Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Afonso, refiro-me a Afonso da Maia, tinha um plano, uma ideia de futuro para Portugal, e alguém, um neto. Já que o filho falhara, era na vida desse neto que esperava desenhar o seu plano. Todavia, Afonso da Maia estava enganado. Tão enganado, que o desgosto da degenerescência dessa ideia, em que investira crença, princípios, amor, lhe foi mortal. Não resistiu à evidência do seu engano. Expatriado de um Portugal suicidado e suicidário, Afonso da Maia anglicizara-se e, daí, acarinhara a ideia de transplantar para a terra portuguesa a força de uma seiva estrangeirada. Para a realização de tal plano, aparentemente, tinha tudo: a anglofilia, a pessoa do neto e o que restava da pureza da terra, dos ares, da água, Santa Olávia. É aí que inicia a sua luta, educando à inglesa o neto Carlos. Mas...
Mas Portugal não é a Inglaterra.
Mas...
Mas Carlos não é apenas o seu neto. É o filho do suicida romântico e da romântica aventureira. É o neto do negreiro. Por mais fortes e invasores que sejam a convicção, a pureza de princípios, o amor de quem nele empenha o que lhe resta de vida, o alcance do sucesso do seu projeto não coincide com a grandeza desses princípios, convicção, amor. Tal grandeza minimiza a presença de outros elementos que a prejudicam, que conjuram a sua ruína, que polarizam a sua destruição. Combinações mortais! Uma educação transplantada não dá frutos em terra alheia, não medra em meio profundamente viciado nas pechas nacionais. Um ser feito de genes ancestrais resiste à força enformadora de uma educação que os contraria. A uma nação, política, ética, estética, material e animicamente doente, ainda que sob tratamento com remédio importado de 'povos superiores', o mal que a corrói regressa. Só cavando-o e arrancando-o da própria terra, dele se extrairá o princípio da cura. Porque o mal, parecendo promissivamente escorraçado, pairará, nem que seja no desconhecido, e acabará por seguir o seu caminho natural de regresso às suas raízes, de identificação incestuosa com a sua origem, desdenhando a inocuidade das ideias importadas. Assim, caiu Afonso da Maia e a sua ideia de energia, de inteligência, de progresso, de justiça, de superioridade, que julgara trazer de Inglaterra, e que julgara poder plantar em Portugal através do seu neto Carlos. Afinal, também Afonso se iludira, se encantara superficialmente com o espetáculo do que viu lá fora. Haveria que ter pensado mais profundamente, haveria que ter analisado mais profundamente a realidade portuguesa, haveria que ter procurado uma outra ideia genuinamente portuguesa...
Eça, não só faz falhar o plano de Afonso, como comete a subtileza trágica de o fazer sucumbir ao reencontro fatal, incestuoso, entre o vicioso romantismo nacional, atentatório do desejável carácter do neto, e o vicioso romantismo nacional, tragicamente escondido sob a aparência estrangeirada do louro dos cabelos, do porte, dos costumes, do sotaque de uma mulher, ramo da mesma árvore, também ela sua neta. A derrota é absoluta, porque, não só o velho sonhador morre, como também os seus protagonistas não a assumem, não tiram lição, e continuam a fechar círculos viciosos, fugindo para esse mítico e falso Estrangeiro, cá dentro ou lá fora. A derrota do projeto não é redentora.
Ironicamente, sobra a voz do velho Alencar: «é aqui que nascemos, é aqui que rebentamos».
E do Eça que, no subsequente A Cidade e as Serras, já não mata afonsos da maia. Mata o estrangeiro.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.