Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
«Madrugada ainda escura, tomávamos, eu e o sr. Esteves, o comboio do Vale do Vouga...» E lá ia um rapazinho tímido e concentrado que, pouco havia, tinha batido chancas nos caminhos até à escola onde concluiu a instrução primária. Vinha do minúsculo povoado de Salgueiros, no vale do Caima, freguesia de Ossela, Oliveira de Azeméis. Era pobre. Tinha lido os textos escolares e folhetos em verso em que se contavam dramas absurdos, vendidos pelas feiras. E um livro: Do Algarve ao Minho em Automóvel de Eduardo Noronha, prémio recebido pelo exame feito. Ia a caminho do porto de Leixões, onde o velho vapor Jerôme o levaria a Belém do Pará, a caminho do seringal Paraíso no rio Madeira, Amazónia. Ainda não tinha treze anos. Chamava-se José Maria Ferreira de Castro.
Eis a raiz mais profunda de um extraordinário romancista e de um extraordinário romance: A Selva.
Ferreira de Castro nunca escreveu um verso. A sua prosa é, a um tempo, poderosa e flexível. Sólida, sem fissura, consistente, apropria-se da mais funda humanidade e da terra mais insubmissa e vai-a modelando. Forja de uma obra literária que se impôs, rompeu fronteiras, chegando A Selva a ser anunciada pela UNESCO como um dos livros mais traduzido e mais lido em todo o mundo. A Selva, látego sobre «los empresários de la miséria», no dizer de um jornal espanhol da época. Convocando outras artes e outros artistas. Objeto de belíssimas edições ilustradas. Por Cândido Portinari, o pintor dos retirantes das grandes secas do Ceará a caminho do inferno da floresta amazónica. Pelo traço modernista de Júlio Pomar. Tinha trinta anos quando a escreveu. Tinha doze anos quando a viveu.
A Selva de Ferreira de Castro não é apenas o espanto do indecifrável vegetal; é a difícil humanidade virgem do assalto de emoções e comportamentos brotando a cada embate em experiências insuspeitadas. A frágil natureza humana, «o bicho da terra vil e tão pequeno» posto à prova em meio de uma desumanidade sem limites.
É um ‘objeto’ literário que convoca outros ‘objetos’ literários numa cadeia de fraternidade entre obras que vão ao fundo do sofrimento e da redenção: Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto (Auto de Natal pernambucano); As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano — eis dois exemplos de textos em que a escrita mergulha na inominável injustiça do humano sangue desprezado, explorado.
A Selva, romance de mil e uma camadas de sentido:
— O paradoxo da natureza.
Sobrevivemos à sua indiferença e inclemência, modificando-a; mas, modificando-a, criamos novas ameaças. Uma espiral viciosa?
— A múltipla mundividência.
Uma orquídea comprada numa florista no Chiado, em Lisboa, não é uma orquídea colhida na selva enquanto a canoa desliza sobre a água escura de um igarapé.
O abismo entre a livre natureza e a sofisticação civilizacional. Já não existe? A ‘globalização’ tudo terraplenou ou está em vias de terraplenar? A que preço?
— A densidade dificilmente inextricável dos comportamentos humanos.
A brutalidade, a ganância, a violência, a ferocidade, a crueldade, o medo, a fragilidade, a submissão, a compaixão, a fraternidade.
— O recontro entre o ser selvagem e o ser civilizado.
Retrocesso civilizacional?
Relação cultural índio/colono?
Questão da posse da terra?
Questão racial?
Exploração de expatriados desprovidos de meios de sobrevivência?
Uma gama de sentidos para os quais a suma arte de narrar do autor vai evidenciando caminhos que aliciam o leitor em constante superação de uma curiosidade por outra curiosidade, de uma expectativa por outra expectativa, como quem sobe as cachoeiras do rio Madeira, como quem, por interposta literatura, sofre o cruel batismo da selva.
Ferreira de Castro não desenvolve o seu romance nos limites da projeção de uma experiência pessoal. Rejeita a tentação de fazer do romance uma mera e tremenda peça de exotismo natural e cultural (em que o romance não deixa, porém, de ser exímio); mergulha mais fundo no complexo humano que se redime pela inexorável vocação da LIBERDADE que o fogo simbolicamente representa.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.