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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Todo o escritor recria literariamente um território privilegiado, interior e exterior. O território literário exterior de Carlos de Oliveira é a Gândara, recriação da geografia biográfica em que não nasceu, mas onde a sua tenra vida de dois anos foi plantada, até que, pelos meados do século XX, se transplantou para Lisboa, para os cafés, para as tertúlias com os seus confrades, para a vida literária. Mas a Gândara permaneceu. Permaneceu percecionada, também, como território interior.
A Gândara, entre o Vouga e o Mondego, zona de Mira, feita de dunas e pinhal, de areias, de lama, de barrocais e de chuva, cinzenta, insalubre, pantanosa, infértil, é, em Uma Abelha na Chuva, «Paisagem e Povoamento» (subtítulo de Finisterra, último romance publicado durante a vida do autor). A Gândara, topónimo que transporta a semântica da infertilidade, é, em Uma Abelha na Chuva, o território-retrato do país, num dado Espaço/Tempo: a pobreza, a miséria, o desconforto, a falta de horizontes, a divisão social, a opressão, o conservadorismo, a falta de soluções, a infelicidade, o convencionalismo, a hipocrisia, o mundo parado, a morte, a ausência de cores, de vitalidade, o medo, a ignorância, a cupidez, a doença mental, a obsessão, o fechamento, o provincianismo, a proximidade doentia entre os seres. A Gândara é, em Uma Abelha na Chuva, um enxame de seres cegamente agarrados uns aos outros, uma colmeia de seres boicotados pela vida e recolhidos nos seus inconfessáveis e doridos mundos interiores, habituados, conformados, ancorados no medo do inferno, presos numa prega parada da História. Terra que, como um ser, como uma testemunha-cúmplice, projeta e absorve uma luz crepuscular, melancólica, outonal, apodrecida, mortal.
Uma Abelha na Chuva é um romance escrito por um poeta. Carlos de Oliveira é poeta até quando escreve romances. Não se trata de lirismo, mas de oficina. Carlos De Oliveira trabalha os seus romances como se de oficina poética se tratasse, ele, para quem, a poesia é trabalho oficinal que não cessa de apurar. Desde o título às palavras finais, a significação metafórica prevalece, sobrepondo-se à explicação descritiva. Os estados psicológicos são-nos dados através da plasticidade das metáforas e não discursivamente. Dizer por metáforas, por imagens, abre e encerra este romance em que uma história, assim significada, se expõe à decifração pela leitura. E isto é próprio da linguagem poética. Isto e os trâmites da construção narrativa, depurada em planos densos, concentrados, recortados como estrofes, harmonizados como ecos, retornos, alternâncias, contrastes, progressões, contraposições — trâmites usuais da construção poética. A história escreve-se, equilibra-se, numa sucessão de planos que não carecem de explícitos elementos de ligação. Trata-se de uma sequencialidade formalmente paratática e semanticamente depurada, trabalhada à maneira de um poema. Uma primeira estrofe, perdão, um primeiro começo: o homem. Uma segunda estrofe, perdão, um segundo começo: a mulher. Depois, o encontro. A paisagem. O povoamento. Está lavrada a primeira leira, estão lançadas as sementes. Chove e, de tais sementes, o fruto, ou seja, a história de uma relação homem/mulher, ameaça ser maligno. Cresce e a ameaça concretiza-se em crime e em suicídio. Todavia, quase nada se altera nem na paisagem nem no povoamento, amortecidos como uma abelha apanhada pela chuva.
A história vai-se revelando pela ação e pelo pensamento/memória: dois percursos a decorrerem, a cruzarem-se, a desfasarem-se, a coincidirem, para nos irem deixando perceber o que ali está em causa. Começamos a saber nomes, condições sociais, indícios emocionais. A névoa e a noite dos quadros iniciais abrem-se para a revelação de desejos e estados emocionais decisivos, de contrastes, de conflitos.
