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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Para Ângela Castro, Diretora da Biblioteca Municipal de Ovar e personagem desta história, a quem agradeço todas as preciosas informações e fotos que me facultou.
Olá!
Sou uma árvore. Há vinte e um anos que vivo numa terra chamada Ovar, precisamente no jardim fronteiro à sua Biblioteca. Trouxeram-me num vaso, ainda bem pequenina. Plantaram-me neste jardim e aqui fiquei a viver. Fomos crescendo as duas, eu e a Biblioteca: eu com cada vez mais ramos, folhas, flores; ela com cada vez mais livros, leitores, leituras. Somos amigas.
Os que não me conhecem pessoalmente dizem que sou um «Feijoeiro da Índia». E sabem porque é que me puseram este nome? Por acaso, foi por engano... As minhas antepassadas mais remotas viviam na América do Sul e...
— Mas, então, porque é que não és da América em vez de seres da Índia? — estais vós já todos a pensar.
Um bocadinho de paciência, sim, que eu ia mesmo agora explicar. Quando os descobridores da América do Sul lá chegaram, julgavam que estavam a chegar à Índia e então... Estão a ver, não é? Mas ainda há mais, mais um engano. Quando lá chegaram e conheceram as minhas mais que tetravós, como somos leguminosas, lembraram-se de um legume que conheciam bem, o feijão, e, assim, com estes dois enganos juntos, fizeram de nós Feijoeiros da Índia. Só de nome, está claro! Claro que não somos nós que damos os feijõezinhos com que se faz um belo arroz!
Seja como for, eu não acho lá muita graça a que me chamem assim. Gosto muito mais de um outro nome que me deram aqueles que gostam muito de mim, um nome afetivo, estão a ver? Ah, esperem aí que, antes desse nome, ainda vos quero dizer que também estou registada em latim como todas as espécies vegetais. No meu registo científico, chamo-me «Erytrhina crista-galli» que quer dizer ‘crista de galo vermelha’. Engraçado, não é? Nomearam-me assim, porque as minhas flores são de uma cor vermelho-vivo e têm a forma de uma crista de galo. Bem, cientificamente sou Erytrhina, mas gosto muitíssimo mais que me chamem pelo tal nome afetivo. É um nome cheio de carinho e amizade, assim como quando chamam Mimi a uma Emília ou Zezinho a um José. Sabem qual ele é, esse nome de que gosto tanto? Árvore da Biblioteca.
Bom, basta de conversa sobre nomes e vamos lá contar-vos a minha história.
Não sou muito alta nem muito gorda e tenho uma forte inclinação por aquilo que me rodeia. Vivo quase deitada sobre a terra. Acidentes de percurso, de que mais à frente vos darei conta, fizeram com que o meu tronco principal, antes tão aprumado, ficasse numa posição quase paralela ao chão. Mas não me queixo. Deste modo, fiquei mais próxima das crianças e dos olhos dos que passam por mim ou param à minha beira. Não sou uma árvore que foge para o céu; sou uma árvore que quase abraça a terra e as pessoas. As minhas flores são tão vermelhas que até parece que a minha seiva, corada da alegria de fruir o sol, ficou da cor do sangue vivo! São umas flores muito felizes. E as minhas folhas, muito verdes, também. Sou um bocadinho vaidosa e, por isso, adoro ver a sombra dos meus ramos projetada na parede branca da Biblioteca ou o seu reflexo nas grandes vidraças da sua porta de entrada.
Como a minha forma não é assim muito vulgar, os meus conterrâneos e aqueles que visitam a minha terra, quando me veem pela primeira vez, abrem a boca de espanto.
Quando eu era pequenina, ainda não sabia o nome desta grande casa, em frente da qual me plantaram, mas, com o passar do tempo, descobri-o. A princípio, quando ainda não sabia ler, todos os dias ouvia dizer — Olha, vou ali à Biblioteca. — Adeus, adeus, que tenho de ir à Biblioteca! — Hoje, vou passar a tarde aqui, na Biblioteca! E, como sou uma árvore inteligente, percebi logo que a grande casa, para onde havia sempre gente a entrar, era a BIBLIOTECA. Depois, aprendi a ler (já vos conto como foi) e, então, pude confirmar que o nome que aprendera de ouvido estava certo: era o que diziam as grandes letras bem visíveis por cima da porta de entrada. Adorava, e adoro, ondular os meus ramos para cantar estas cinco sílabas
BI ♪ BLI ♩ O ♩ TE ♪ CA Que música maravilhosa!
Querem, então, saber como é que eu aprendi a ler? Foi assim: Os meninos que todos os dias passam por mim trazem e levam livros nas mãos e, às vezes, até se sentam, durante um bocadinho, aqui debaixo da minha ramaria; conversam, abrem os livros e põem-se a ler em voz alta uns para os outros. Ora, eu tenho de vos confessar que sou um bocadinho bisbilhoteira. O viver aqui e estar sempre a ver entrar e sair gente acicata-me a curiosidade. Enfim, levada por essa curiosidade, quando há livros abertos debaixo do nariz dos meus ramos, peço ao vento que, de um modo geral, é meu amigo:
— Vento, ventinho, baixa-me um bocadinho!
