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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quarta-feira, 15.11.23

BARRANCO DE CEGOS

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Barranco de Cegos, «Entre a fábula e a realidade...»[1]

      O romance de Redol é um grande romance e, tal como todos os grandes romances universais, constitui-se em várias dimensões. A dimensão da História, a dimensão do fantástico e do simbólico, a dimensão psicológica, a dimensão das ideias, a dimensão dos humanos sentimentos e emoções, a dimensão romanesca tout court.

     Na dimensão romanesca, a linha da intriga sentimental glosa emblemáticos amores de perdição e é próxima, talvez, de um caso real passado com Carlos Relvas, um latifundiário da Golegã, que, em razão do caso de amor entre a sua filha e um criado agrícola, obteve a atribuição de loucura à filha e fez com que o criado fosse capado e emparedado. Carlos Relvas, esse que foi nem mais nem menos do que o pai do homem que proclamou a República da varanda da Câmara Municipal de Lisboa a 5 de Outubro de 1910, ou seja, José Relvas.

    Na dimensão dos humanos sentimentos e emoções, o romance é feito de personagens, a um tempo representativas e singulares, que se nos impõem pela sua complexidade e no seio das quais se erige essa de Diogo Relvas feita de humanidade e desumanidade. Onde reside a humanidade de Diogo Relvas? Onde sempre reside o que de humanidade possa restar a quem é capaz dos comportamentos mais desumanos: no sofrimento, nas lágrimas. Diogo Relvas chora, impotente contra a massa humana de que, apesar de tudo, é feito. Mas onde reside a desumanidade desse seu ato profundamente humano, o choro? Na ocultação, a todo o custo, da sua fraqueza sentimental. Aos seus olhos, isso representa o grande desastre de ser um fraco. Diogo Relvas ostenta os emblemas da sua indestrutibilidade, do seu poder instilador do medo:

«Ou n-não?», o corte intimidatório de qualquer hipótese de réplica, oratoriamente mais forte do que a pura afirmação formal, o discurso autoritário.

— a Torre dos Quatro Ventos, símbolo da inviolabilidade, do isolacionismo, do secretismo, da mitificação.

— as barbas, a figuração decalcada de atávicas imagens impregnadas no imaginário popular como figuras de poder mágico.

    Diogo Relvas encarna e defende a moral da posse de que nunca abrirá mão: a posse da terra, a posse da razão de sangue, a posse do castigo, a posse da vida, a posse da morte, a posse da dor, a posse da vingança, a posse da dignidade, a posse de deus. Em nome desta moral, rouba a terra, os laços familiares, a justiça, a vida, o sofrimento, a ideia de deus, em proveito de uma ideia de si. Mas, se duas palavras genuínas e livres derrubam o que, até aí, nada derrubara, onde reside, então, a força e a segurança de Diogo Relvas? Na assunção de uma espécie de transcendência de si próprio irradiada da atávica veneração dos despossuídos da terra e do poder. As palavras do caiador derrubam essa transcendência e reduzem Diogo Relvas à igualdade na fileira dos humanos.   

      Na dimensão das ideias, o romance desenterra as camadas de opressão, de violência, de cobardia, que são o estrume do orgulhoso diverbo «Lavoira Ribatejana». Denuncia a discricionariedade interesseira, o cinismo, o filisteísmo. Denuncia a ruralista prédica salazarenta e a sua interesseira base de apoio. A voz narrativa veicula sarcástica e exprobratoriamente as raízes da violência autoritária e exibe o poder destrutivo do ridículo e da gargalhada. Expõe o medo atávico criador de mitos, correlativo da fuga cobarde à confrontação leal. Este romance representa, levado até às últimas consequências, um Portugal marialva que existiu, teve força, foi utopia e mito, e talvez alma, sabedoriaindiscutida, impositiva, incontestável, primarismo sanguinário, expoente de um chamado ‘portuguesismo’. Este romance dá-nos a ver uma forma de habituação persistente no engano, criadora de lendas, de mitos, de fantasmas, substitutos da verdade: a eternização de Diogo Relvas na Torre dos Quatro Ventos. Põe-nos perante o efeito deletério da destruição das coordenadas históricas, gerador da submissão, da eternização  da tirania. Diz-nos que, ao apagamento ou manipulação da História, responde a indiferença do Tempo, metaforizado e concretizado no caruncho que «roía, roía, impiedoso e malandrete» como único, e pobre, recurso de mudança, última reserva de esperança. Este romance dialoga com reencarnações futuras das histórias que nos conta. Na sua viagem ao passado, este romance de Redol é, no seu tempo presente, a denúncia certeira da ideologia salazarista, aquela, para a qual, «só a pobreza acomodada abre as portas do Paraíso». A projeção da linha de separação morte/vida de Diogo Relvas para o domínio do fantástico e correlativa incredulidade/crença por parte do povo é a garantia de uma permanência, de um sarro persistente que há de reencarnar em figuras futuras. É sinal de uma suicidária identificação entre a verdade e a mentira. Mas é também aviso, denúncia.

