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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
Tudo o que floresce tem uma raiz, acredito. E uma flor, eu sei, houve na minha vida de professora: a da alegria de ensinar.
A raiz, portanto.
Tudo começou nos anos cinquenta do século passado, numa escola que tinha como patrono um santo, a Escola de São Miguel: este meu retrato de professora começa nos meus primeiros passos de aluna.
Em Ovar, num mês de outono, eu, quase a fazer sete anos, tive, pela primeira vez, uma aula. E essa foi a primeira palavra mágica: aula! A experiência inaugural do seu sentido soube-me bem, numa idade em que o significado do verbo saber estava ainda muito mais preso ao sabor do que ao conhecimento. Era numa sala ampla e fresca, arejada, em que as madeiras, gastas por muitos anos de uso, tinham uma textura acetinada. Havia cheiro de giz, de lousa, de papel de livros e cadernos, de lápis afiados, de tinta vazada com jeito e precisão nos tinteirinhos de esmalte branco encaixados no recorte redondinho da madeira. Quase tão bom como o perfume das brincadeiras a que a escola viera roubar tempo! Os primeiros momentos de escola foram de alegria. Mas só a alegria não chega. Alguma coisa mais sólida me segredou o desejo de vir a ser professora, enquanto assistia, ali de tão pertinho, ao modo como a D. Albertina sabia passar um saber de si para os outros! Foi isso: a vontade de ser alguém com um saber dentro de mim e completamente disposta a passá-lo para outros que, a partir daí, poderiam também dizer eu sei, eu já sei, eu já sei ler... Lembro-me de que, aos olhos da criança que então era, isto representou uma espécie de autoridade, de superioridade, que eu queria ter. Queria poder dizer está certo ou está errado, transformar o errado em certo. Coisa tão forte, que até se transformou em brincadeira. Passei a brincar ao ser professora!
Mas todas as histórias são feitas de uma sucessão de depois. E, depois, o cenário mudou. Drasticamente. Nesse tempo em que muita coisa estava errada, a que a muito poucos era possível continuar na escola, em que havia tão poucas escolas, fui obrigada a sair do mundo encantatório de uma infância quase-rural, a caminho da cidade. Não havia Liceu (era esse o nome) em Ovar e, daí, a mudança quase traumática para o que, aos meus olhos pequeninos, era a cidade grande: o Porto. Migrámos todos, a família toda. Só a alegria foi a mais demorada a fazer a viagem. A escola já não tinha nome de santo, mas de... académica! Passou a ser uma sucessão interminável de corredores e portas e gente, onde eu quase me perdia... O tempo e o espaço tinham radicalmente mudado. Era o Liceu Nacional de Carolina Michaëlis. Imaginem a diferença! Ironicamente, foi nessa diferença que veio a acontecer o reencontro, mais à frente, com a alegria de saber, de compreender o saber, de ser capaz de o explicar, de o abrir, de ver olhos a deixá-lo entrar e bocas novas a dizê-lo, a acrescentá-lo. Pois é, fiquei sete anos, como o pastor do soneto, a aprender, a aprender saberes que se multiplicavam, se ramificavam. É assim que os troncos crescem. Crescer também é isto: aprender.
Multiplicavam-se as folhas, as dos livros, as dos sinais de futuro... E não demorei nem o tempo de uma pergunta para saber que pelas Letras é que eu iria. E fui. Coimbra. Nesse tempo em que muita coisa estava errada, as universidades eram poucas, destinadas a pouca gente. Coimbra foi a terra do meu estudo das Letras Clássicas, da minha descoberta e aprofundamento do génio de gregos e romanos, de preciosidades antiquíssimas a abrirem para horizontes cheios de modernidade. E, quando chegou o momento de confrontar a vontade de ser professora com a realidade, escolhi Lisboa.
Corre o ano de 1971 e, nesse tempo em que quase tudo continuava a estar errado, num mês de outono, pela primeira vez vou entrar numa sala de aula e ver de que cor é, afinal, a flor da alegria de ensinar.