E o vento, tão querido, empurra-me as folhas quase até mesmo às palavras dos livros e elas, as minhas folhas, que têm uns olhos redondinhos (não sabiam?) e uns ouvidos bem afinados (não suspeitavam?), põem-se a aprender como os meninos leem as palavras, as frases, as páginas inteiras dos livros. Uma árvore de biblioteca tem de saber ler, não acham? E tem de ser leitora, não estão de acordo? Até me estou a lembrar...
Estou-me a lembrar de vos contar que a Diretora da Biblioteca gosta muito de mim. Como é que eu sei? Sei, porque ela, todos os dias, quando entra e quando sai, olha-me com carinho. E até já me salvou a vida! Um dia, ouvi-a referir-se a mim dizendo «A nossa árvore». Nossa! Ai que bom! Fiquei tão contente! Pois a nossa Diretora (posso dizer nossa, não posso?) de vez em quando organiza umas coisas, umas sessões a que vêm muitos meninos e que até parecem festas. E, numa dessas festas, durante o verão, lembrou-se de pendurar livros em mim, como se fossem frutos. Então, ao fim da tarde, quando todos já se tinham ido embora, pedi ao vento que os fosse folheando e empurrando as minhas folhas para perto das folhas deles e li-os.
Que giro! Acabei de descobrir que tanto eu como os livros temos folhas. Se calhar, é por isso que gosto tanto deles. E nem me importo que algumas de nós sejam transformadas em livros. É uma outra vida! Uma metamorfose! (Aprendi esta palavra difícil num desses livros que já li.)
Sou uma árvore feliz!
Sim, sou feliz, mas não pensem que a minha vida foi sempre um mar de rosas. Não foi, não senhor! Já passei alguns maus bocados. Até já vi os meus amigos temerem pela minha vida. A minha amiga Diretora chegou a andar muito preocupada. Foi assim:
Num dia do rigoroso inverno do ano de 2001, caía tanta chuva e tão forte que quase ninguém se atrevia a sair de casa. O vento soprava uuuuuuuuuh! uuuuuuuuuh!, sem freio, vindo lá de longe, do norte, e batia em mim sem dó nem piedade. Eu tremia toda. As minhas folhas choravam. — Que medo! — gemia o meu tronco aflito.
E as coisas pioraram.
De repente, as minhas queridas folhas, especialmente as mais tenras, começaram a rasgar-se, feridas por um granizo feroz. O barulho era ensurdecedor. Na terra empapada, as minhas raízes começavam a sentir-se inseguras. O meu tronco, com os dois ramos que sempre tivera, começou a inclinar-se cada vez mais para o chão e, quase a desequilibrar-se, quase a desenterrar-se, tremia como varas verdes e suplicava: — Não me largues, terra! Não me largues!
Caiu a noite. Tudo escuro. Toda a gente trancada em casa. Que fazer? Que fazer se a minha casa é ao ar livre?
A fúria da tempestade cresceu tanto, abateu-se sobre mim com um tal ímpeto, que... sem poder resistir, fui-me dobrando, dobrando e... só parei já bem próxima do chão. As minhas raízes começavam a ver-se acima do solo. Toda inclinada, lá me ia milagrosamente aguentando contra todas as leis da gravidade. Parecia impossível que, quase sem ter base de sustentação, eu me aguentasse no ar. (Serei eu acrobata? Daquelas que fazem exercícios de equilíbrio dificílimos?) Enfim, cansada de tantas feridas e emoções, exausta, adormeci.
Foram o sol da manhã — a tempestade acabara — e os pios de uns passaritos ainda assustados que me acordaram no dia seguinte. Mal abri os olhos das minhas folhas, lembrei-me dos lances terríveis por que tinha passado. Olhei-me e... confirmei o que me tinha acontecido. Felizmente as minhas raízes, embora um pouco postas a descoberto, ainda estavam presas à terra. Sentia-me angustiada. Cheia de medo de não me conseguir aguentar por muito mais tempo. Iria morrer a Árvore da Biblioteca? Chorava, escorrendo água das minhas folhas encharcadas da chuva.
No relógio da torre da Igreja soaram as nove horas. O andar ligeiro e inconfundível da Diretora aproximava-se. Olhou para a minha desgraça e parou consternada. Estava ela, muito pesarosa, a olhar para mim, quando chegou uma brigada que andava pela cidade a desimpedir as ruas e as praças dos troncos de outras árvores atiradas ao chão pelo vendaval. Ai! Nem me quero lembrar! Andavam de volta de mim, olhavam-me, avaliavam a minha situação e, concluindo que eu não teria hipótese de sobreviver, precipitavam-se a tratar do meu abate. Fechei os olhos assustadíssima, mas, de repente, ouvi a voz da minha amiga Diretora: Não, ainda não. É preciso avaliar melhor a situação! Consultar um perito. E, assim, me salvou. Fiquei mais baixinha, com os dois braços do meu tronco inclinados sobre a terra, mas continuei a viver neste lugar de que tanto gosto.
