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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quarta-feira, 23.04.14

A DÁDIVA ENCARCERADA

 

 

 Na cena da leitura em educação escolar, o aluno é um possível reconstrutor de versões dos modelos de leitura que o professor, aí, protagoniza. Convém, entretanto, explicitar que, neste ambiente da leitura escolar, constituído essencialmente pelo professor e pelo aluno, operam outros entes: o currículo, o programa, o manual, a biblioteca, a ideia de promoção do gosto de ler, o ofício de vencer a incapacidade de conseguir servir-se de escritos da vida corrente; e que, para além de povoado por estes entes/agentes, ele se insere ainda no encontro de um eixo horizontal que é o da porosidade da escola em relação a outros meios contíguos e de um eixo vertical construído na dialéctica entre tradição e renovação, sob formas de reverência e desestruturação. O professor ocupa aqui, aparentemente, o lugar do poder mais discricionário, entre os limites da qualidade e da comunicabilidade, consciente ou inconscientemente afectado pela vizinhança intertextual dos variados registos da cultura escrita, sobre a qual exerce uma função de controlo.

         Experimentemos admitir que os textos que se leem na escola, saídos da encruzilhada do currículo, do programa, do manual, da biblioteca, da ideia da promoção do gosto de ler ou da utilidade da leitura, da porosidade da escola, da dialéctica tradição/renovação, da função de controlo do professor, sejam aquilo a que chamamos textos clássicos: —  O que é ler um clássico? — O que é ler um clássico na escola? Tomando como aceitável que o texto é reconstruído pela leitura que dele se faz, que tipo de tensão gerará a leitura escolar dos clássicos: Estranheza? Diferença? Exotismo? Curiosidade? Que tipo de intervenção decifradora se tornará necessária? Esta necessidade decifradora desarmará a força impregnadora do texto ou será mobilizadora da sua ação em sede de processos cognitivos, tornando-se uma mais valia em termos educativos? Os textos clássicos capitalizam as dificuldades da leitura, ampliando-as? A descompensação provocada pela vizinhança da leitura fácil vitimiza os clássicos? A leitura dos clássicos esconjura a leitura fácil e fortalece a capacidade de ler? A leitura naïve de um texto clássico pode inverter positivamente a vivência da leitura fácil? A observação, ainda que imprecisa,  da  realidade  escolar devolve-me um cenário em que os alunos parecem olhar os clássicos como uma dádiva encarcerada numa porta aberta que lhos pretende franquear. Isto é, como que se olham mutuamente: o texto dentro da leitura decifradora do professor e o aluno tolhido pelos insistentes acenos dessa leitura. Seja como for, o texto clássico, em leitura escolar, surge sempre como um habitante estranho exposto no enquadramento de uma moldura, que é a aula. Que reconfiguração no imaginário do aluno é a da aula quando nela o professor lê um texto clássico? Lugar inóspito aos olhos daquele a quem se pede que seja um leitor heroico? Lugar tão cerrado de indicações de conduta que não vale sequer a pena pensar no ato heroico? E, daí, essa paralisia de que falei atrás? Será possível desafetar esta ecologia da aula do seu munus paralisador de moldura coercitiva?

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por Maria Almira Soares às 15:46



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