Um vice-reitor apressado e desinteressado passou-me para a mão um pedaço de cartolina esverdeada em que se desenhavam algumas quadrículas preenchidas com alguns números (era o meu horário), olhou de soslaio para o relógio de pulso, e disse: «— Está quase a tocar, tem agora uma aula, vá!» E eu fui. Eu e todas as inseguranças deste mundo e do outro. Mas, como nas epopeias antigas, não Atena, mas a que fora a minha inesquecível professora de Português durante cinco anos caminhou, invisível, a meu lado. Foi ela o meu modelo para esse primeiro ano de mergulho sem rede na profissão de professora, num tempo em que muitíssima coisa estava errada. E talvez tenha sido, esse ano inaugural, o mais rico em aprendizagens do meu ser-professora. Dando a máxima atenção ao retorno que vinha dos alunos, refletindo sobre cada passo que dava, fui transformando inseguranças em saberes. Comecei a aprender... a estar, a fazer, a dizer, a ouvir, a calar, a começar, a terminar, a retomar, a esquecer, a lembrar, enfim, a dominar a arte de estabelecer com os alunos, com cada aluno, uma aliança produtiva. Aquela, e só ela, que permite uma passagem autêntica do conhecimento. O reconhecimento mútuo de quem ensina em quem aprende e de quem aprende em quem ensina. Nessa primeira escola, secção do Liceu D. João de Castro, em Almada, fiquei apenas um ano. Os oito seguintes foram vividos no Liceu Nacional da Amadora e atravessados por factos e desafios fortalecedores das convicções profissionais que fora firmando.
Lembrança viva essa, por exemplo, a que me ficou da diferença entre, num dia, ler com os alunos Gil Vicente antes do 25 de abril e, noutro logo a seguir, ler Gil Vicente com os alunos depois do 25 de abril. A leitura precisa de liberdade, precisa de perguntas livres, precisa de leitores plurais, precisa de debate. Libertar a leitura e o conhecimento de qualquer reserva, de qualquer espécie de medo, foi talvez uma das consequências do 25 de abril, cuja lembrança, como professora, guardo mais viva!
Foi este um tempo em que a escola abanou em todas as suas dimensões e não foi fácil mantê-la de pé. Por volta de 1978 — depois de alguma resistência fundada na convicção de que o que mais me interessava era ensinar — aceitei o lugar de vice-presidente do conselho diretivo. Foi um ano de sol a sol no liceu, a colaborar na sua reconstrução institucional, cultural, material, humana. Nesta escola, fiquei oito anos. Depois, parti para aquela onde ensinei até à hora de me vir embora: a Escola Secundária de Benfica, que, mais tarde, passou a chamar-se Escola Secundária José Gomes Ferreira. Foi aí que, durante vinte e oito anos, fui trabalhando numa aproximação, cada vez maior, às condições que considero essenciais à eficácia do ensino: as que permitem uma relação individualizada com cada aluno, através do conhecimento muito próximo das suas caraterísticas e do seu carácter de aluno. Aí, foi-me possível a permanência com os mesmos alunos ao longo dos seus anos de escolaridade e o trabalho com turmas construídas dentro de uma escala racional. Estas, duas das condições que permitem “fazer” alunos, porque os alunos não se escolhem, “fazem-se”. A dedicação ao ensino de disciplinas como a Literatura Portuguesa (Português A) e o Latim permitiam-no. Foram quase trinta anos a fazer, a ver, a sentir, com nitidez e certeza, a tal coisa que me tinha fascinado no meu primeiríssimo dia de aulas, lá longe na Escola de São Miguel: o saber a passar de uma pessoa para outra. Na minha vida de professora, esta foi sempre a coisa mais importante. A tal flor era da cor da alegria de ensinar e da curiosidade de aprender. Em volta, progressivamente, iam caindo sombras, muitas sombras, cada vez mais espessas. Sombras que apagaram o Latim, sombras que fizeram mirrar os autores clássicos, sombras que confundiram cada aluno em turmas sem fim... Então, senti-me obrigada a preservar, para memória futura, a alegria de ser professora. A guardá-la numa lembrança luminosa, enternecida, como, por exemplo, meus alunos, esta da partilha da escrita e das leituras: a de vos olhar, ali, à minha frente, os olhos baixos sobre essa coisa antiga, o papel, tentando arrancar palavras de algum lugar dentro de vós, para esta coisa difícil, morosa, trabalhosa, a escrita! E também esta, meus alunos, a da minha persistência, essa minha teimosia, esse meu labor de vos agricultar a escrita, como no poema do Torga: «Meu pai a erguer uma videira/como uma mãe que faz a trança à filha.»
Por isso, antes que fosse o tempo administrativamente determinado, saí. Sei que ficaram frutos.
[JL, 23 de julho, 2014]
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