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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Terça-feira, 20.02.24

MAU TEMPO NO CANAL

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     Em Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio, através de um labor de genial ficcionalização, faz-nos ver e sentir a realidade social e geográfica de quatro ilhas açorianas, Faial, Pico, S. Jorge e Terceira, tomando a cidade da Horta e o complexo humano em que se insere a vida de Margarida Dulmo, como núcleo irradiador.

     O panorama desenrola-se, largo e denso, durante o período da primeira Guerra Mundial, que corresponde, nas ilhas, a uma época de desequilíbrios económico-sociais entre uma aristocracia decadente (representada pelos Dulmos) e uma burguesia em ascensão (representada por Januário Garcia).

    A Horta aparece-nos como um pequeno burgo fechado sobre si, apertado nas malhas do poder de um pequeno número de famílias, mas  permeado por algum leve cosmopolitismo advindo do seu porto, importante para reabastecimento e reparações dos navios que cruzavam o Atlântico e da estação da rede de cabos submarinos que asseguravam as comunicações entre a Europa e a América.

     É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida a Margarida Dulmo que pensa, age e sente no seio de uma família com nobres pergaminhos desde o povoamento, caída numa situação económica ruinosa — os Dulmos.

    É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida a João Garcia, que pensa, age e sente no seio de uma família de gente à procura de enriquecimento e de poder, dominada pelo sentido de perseguição e vingança sobre os Dulmos — a família de Januário Garcia.

    É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida (e morte) a Roberto Clark, o tio ainda jovem de Margarida, provável deus ex-machina que a libertará da clausura insular, mas a que a peste, outra das amarras e esta fatal, cortará os sonhos, os seus e os dela, e que pensa, age e sente com uma mentalidade já facetada pela cultura britânica, no seio do ramo materno da família de Margarida — os Clarks.

   É, neste contexto, que Vitorino Nemésio dá vida a André Barreto, tábua de salvação no caminho do naufrágio económico dos Dulmos, barragem contra a gula vingativa dos Garcias, que pensa e age e sente no seio de uma família de outra ilha, São Jorge  — a do poderoso Barão da Urzelina.

      Xadrez este — em cujas sucessivas jogadas, movidas por sentimentos e interesses, acaba por vencer o conformismo e a submissão à voz daquela terra, contra o voo dos sonhos e contra a liberdade de amar — inscrito num alargado e diversificado desenho, tão rendado, tão miniatural, tão aproximado, que nos permite mergulhar nos mais ínfimos pormenores, ou seja, na representação dos diferentes modos de viver a vida e a açorianidade em diferentes ilhas e classes sociais.

     A capacidade para ‘bordar’ miudamente, o gosto nemesiano pelo diminutivo, pelo desenho de pormenor, distribui-se por vários planos:

— faz-nos ouvir variantes específicas do falar ilhéu, traçando e destrinçando vontades e reações;

— faz-nos sentir o clima e os fenómenos geológicos, tempestades, nevoeiro e bruma persistentes, que dominam destinos impotentes, tolhem movimentos, destroem expectativas;

— faz-nos angustiar ou clamar espanto, perante a condição insular, perante a exibição da fragilidade da vida a cada investida de doença, de desastre, de intempérie;

— faz-nos seres contemplativos, meditando sobre a condição humana em que a ascensão à montanha, a vista de horizontes sem limites, de beleza sem sinónimo, pode ser um objetivo de vida;

— faz-nos esquadrinhar existências ritualizadas, condicionadas por apertada vigilância social, por obrigatoriedades determinadas por padrões de conduta previamente estabelecidos, no vestir, no sair à rua, no estabelecer convivência, no amar, em sombrio contraluz daquela rapariga que tinha veneta, Margarida Dulmo;

— faz-nos questionar as razões do conformismo, da aceitação de acanhadas declinações daquilo a que, em abstrato, chamamos ambição, ideal, amor;

— faz-nos constatar a presença da religião como regulação  do ritmo da vida;

— faz-nos, enfim, fechar o pensamento sobre quadros de tão grande fragilidade existencial.

     Mau Tempo no Canal representa, em particular, a açorianidade, sim, mas representa, universalmente, o ser humano perante o destino, dividido entre a cedência a um esquema pré-estabelecido e a possibilidade de um projeto próprio, do qual, balançando entre a resistência e a desistência, desiste. Desiste Margarida e desiste João Garcia, ancorados num passado que tem ainda força para assegurar uma espécie de felicidade desistente. Prevalece a resignação à solidariedade com a família, com a comunidade, com a terra. Uma espécie de incompletude do brilho total dos sonhos e do amor. Uma espécie de imperfeição, simbolizada, desde início, na serpente-anel a que falta uma esmeralda e que Margarida Dulmo, que assim o herdou, rejeita corrigir.

    Vitorino Nemésio, um açoriano de treze gerações, um humanista escorado num saber sem rígidas fronteiras — talvez ficcionalmente reconstruído, enquanto jovem, no poeta que vai estudar Direito em Coimbra e se cruza com Margarida no Epílogo do romance, transforma a história social de um povo vivendo há cerca de quinhentos anos numa terra fragmentada, num esplendoroso romance.

     Afonso Lopes Vieira, no seu prefácio ao Paço de Milhafre escreve certeiramente:

«pela primeira vez em nossas letras contemporâneas os Açores acham um artista poderoso para os evocar, sensível para os amar, saudoso para os sentir.»

    David Mourão-Ferreira, na Introdução à edição Círculo de Leitores de1986, não hesita em escrever sobre Nemésio:

«Um humanista incomparável, talvez o mais dotado romancista que tivemos depois de Eça de Queirós e, sem dúvida, o maior poeta  que entre nós viveu depois de Fernando Pessoa.»

    Maria Lúcia Lepecki, com uma aguda perceção da genialidade com que Vitorino Nemésio urdiu este romance, escreve:

«Assim, temos um romance construído em duas direções: uma, horizontal, em que se abrange a paisagem e a coletividade. Outra, vertical, em que se penetra o mundo interior de uma personagem, ela mesma simbólica de um tempo e de uma situação, [Margarida Dulmo], através da qual se tem uma visão crítica e um juízo de valor sobre a totalidade do mundo que a rodeia.»

    Enfim, Nuno de Sampayo, anota no jornal A Capital:

«Os Açores são aqui rememorados desde a navegação que lhes deu realidade cartográfica, antropológica, portuguesa. O tempo da História. Não ficamos aqui, todavia, descemos mais fundo. O arquipélago de Mau Tempo no Canal oculta arquétipos. Jaz, sob Mau Tempo no Canal, uma memória arquetípica. Antes de os navegantes arribarem às ilhas aquilo era de baleias, gaivotas e açores. E antes de haver cetáceos e pássaros, tudo foi elemental, água, fogo, lavas [...]  Na minha adolescência, ouvi de Guerra e Paz uma observação que me impressionou: "Está lá tudo!" Em Mau Tempo no Canal, "microcosmo exemplar", não estará tudo, mas estão os Açores todos.»  

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por Maria Almira Soares às 11:42


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