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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A relação entre uma pessoa e uma história, um poema, um drama, escritos num livro é uma intromissão solitária, silenciosa. Pode, depois, ser transformada para outros usos, mas, no seu primeiro nível de experimentação, é coisa íntima, jubilosa ou destrutiva, e — durante o intervalo entre a conclusão da leitura e o surgimento da disposição e oportunidade para a abrir aos outros — secreta. Íntima e secreta, só como consequência deste intimismo e fechamento a leitura se pode tornar social, contextual.
Expor, descrever, debater, organizar, edificar o tema da leitura, depreciando o facto de ela se cumprir a despeito da relação com o mundo, de ela criar os seus mundos, de ela suspender o exercício de interacções circunstanciais, é irreflectida hipocrisia. A este propósito, lembro a diferente posição de Vergílio Ferreira que, enquanto homem de leituras complexas, declarava o seu gozo íntimo, o frémito amoroso que continuava a sentir na leitura de velhos e corriqueiros textos de selecta escolar, em polar ruptura com a declinação dos tempos que então passavam e desqualificavam tais textos. Vergílio Ferreira sabia do carácter íntimo e secreto do primeiro nível das nossas leituras. Tratar a leitura como coisa tão-só de actualidade, coisa «toda vã, toda mudável», emergente e precária é um erro, porque o núcleo volitivo mais substancial de se ser leitor de um dado livro, o elo mais sólido que prende um leitor a um livro não depende necessariamente de mudanças circunstanciais. O peso da circunscrição contextual, da prescrição epocal, na escolha efectiva de um livro por parte de um leitor, é sempre inferior ao peso da sua determinação pessoal. A leitura genuína é coisa livre senão do desejo e do instinto deliberados pelo leitor segundo categorias próprias. Pretender configurá-la sob sujeição completa à época e suas mudáveis características e finalidades é desfigurá-la, enredando o leitor em indecisões, enganos, falsas personae de leitor, passos perdidos, precariedade.
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