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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O que de melhor e mais original Saramago criou foi a sua voz narrativa. Saramago inventou uma cultura verbal para um olhar escrutinador, radical, judicioso. Parabólica como a voz dos deuses, é o ícone do seu deus interior, esta fala reveladora do humano na sua miséria e no seu esplendor. Larga e densa, deixa que nela se enredem outras vozes como se a linearidade da frase fosse texto. Uma dessas vozes verdadeiramente pasmosa e portentosamente irónica é a da morte. Em cima de uma infinidade de versões sobre o mistério da morte, Saramago reinventa-a como um conhece-te a ti próprio, como uma viagem a Delfos para nos deixarmos tentar pelas verdades com que nos enganamos. Inventa-a e dá-lhe um papel, um guião minucioso que ela está disposta a cumprir violentamente. Mas eis que — depois de um longo arrasto e arresto das mil e uma escaramuças que a suspensão da morte desencadeia contra as necessidades encobridoras das linhas puras e duras da vida — eis que as palavras se lembram de inventar um violoncelista. «Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas». E é então que a violência da morte se dissolve. Só no Violoncelista se dissolve a violência da morte. Saramago nunca nos revela a razão da incapacidade ontológica do Violoncelista para aceitar a carta violeta. Mas suponho que sabemos. Supõe que sabemos. A morte não tem antónimo, porque a vida é o seu caminho e um caminho é só um caminho. Mas tem contraponto porque, sobre o que num caminho poderá ir, há uma infinidade de escolhas. Algumas, como a Música, a Arte, o amor da Arte, o amor do artista, sobrarão da morte. E, numa rasteira à violência da vida, num ponto de fuga, obrigarão a morte a enfrentar o desconhecido. Perante uma violência radicalmente diferente da sua, a da arte, a morte suspende-se. A Arte é uma violência para a cegueira do algoz.
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