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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O lugar, a ação, as figuras.
O lugar não é geográfico é representativo. Não é um mapa, é um desenho. «O círculo perfeito». Simbólico. Irónico. Perfeito se conjugado no condicional. Caso hipotético irreal. Sob a pesada realidade da História. Esmagadora. Como a pata de um monstro bestial. A desenhada perfeição do círculo. Minada. Dilacerada. Perfeita mas podre. Irrefutavelmente dividida. A meio. Desde Tito-Lívio, ressalvado em desde sempre, a herança do limite traçado por Rómulo, o limes. Fratricida. O imposto sulco sagrado, intransponível e indiscutível sob pena de morte. Entre o domínio e a submissão. A comunidade e a diferença. A vida e a morte. Historicamente perdendo a violência da material intransponibilidade, trocada pela incomensurável violência de um abismo entre humano e humano. A violação da condição humana. Licença para matar.
A ação não é historicizante, é exemplar. Não é exaustiva, é seletiva. Não recobre todo o cenário com todas as figuras prováveis ou provadas. Não é um fresco, é uma composição. Não mapeia o quotidiano formigante. Foca, releva, pontos nucleares que articulam a teia de necessidades, de desejos, de estranhezas, de taxias e ataraxias, de rasgos, de ousadias, de esperanças, de medos, de brutalidades, de dores, de júbilos, de êxtases, de atos dificilmente concetualizáveis, dificilmente nomeáveis. Não se trata de crónica. Talvez de uma anti-ode. Talvez de anti-epopeia.
Trata-se de riscar, no espaço-tempo, o traçado do rasto de alguns corpos em deslocação. Trata-se de tornar visíveis, literariamente ‘reais’, algumas figuras. Figuras do amor, da amizade, da impotência, do horror, do limite da dor, do grotesco, da boçalidade, da crueldade. Trata-se de desenhar um arco de céu assolado pelo caos, em que seres se entrechocam violentamente, se esquivam perigosamente, se procuram amorosamente, se protegem e se expõem, explodem, se estilhaçam. Joguetes e sementes de enlouquecidas ondas de maldade, de desumanidade, horror sofrido e perpetrado. E esses seres, esses sim, têm nome e ânimo, alento, propósito, carácter. Eryc, Yankel, Shionka, Dreide, Slomo Pasternak, Salomão, Krysia, Rasia, Skiba, Kazimierz, Tadeusz, Avigdor, Tauba, Perla, Kasia, Govorov. Yankel, a criança cega, insulada pela escuridão, desloca-se no caos e, num jogo de cabra-cega afortunado, toca e é tocado pelo amor-Shionka e pela amizade Eryc, ou vice-versa. Yankel, Shionka, Eryc, os três que, no universo do romance, têm direito a um outro tempo, a um outro lugar, a outra nomeação — o livreiro cego, Paul Lestrange, Vivienne — têm direito à distância, à redenção da escrita, a um espaço de reconhecimento, a um patamar de memória e reconstrução.
A construção.
Está construído o romance em movimentos de vaivém, em cruzamentos de perspetivas, na convergência de reencontros, na dupla tragédia do ontem e do hoje. Muito ao fundo do túnel da memória, a inocência impotente das crianças, do riso, das «canções em línguas nunca ouvidas», das histórias de «fábulas fulgurantes», do professor-escola-liberdade, imolados na laje escorregadia do tempo.
Está construído e revelado na intromissão do teatro da escrita, na exposição do «gajo que me escreve os livros», na identificação do escritor «que, se não se surpreende com o que escreve, não é escritor». Mas também no desdobramento, em três pessoas distintas, do divino mistério da escrita: Yankel/o livreiro cego, Eryk/Paul Lestrange, Shionka/Vivienne.
A leitura.
Neste romance de João Pinto Coelho, lemos o que a literatura pode fazer da História e da inominável desumanidade do caso da cidade de Jedwabne.
Lemos o que três crianças-adolescentes podem fazer, à solta no terreno da mais violenta loucura de poderosos movimentos mortíferos.
Lemos o que pode a escrita literária representar de si mesma no momento de se fazer.
Lemos e já não somos capazes de — nem queremos — desencaixar as correrias felizes na floresta, as portas de violência que se trancam sobre o medo e o sofrimento, as correntes do amor, o embate de memórias e a transparência/opacidade da escrita. O que nos alimenta é uma terra total onde crescem todos esses veios.
Lemos e, provavelmente, exclamamos: — Como pode o populismo mais extremo impulsionado pelas emoções mais básicas sem sombra de sublimação fervilhar dentro da geometria de um círculo perfeito!
Lemos e compreendemos que o grande tema deste livro é o ódio, a guerra, a pilhagem, a deportação, a perseguição, o genocídio, a crueldade coletiva, a morte, a indignidade e é o Amor, a Liberdade, a Criança, a Vida, a Dignidade. Memória-despojo de um tempo sinistro. Despojos abomináveis e despojos jubilosos.
Lemos e, num olhar de proximidade sobre a escrita, sobre a sintaxe como matriz de uma condução verbal: retemos que só no fim das frases se descobre ao que vêm e como isso intenta uma leitura divinatória devidamente premiada; retemos que é seguindo o desenho da frase, ainda um pouco às cegas, às apalpadelas, que vamos parar ao sentido.
Lemos e sentimos, talvez na pele, uma ironia zangada, grossa, oleosa, enlameada, pegada à narração da repugnância do grotesco.
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