As sequências narrativas são magistralmente compostas: Álvaro Silvestre a pé, pela lama, até Corgos; a jornada de charrete na grande chuvada noturna; a violenta discussão doméstica na arena de uma cultura conjugal minada pelo despeito, pela cobardia, pela humilhação; a histriónica e triste bebedeira de Álvaro Silvestre; o velho cego, o rapaz servente e o burro, sob o céu relampejante da tempestade; o grotesco, o primitivismo da cena de um assassínio à cacetada, grosseiro, sem nenhuma sofisticação, sem nenhuma inteligência.
E um narrador ousado, original e pleno de mobilidade, única voz livre numa teia de submissões.
Na vida humana representada em Uma Abelha na Chuva, misturam-se o machismo em estado puro, a aproximação à bestialidade, a condenação sem ressalva, a frustração, a humilhação. A vida é morte, porque não sabe e não pode transformar-se, abrir-se, desenclaustrar-se, libertar-se. A vida é arena de luta de emoções primárias, arquetípicas: o orgulho, a vingança, o medo, a cólera, o desespero, o remorso. O seu palco, físico/psíquico/moral, são inesquecíveis personagens, magistralmente compostas.
Álvaro Silvestre: a feiura, a disformidade, a grotesca bebedeira, o atordoamento, o desleixo, a decadência, o medo, a parte fraca de uma cultura conjugal feita de submissão e poder.
Maria das Mercês Pessoa de Alva Sancho (Silvestre): a fidalga, a «joia de família» investida no negócio-casamento de «sangue por dinheiro», o fogo enérgico e álgido, instigador, dominador, o trágico grito-ferroada, abafado pela chuva do hábito e da vergonha social, o nojo e a rejeição soterrados pela conveniência.
Leopoldino: o fantasma e o sonho, o contraponto longínquo, ameaçador, a sombra, a ausência presente.
Na trama deste romance sobre a culpa e o medo, a vertente psicológica transcende a visão material e todos os fios estão tão densamente ligados que, perante o desfecho, é lícito perguntarmos:
Quem é a vítima?
— Jacinto, o que é assassinado?
— Marcelo, o boçal e ingénuo de que fizeram um assassino?
— O velho oleiro a quem roubaram um sonho?
— Maria das Mercês humilhantemente negociada e afetivamente sonegada?
— Silvestre, o aleijão gerado socialmente, o palerma, jogado por forças culturais e sociais poderosas?
Quem é o criminoso?
— O servente Marcelo, o autor material, o que desfere a cacetada?
— O velho mestre António que é o mandante e o prometido pagante, o manipulador?
— Álvaro Silvestre, o autor moral, que cobardemente fornece a motivação e instiga, transferindo o seu móbil para outro?
— Maria das Mercês que é um polo gerador de apetites, de humilhações, de frustrações, de desequilíbrios, de desejos e emoções violentos?
— Nesta teia, só uma personagem escapa ao jogo de culpas/inocências: CLARA?
— Ou não: ela que, através do amor, desafia o que é conveniente, o que está estabelecido?
Se olharmos este romance como representação social, poderemos ainda perguntar:
— Neste quadro de forças e submissões, o que faz o Povo?
O Povo é um zero à esquerda facilmente varrido de cena e confinado a um papel de inútil palrador, que troça, que atira pedradas, mas que rapidamente baixa a cabeça e segue um destino sobre o qual nenhum poder de escolha lhe cabe.
E tudo acaba em nada, nenhuma justiça, nenhuma verdade, são repostas. Aquelas mortes, aquelas vidas, aquelas gentes, não valem nada. A abelha, o ser quente, solar, detentor do mel, é apagada pela chuva perene sobre a qual não há esperança de que cesse. O dr. Neto, consciência distanciada da teia mortífera, o cultor das abelhas, o sonhador do sol, o pintor do mundo em cores diversas, assiste. Assiste à abelha dizimada pela chuva cinzenta. Ao apagamento da luz clara de Clara. Desânimo? Impotência?
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