Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Alice Faz um País
Maria Almira Soares
IV
[Continuação.]
Pois é, nesse dia ela ficara tão zangada que só uma coisa em grande, como um país, a poderia curar de tamanha arrelia. Além disso, a Alice gostava muito de países. De saber e dizer os nomes dos países. Os seus favoritos eram: Austrália, China, Camarões e Peru. Eram estes os nomes de países que ela mais gostava de dizer. Arranjava sempre maneira de os meter nas conversas. É que a Alice, além de brincar, também gostava muito de conversar e de arranjar palavras novas para meter nas suas conversas. Às vezes, quando não conseguia que brincassem com ela, ainda tentava que, pelo menos, conversassem… Mas, nesse dia, nada. Nem uma coisa nem outra.
— Vou fazer um país!
A primeira coisa em que se lembrou de pensar foi no lugar onde ia ser o seu país. Tinha de ser um lugar com neve, como numa história que ela tinha lido e em que as árvores e os caminhos e os telhados das casas estavam todos cobertinhos de neve. Enquanto a Alice pensava numa terra cheia de neve fofinha e branquinha, começou a perceber que o seu país tinha de ter uma forma, um desenho. E qual?
— Que giro se fosse redondinho como uma bola! Mas não, ninguém acreditará que haja um país redondinho. Não é costume. Pois, se não pode ser redondinho, vai ser… vai ser… como o focinho do Rex. (O Rex era o cão do Luís, o seu amigo predilecto.) Assim mais ou menos como um triângulo mal desenhado.
Depois de ter decidido como é que ia ser o desenho do seu país, a Alice começou a fazer as estradas que iriam ligar as terras umas às outras. Começava uma, mas depois distraía-se e já nem sabia bem onde ia. Estava a ficar meio perdida. E, com tantas curvas, apesar de estar ali deitadinha na sua cama, até parecia que já estava a começar a ficar enjoada. E o país, com tanto risco a atravessá-lo, começava a ficar parecido com um novelo de lã! Então, a Alice, para se desembaraçar de toda aquela embrulhada, resolveu que o país ia ser pequenino, ter poucas terras e, por isso, poucas estradas.
— Só vai ter três cidades. E quantos habitantes vai ter o meu país? Um milhão!
A Alice gostava muito de dizer: um milhão.
— Gosto tanto de dizer um milhão! — pensou a Alice.
Ela sabia que nunca conseguiria fazer um milhão de pessoas e, por isso, pensou logo que a maior parte — para aí novecentas e noventa e nove mil novecentas e noventa — iria ficar dentro das casas e das escolas e dos cinemas e das bibliotecas… e, cá de fora, não se viam.
— Pois.
Não estava descontente com o que já conseguira fazer, mas sabia que o seu país ainda estava muito incompleto. Então, começou a passar em revista o que já tinha e o que ainda lhe faltava.
— Já tenho o sítio, o feitio e os habitantes, mas ainda faltam os campos de futebol e as lojas e as fábricas e... Parece que me estou a esquecer de uma coisa muito importante, mas não consigo descobrir o que é. Como quando tenho uma palavra debaixo da língua e não sou capaz de me lembrar dela.
Impaciente, a Alice passou adiante e pôs-se a fazer a praia. Aquele país tinha mesmo de ter praia. Ela gostava tanto de ir à praia! Mas, para isso, afinal sempre tinha de fazer um bocadinho de mar! Nem que fosse só um bocadinho...
— Paciência, as petuniazinhas vão ter de se sacrificar um bocadinho, de passar um bocadinho de sede.
Enquanto ia aperfeiçoando a praia do seu país com areia muito fina e branquinha, ondas pequeninas e azuis, o céu sempre sem nuvens e o sol sempre quentinho, a Alice continuava a sentir que havia qualquer coisa importante de que se estava a esquecer... Mesmo depois de meia dúzia de dentadas no lápis que rolava entre os dedos, ela ainda não conseguira descobrir que coisa era essa de que não se conseguia lembrar. Por isso, resolveu ir fazer uma floresta. E fez. Não muito longe do mar, a floresta da Alice acabava numa fileira de dunas, altas e fofas onde era maravilhoso rebolar. Como na praia ao pé da terra da sua avó. As árvores, de longe, pareciam nuvens verdes que se enrolavam umas nas outras, a perder de vista, e só acabavam lá ao fundo, no céu. Eram pinheiros mansos de copas redondas que pareciam muito macias. Era tão bonito, tão bonito, que não podia faltar no seu país! E os pássaros?
— Vou pô-los aos saltinhos e, de repente, a voar, assustados com o barulho dos nossos passos.
Depois, a Alice ficou um bocadinho parada. Não porque estivesse cansada. Mas por se ter demorado algum tempo a sonhar com as lembranças das viagens à terra da sua avó. E lembrou-se doutros animais com que travara conhecimento lá na aldeia. Gostara sobretudo de um cavalinho que costumava andar a pastar ao pé do caminho por onde o avô a levava a passear. Ficava a vê-lo ondear as crinas como se fossem algas, enquanto corria para longe à procura da erva mais fresquinha. A Alice era bem capaz de ficar para ali a sonhar com as suas doces recordações, mas havia um país para acabar de fazer e ela, subitamente e sem saber donde lhe vinha tal ideia, deu por si a pensar que, no seu país, era absolutamente necessário que houvesse um teatro. Talvez tivessem sido as cores e a beleza do campo que lhe fizeram lembrar a bela recordação daquela vez em que a mãe a levara ao teatro:
— Vai ter um teatro cheio de luzes e de cores como aquele onde eu vi A Gata Borralheira!
Ficara deslumbrada, de olhos e ouvidos muito abertos, enquanto no palco se arranjava maneira de transformar uma abóbora numa bela carruagem! Esta era uma recordação inesquecível. Gostara tanto! E a Alice estava contente por se ter lembrado de pôr um teatro no seu país.
— Pronto. Já está. O que eu não sei é como é que o meu país se vai chamar… Ah! É isso que me estava a esquecer! O meu país tem de ter um nome! Senão, como é que eu vou chamar aos seus habitantes?
[Continua.]
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.