      Na dimensão psicológica deste romance, o caso Relvas ganha contornos do foro psiquicopatológico, quando a embriaguez do excesso de poder toma a totalidade do homem e gera reações psicóticas. Este é, também, um romance sobre a psicopatia do excesso de poder.

     Na dimensão do fantástico e do simbólico, a incursão no fantástico-burlesco do desenlace do romance desacredita e desconstrói Diogo Relvas, o espantalho da mentira erigido sobre o ódio e sobre o medo, ao mergulhá-lo numa ironia feroz, desrespeitosa, até, da sua morte.

     Na dimensão histórica, o romance representa a conjuntura dos fins do século XIX/inícios do século XX, particularmente o conflito entre a especulação financeira ligada aos caminhos de ferro e a lavoura; o conflito entre a ideia fontista de progresso e o securitário conservadorismo rural; as consequências, em desastre financeiro, da chamada salamancada; a reação agrária ao surto de desenvolvimento industrial representado, nomeadamente, pela compra e aluguer de terrenos em Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira, no princípio da década de 1890, para produção de cimento em Portugal e a construção da respetiva fábrica dada como concluída em 1894. As histórias narradas enraízam-se num dado contexto histórico, mas a fibra com que se tecem, a natureza humana de quem as vive é atemporal.

 

     O romance de Redol é um grande romance e, por ser essa grande obra literária, gera um múltiplo diálogo com outras obras literárias.

   Dialoga com Os Maias: a sua figura axial, Diogo Relvas, é o antónimo perfeito de Afonso da Maia: nas ideias, no comportamento cívico e familiar e, sobretudo, na representação literária da morte, trágica no Maia, burlesca no Relvas.

   Dialoga com a Mensagem: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro», o último poema do livro de Pessoa; «uma espécie de nevoeiro começou a cerrar-se à volta dos limites de Aldebarã», no último parágrafo do livro de Redol — o nevoeirocomo símbolo da de-substanciação, da perda de sentido.

    Dialoga com O Delfim de José Cardoso Pires: o tempo da teimosa persistência num estado de coisas atavicamente inimigo do progresso contra todos os inevitáveis efeitos da profunda crise do início do século XX representado no romance de Redol é o germe do tempo salazarista no romance de Cardoso Pires; a premonitória relação quiasmática de um poder-fantoche que todos julgam vivo e só ele, na continuidade no neto, se sabe morto (Diogo Relvas) com um poder-fantoche que todos sabem já morto e só ele se julga vivo (Salazar).

    Dialoga com O Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago através da identidade semântica da simbologia destrutiva utilizada por ambos (a cegueira) — pese embora a diferença de escala — cuja aproximação máxima se dá através da cor branca: «... naquela poeira fina e branca. Tão branca e tão fina que uma espécie de nevoeiro começou a cerrar-se à volta dos limites de Aldebarã envolvendo-a com o manto espesso de uma noite estranha e alva» (Barranco de Cegos); «O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro [...] Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco [...] parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira, provisoriamente designado por mal branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio» (Ensaio sobre a Cegueira).

    Dialoga com o «Poema das Almas Jovens Censuradas» de Natália Correia induzindo-nos a tomar o romance de Redol como um outro modo, narrativo, de dizer o roubo da verdade que o poema de Natália também diz em estrofes como esta: «Penteiam-nos os crânios ermos/Com as cabeleiras dos avós/Para jamais nos parecermos/Connosco quando estamos sós.»

 

    Barranco de Cegos é, em certa medida, um romance formalmente tradicional, mas há, na sua textualidade, um tom de meditação, de narrativa edificadora a partir de factos e de frutos de uma crença. Assim, logo ao abrir, por uma nomeação depois tripartidamente sequencializada — O LIVRO DAS HORAS PLENAS; O LIVRO DAS HORAS AMARGAS; O LIVRO DAS HORAS ABSURDAS —  ficamos cientes da natureza do que vamos ler, da morada do que verdadeiramente interessa: o carácter sagrado do humano, da vida dos homens e das mulheres. Se é livro de horas, a sua leitura será reza? A quê? Ao poder redentor da Literatura?

 

 

 

[1]Alves Redol na irónica «Breve Nota de Culpa» que antecede o romance.

 

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por Maria Almira Soares às 16:03


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