Durante seis anos vivi em paz e encantada com a minha vizinhança. Cada vez mais frondosa, cada vez mais carregada de frescas folhas e coloridas flores. A minha copa enchia de prazer os olhos dos que, de longe ou de perto, em mim os repousavam e iam dizendo Que linda está a Árvore da Biblioteca! Ainda bem que a não abateram! Estaria linda, estaria, mas também estava a ficar muito pesada, demasiado pesada, e... um dia...
Foi por meados de maio do ano de 2017, numa noite de sexta para sábado, já pela madrugada. As forças do meu tronco, há tantos anos inclinado sobre a terra e a suportar o peso cada vez maior da minha bela copa, estavam no limite. A silhueta ramificada do meu corpo vergava, vergava... Num momento, senti uma dor aguda e vi, aterrada, que me estava a rachar e que um dos meus braços se separara irremediavelmente de mim.
Seria dessa vez que me iriam condenar a deixar de ser árvore? Não! Faremos tudo para evitar que a nossa árvore morra. — disse mais uma vez a Diretora. Nossa! O meu coração aqueceu. Até parecia que já me sentia melhor.
Trataram de colocar o tronco, que eu perdera, sobre a terra, ao pé de mim. Fiquei mais pequena e mais frágil, mas fiquei.
— Talvez volte a ganhar novas forças! — diziam os otimistas.
— Parece-me que não vai conseguir sobreviver... — agoiravam os pessimistas.
Estavam todos preocupados e eu sentia-me mais confortada com o seu desvelo.
Todos os dias me olhavam à procura de melhoras.
Iria a Árvore da Biblioteca vencer mais aquela prova?
Estive entre a vida e a morte, sim, mas, como já bem concluíram, miraculosamente sobrevivi. Senão, não estaria aqui a contar-vos a minha história. Cá estou, vivinha da silva! E com uma forma ainda mais escultórica, mais invulgar numa árvore. Tenho aqui, pousado ao pé de mim, o tronco que perdi. Gosto muito de que as crianças se encavalitem nele a brincar. A sua presença faz-me lembrar, a mim e também aos que me conheceram inteira, de como eu era dantes.
Toda a gente se espantou com o meu renascimento e, quando passam por mim, até dizem «esta árvore tem sete vidas». E eu penso que, se a tanto resisti, é porque sei que fico muito bem aqui e porque sei que todos iriam ficar muito tristes se os seus olhos não me encontrassem à entrada e à saída da Biblioteca.
Ainda ontem, surpreendi dois avôs com os netos pela mão a olharem para mim e a dizerem:
— Viva, senhor José! Já viu? Esta árvore tornou-se um emblema!
(Glup! Eu, um emblema?! A seguir, percebi tudo.)
— Bem lembrado, senhor António! Olhe, era desenharem-na em tudo quanto é papel e objeto de trabalho da Biblioteca...
— Pois... Pois... É que não só é bonita como também é original e representa bem a vitória da vida sobre a destruição.
— Isso! Seria o emblema da vitória da leitura sobre a ignorância.
— E da beleza da Arte e da Natureza.
(Boa! Que grande ideia! Assim, mesmo que eu morresse, ficaria sempre lembrada!)
Depois de ouvir isto, estava tão sonhadora, que os meus ramos mais frágeis pararam de abanar e ficaram muito bem desenhados contra o azul do céu. Estava eu assim tão pensativa, quando uma rabanada de vento repentino arrancou, das mãos de um jovem que se aproximava, uma folha do jornal que ele vinha a ler. A folha do jornal soltou-se, revoluteou no ar e veio pousar no meu tronco mais grosso. Pus-me logo a ler e... Que vejo eu?
— A minha fotografia está no jornal? Sou eu! Sou eu! E diz aqui que... diz aqui que posso vir a ser uma Árvore de Interesse Público!
Porque será? Hum, hum, deixa-me cá pensar... deixa-me cá pensar... Eu já ouvi esta palavra público. Ah, sim, às vezes, dizem a Biblioteca Pública de Ovar. Ora, se eu sou da Biblioteca e se a Biblioteca é Pública, eu... também sou pública! É isto. Que bom! E ser de interesse público é ser do interesse de todos.
Assim, quando estiver para vir a tempestade, todos me virão proteger e a minha vida será tão longa e tão feliz como a da BI-BLI-O-TE-CA!
Viva a Biblioteca que tem uma Árvore, eu! E olhem que eu existo mesmo e a minha história é verdadeira. Se quiserem, podem cá vir visitar-me. Terei muito gosto em vos receber.
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