no entanto, de, num momento ou noutro, experimentar modos canónicos de contar, nem deixa de apreciar, com a ironia de quem se sabe diferente, um modelo narrativo que segue o preceito sem descarrilar: «Ele era um narrador de grande porte, sabia contar histórias, dar-lhes calor e entretenimento, prender o ouvinte, revelar o personagem, fazer progredir o enredo, obter um final inesperado e que adoçava de pequenos ingredientes da sensibilidade.» Agustina, pelo contrário, assume uma liberdade sem esquema, empenhada não na clareza narrativa, mas no afã de revelar a contiguidade dos elementos corresponsáveis pela produção da essência de um sentido. Não sacrifica à musa da técnica narrativa, mas às divindades que habitam o sentido radical dos lugares, das personagens e dos seus atos. Ou seja, quebra, interrompe, enreda a linha do tempo, sempre que lhe parece oportuno — ou antes, necessário — fechar relações, completar desenvolvimentos, especificar referências, contemplar lembranças, espessar asserções e proposições, apurar, aperfeiçoar, vincar linhas filosóficas. Agustina não busca a perfeição de tipo geométrico. É desmedida. Não lhe interessa o número no sentido original em que Camões ainda o usa.[1] Nem a numeração que estabeleça uma ordem cronológica. Não lhe interessa essa ordem. Agustina desordena genialmente. Sem vertigem. Com gozo. E sem nuvem sobre os momentos de singular limpidez. Uma clareza, por assim dizer, irregular. Agustina atinge a lucidez pelo descompasso, pelo desalinho, pelo desconcerto. Tem a perícia da manobra do tempo. Molda-o sem precauções de crítica nem excessivo respeito pelos modos de atenção de quem a há de ler. De cada coisa, não diz tudo de uma só vez. Vai acumulando traços e pinceladas de cuja sobreposição emerge o desenho. Nas múltiplas voltas da sua (des)ordenação narrativa, Agustina acaba por, certeira mas despreocupadamente, recuperar a essencialidade do objeto do conto. A este propósito, cita Montaigne: «Eu acrescento alguma coisa, não corrijo.»[2] Digamos que, nos seus grandes romances, Saramago ruraliza/oraliza a sintaxe discursiva, mas não a sintaxe narrativa que, nele, é muito racional, planeada, geométrica, quase-estrófica. Já Agustina, se alguma coisa de um certo modo oraliza, é precisamente a sintaxe narrativa tornando-a muito livre, turbulenta, lacunar, gustativa, caótica, sujeita a intempestivas lembranças e a insensíveis esquecimentos, independente de esquemas, casual. Já o discurso, nela, tem o poder da erudição. É, neste caso, um canto, uma elegia, um treno, não em intenção das vítimas de um crime, mas velando um mundo que fenece. Ao contar a história de Camila, Agustina conta-nos várias histórias. O crime noticiado foi o toque de alerta para a invenção de Camila e da sua história, mas também o pretexto que pôs Agustina a cavar na sua leira preferida: as gentes, as casas, as terras, as genealogias, as alianças, as origens e os desfechos das gentes do Douro, o «sentimento do Douro», num processo de pluralização que remete para uma alma coletiva.
[1] «Em versos divulgado numerosos», ou seja, ‘harmoniosos’, in Os Lusíadas, I, 9.
[2] Michel de Montaigne, nos Ensaios, Livro III, capítulo IX, «Da Vaidade», escreve: «Laisse lecteur courir encore ce coup d'essay, et ce troisiesme alongeail, du reste des pieces de ma peinture. J'adjouste, mais je ne corrige pas.» (‘Deixa correr, leitor, mais este lance de ensaio, este terceiro prolongamento do resto das partes da minha pintura. Eu acrescento, não corrijo’). E Agustina Bessa-Luís, na sua coluna «As Sete Chaves de Agustina Bessa-Luís», no jornal O Independente, escreve: «Eu acrescento alguma coisa, não corrijo, como diria o mestre Montaigne».
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