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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Entristece-me verificar, durante encontros que tenho tido com jovens, em escolas, a complacência, a aceitação de braços caídos de inevitabilidade, perante a realidade de muitos e muitos, quase todos, desses que foram crianças leitoras muito animadas senão entusiasmadas com a leitura, se revelarem quase-fisiologicamente incapazes de ler... Os Maias. E tento articular entre si estas duas realidades exemplificativas: gostar de ler em criança e ser, em jovem, incapaz de ler Os Maias. E saltam-me algumas perguntas a que procuro responder: — Que gostar era esse? — Que incapacidade é esta?
Sou, então, tentada a encontrar respostas como estas: Ler foi para eles apenas uma coisa da infância. Naturalmente, crescer foi, neles, deixar para trás as coisas da infância, entre as quais, esses livros, lindos, em que quase tudo era desenho, objetos nostálgicos de que se lembram com um sorriso, como doutros brinquedos que tiveram, e que, para eles, nada têm a ver com a vontade, a curiosidade, que poderiam ter, de ler um livro como... Os Maias. E que leitores triunfantes muitos deles foram na infância! Os triunfos imediatos esgotam-se em si mesmos e tornam-se, talvez, mais coisa de registos estatísticos do que de ganhos humanísticos.
Conheço muitos casos destes. Fui e vou conhecendo. Pessoas que, na infância leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos.
Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo.
Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro.
Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...
Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro.
Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis.
Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até, a inseri-los no seio de atividades de leitura.
Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós.
Maria Almira Soares
(Extratos da palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA — Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar, em 30 de junho de 2017.)
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