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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O fulcro, o eixo, do significado da história contada em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde é um homem. Um homem romano do século II d. C., colocado numa dada situação: Lucio Valerio Quincio (simplificação de Quinctius).
Comecemos pelo nome, ou antes, pelos três nomes, os tria nomina da onomástica romana: o praenomen (Lucio), o nomen (Valerio), o cognomen (Quinctius). De facto, na instância do leitor, de alguns leitores, esta composição onomástica — que na ordem do texto não ocupa um lugar inicial — tem sua função no fabrico da personagem. Quinctius que, aqui, ocupa o lugar de cognomen, ou seja, uma alcunha herdada que fazia a distinção entre famílias da mesma gens, foi, no tempo da república romana, nem mais nem menos do que o nome gentílico de Lucius Quinctius Cincinnatus, figura histórica exemplar, marca de respeitabilidade e de bom exercício e desapego do poder. Com ela, a personagem do duúnviro reparte ainda o praenomen Lucio; acrescente-se que, entre estas duas denominações, ecos de um romano ilustre, se intromete o nomen Valerio, ou seja da gens Valeria, etimologicamente situada na linha semântica da ‘valia’, da ‘força’, da ‘valentia’.
As palavras não são, nunca são, inocentes e, contrariamente ao que diz o «What’s in a name?» shakespeariano, entre o nome e a coisa, neste caso entre o nome e o homem, a relação, biunívoca, não é despicienda. Assim, temos, num universo ficcional, uma personagem que carrega no seu nome toda uma herança histórica de respeitabilidade, de honradez, de valentia, de desapego do poder.
Contemporâneo de Marco Aurélio, o imperador-filósofo e, depois, de Cómodo, o imperador-gladiador, este homem, seguidor da moderação do pensamento estoico, afim do ceticismo religioso, crítico das modalidades sanguinárias que revestia a romanitas neste período do Império, feliz no tempo demorado e solitário da fruição cultural e doméstica, possuidor de um forte sentido cívico do dever, vê-se compelido a assumir o poder isoladamente numa situação de crise.
O isolamento de Lucio Valerio Quincio no lugar do poder, em Tarcisis — cidade romana ficcional, localizada na província da Lusitânia, não longe de Liberalitas Iulia (Ebora — Évora), é consequência da desresponsabilização dos seus pares, do desinteresse generalizado pelo bem público, do exacerbar de paixões e emoções anuladoras da consciência cívica por parte da população da cidade, do populismo, quiçá do medo.
Assim, o duúnviro, então reduzido à situação de uniúnviro (se tal palavra existisse), é o homem no centro da perturbação — íntima e exterior — que é preciso gerir e pacificar: esta, a matéria de que se alimenta a narrativa; deste homem, o olhar, o sentir e o pensar que a conformam.
Tarcisis vive uma situação de crise. Urbanisticamente, as ruas, as edificações, a muralha, destratadas por um poder alheado da realidade e distraído dos seus deveres, encontram-se degradadas e ameaçam o conforto e a segurança da população. Culturalmente, a ausência de alimento intelectual, figurada na biblioteca vazia de livros, no teatro inacabado e abandonado, na taberna cheia de gente exaltada, é terreno fértil para o florescimento de paixões primárias. Politicamente, os interesses pessoais sobrepõem-se ao sentido de estado e deixam a coisa pública à mercê da corrupção e do populismo. Historicamente, cruzam-se movimentos destruidores da pureza da romanitas: lavra e difunde-se a nova seita religiosa, o cristianismo incipiente, assente em princípios antagónicos dos valores romanos, que vai corroendo os alicerces ideológicos e morais do Império; o Império apresenta sintomas de decadência; os bárbaros, vindos do «lado errado do Mare Nostrum», almejam a ocupação do território romanizado.
Esta situação complexa, exigente de decisões difíceis, embate vigorosamente no homem no poder: Lucio Valerio Quincius.
Ele e a sua moderação estoica; ele e o seu relativismo religioso — e mesmo descrença — frente ao panteão romano; ele e o seu ceticismo — e mesmo desgosto — perante instituições como os jogos circenses e outras práticas e costumes afins; ele e a sua distanciação da populaça ávida de benesses e distrações; vê-se no lugar de quem, frente a investidas internas e externas, tem de assegurar a coesão da cidade, fundada nas suas crenças, nas suas instituições, nos seus costumes. Assim, paralelamente ao desenvolvimento de pragmáticas soluções para os problemas concretos, cresce, no íntimo do duúnviro, o confronto entre as convicções do homem e as exigências da sua circunstância, desencadeando, sobretudo, uma reação de estranheza e de busca de compreensão dos acontecimentos. Ele é o detentor de um discurso — político-filosófico mas também amoroso — de estranhamento e incompreensão de factos ameaçadores e invasivos. Ele é o sujeito da representação da experiência da alteridade.
Porque quererá uma mulher pertencente à primeira plana da sociedade romana fraternizar com escravos e criminosos? Porque quererá tal mulher recusar a liberdade em prol da promiscuidade com os prisioneiros nos ergástulos? Porque haverá um deus tal que, passeando pelo seu jardim, se contenta com o conforto da brisa da tarde? Porque se demitem os decênviros, o edil, o senador, os poderes enfim, das obrigações próprias do seu estatuto e se entregam à desresponsabilização e à mera fruição dos gozos da vida? Porque vem, das suas longínquas terras, gente mal armada, mal fornecida, perturbar a paz de Tarcisis? Porque, tendo cumprido os seus deveres embora, é ele próprio objeto de traição? Porque o perturba emocionalmente Iúnia, a ele que vive na tranquila, feliz e indestrutível afeição de Mara?
Subjetivamente, Lúcio interroga-se enquanto, objetivamente, faz o que tem a fazer: reconstrói a muralha, arma a cidade, exerce a justiça. Tarcisis salva-se. E Tarcisis perde-se. Perde-se no populismo e no retrocesso cultural e civilizacional. A ele, resta-lhe aceitar o veredicto do exílio na sua villa, a tranquilidade do otium em que, seguindo o mos maiorum, escreverá, pela pena de Mário de Carvalho, a narrativa memorial dos acontecimentos, para nosso prazer e proveito, leitores que somos de um extraordinário romance publicado em 1994.
Em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, História e Literatura confluem numa ficção histórica pós-moderna que transcende a representação rigorosa do passado. Ela promove a revisão e atualização desse passado ao equacionar dicotomias significativas, hoje como ontem: o paganismo greco-romano vs. o cristianismo; a tragicidade vs. o estoicismo; o indivíduo vs. a coletividade; o homem vs. a ordem; a lei vs. a natureza; a civilização vs. a barbárie. Ela expõe uma série de padrões políticos, religiosos, filosóficos e sociais ainda hoje no centro do debate de ideias.
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