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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Foi quando o miúdo me chamou da porta.
— Que é que queres?
Tinha um pau na mão.
— Anda cá.
—Que é que queres?
Tinha um pau na mão, irritava-se de impaciência, eu fui.
Desceu à minha frente os degraus da escada,
apoiado aos varões do corrimão. No jardim em baixo
havia terra mole.
— Que é que me queres? Então dobrou-se para o chão,
apontou o pau à terra. E disse:
— Anda cá que te quero ensinar a fazer o A.
Com um pau na mão. Apontado à terra.
Se eu aprendesse?
Vergílio Ferreira, Nítido Nulo
Ensinar a ler é uma coisa fabulosa. Ensinar a ler é partilhar o alfabeto, os alfabetos: o alfa e o beta... o á e o bê... o âlif e o bâ’... o alêf e o bêt... e o... e o... Ensinar a ler é partilhar os mundos que as coreografadas combinações de todas as letras dos alfabetos dançam para os nossos olhos, para a nossa inteligência, para as nossas emoções: histórias, poesia, pensamentos, falas, olhares, rostos inventados, vidas sonhadas. Ensinar a ler é partilhar o desdobramento infinito da corrente da escrita que se encastela, alastra, inunda, acrescenta paisagens à nossa viagem. Do derramar de um alfabeto inteiro, que em cada livro se dispersa e se desordena, nascem novos alfabetos, incontáveis alfabetos do mundo, à espera de serem encontrados no labirinto de cada leitura.
No seu fantástico labirinto de leitor extraordinário, Claudio Magris é um genial criador de inúmeros alfabetos do mundo. Salgari, Borges, Homero, Kafka, Canetti, Kipling, Benjamin, Defoe, Schiller, Novalis, Goethe, Turgueniev, Schlegel, Brod, Musil, Brecht, Havel, Fontane, Mann, Lie, Ibsen, Conrad, Ovadia, Rezzori, Manea, Kapuściński, Sábato, Erasmo, Gogol, Hemingway, Faulkner, Yourcenar, Camus, Dickens, Tolstoi, Dostoievski, Gide, Platão... poderiam ser os nomes das letras dos alfabetos-Magris. Na verdade, são temas dos inesquecíveis ensaios que não me canso de ler nos Alfabetos de Claudio Magris.
Ler é conquistar novos alfabetos. Ler é uma alfabetização imparável. Que coisa fabulosa é ensinar a ler, partilhar alfabetos! Neste livro, Claudio Magris partilha os seus. Alfabetiza-nos. Ler este livro foi para mim uma lição como aquela do espanto antigo de um s e um ó serem só. Ou como a da viva alegria do António do Vagão J quando “aprendeu o feitio do A”.
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