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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Sábado, 30.09.17

«a ansiedade que precede a vitória»

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Àquela hora devia estar a proceder-se na assembleia ao apuramento dos votos. Esta ideia lançava o conselheiro num daqueles estados febris, que só pode conceber quem já alguma vez soube o que é ter a sorte dependente de uma votação, e aguardar a cada momento a notícia do resultado dela. Devora-nos uma impaciência insuportável; tudo o que ouvimos nos aflige; as conversas sobre assuntos indiferentes irritam-nos; se nos tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra elas; se procuram preparar-nos para um desengano, prevenindo-o, repelimos com energia a ideia dele. O silêncio não nos é mais agradável; as apreensões ganham corpo no meio dele; falam os pressentimentos do mal. Tentamos sorrir, gela-se-nos o sorriso nos lábios. A quietação é-nos tão intolerável como o movimento. Ansiamos sair da incerteza, e de cada indivíduo que chega, trememos de saber a nova fatal. Vai mais longe o efeito moral deste estado de espírito; chegamos quase a querer mal a todos quantos estão assistindo naquele momento à decisão lenta da sorte. O nosso egoísmo, exacerbado em tais momentos, irrita-se com a ideia de que os nossos amigos tenham coração para assistir àquilo; e contudo não lhes perdoaríamos se se retirassem. Sensações daquelas esgotam mais vitalidade, em cada instante, do que anos de vida isenta delas. O conselheiro lutava consigo mesmo para dominar-se; procurava preparar-se para receber o golpe, que bem podia dizer infalível. Que esperava ele? Não lhe era quase possível contar, um por um, os votos de que dispunha? Não ficava, por mais alto que elevasse o cálculo, uma grande maioria a esmagá-lo? Tudo isto era assim, mas o convencimento prévio recusava estabelecer-se-lhe no espírito, para lhe dar a tranquilidade da certeza. É um vivedouro sentimento o da esperança! Não sucumbe senão perante um desengano inevitável. Porque lhe chamam verde, senão talvez por, como as plantas exuberantes de seiva, resistir às mutilações e renovar os ramos cortados? O conselheiro, dominado por todos estes tumultuosos afetos, passeava agitado na sala, olhando às vezes para a janela, à espera de ver assomar ao portão do pátio um dos seus partidários, cabisbaixo e melancólico, e armando-se de coragem para lhe dar o desengano. Apesar de todas as prevenções, o que é certo é que a nova, quando viesse, feri-lo-ia como imprevista. Sempre assim sucede. No meio de um destes passeios agitados que dava em todas as direções por o meio da sala, ouviu-se a detonação de algumas dúzias de foguetes. O conselheiro parou e fez-se excessivamente pálido. Os corações de Madalena, de Cristina, de D. Vitória e de Ângelo bateram também precipitados. A causa estava, enfim, decidida. A girândola apregoava uma vitória, mas não proclamava o nome do vencedor; porém, que dúvida podia haver a respeito dele? O conselheiro sentiu fraquejarem-lhe as pernas; sentou-se, e, com um sorriso amargo, disse para a família:

— Estou desautorado pelos meus antigos mandatários!

— Quem sabe, mano? Às vezes.

Isto começava a dizer D. Vitória, para dizer alguma coisa, quando Ângelo, que ficava mais próximo da janela, exclamou:

— Aí vem um homem a correr a toda a pressa!

— A correr?! — disse o conselheiro, em quem esta simples notícia infundira novo alento a todas as esperanças e dissipara a sombra das pesadas apreensões; e caminhou pressuroso para a janela. As senhoras seguiram-no ali. O homem, que Ângelo vira de longe, divisava-se ainda por entre os silvados de um atalho, que vinha dar à avenida da entrada do Mosteiro.

— Parece o Domingos, o criado do Tapadas. — disse o conselheiro, afirmando-se.

— Mas que pressa ele traz! — notou D. Vitória.

— Já nos viu — disse Ângelo.

— Lá acenou com o chapéu — exclamaram todos.

— Que quer ele dizer com aqueles sinais? — disse o conselheiro, nervoso.

— Querem ver que é o que eu digo?! Olhe que venceu, mano.

— Qual! É impossível. Pois eu não sei como a votação correu? É boa! — disse o conselheiro com certo tom irritado, como de quem não quer que lhe descubram uma esperança.

Passou-se um pouco de tempo, em que o homem se perdeu de vista. Subia

naquele momento a ladeira dos sobreiros. Os olhos fitavam-se todos no portão do pátio à espera de o ver surgir ali. Mal se respirava.

— Ei-lo — disseram instintivamente todas as vozes, quando ele apareceu.

— Viva! Sr. Conselheiro, viva! — bradou ele de lá, apesar de esfalfado.

O conselheiro teve quase uma vertigem.

— Ele que diz? Como pode?

Não o deixaram continuar as senhoras, que já o beijavam e abraçavam com frenético entusiasmo. Madalena, a própria Madalena, cujos mais ardentes votos eram ver o pai desistir da vida política, deixava-se tomar pela febre do triunfo e celebrava-o como se nele fundasse a sua felicidade. É que, na ocasião da luta, não há ânimo tão indiferente a estímulos, que não abrace um partido; ao princípio frouxamente talvez, mas a incerteza aumenta o ardor com que se esposa a causa; os gelos da indiferença fundem-se nos momentos decisivos, e a ansiedade que precede a vitória aumenta a comoção que esta produz, se se realiza.

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por Maria Almira Soares às 13:43



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