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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
E uma velha, com mais traça de bruxa que de taberneira, ergueu, da baixa lareira onde estava acocorada, a mal-azada cabeça e tornou logo a descair no que podia ser sono ou letargo.
— Um pichel, bruxa excomungada! Não ouves?
— Bruxa, bruxa!... Já houve bruxas em Gaia, que era a terra delas e sempre o foi. Hoje não há bruxas que valham onde estão as benzedeiras e rezadeiras que todo lo levam e todo lo comem... Má eira as colha!.. Que bruxas? Hum!
Rosnando assim, vinha a bruxa, arrastando-se nos decrépitos tamancos (leia-se socos no mais alatinado dialeto portuense) e, chegando onde estavam sentados os três, estacou de repente. Com olhos que não pareciam já feitos para o ver da vista exterior, se pôs a contemplá-los numa atitude de indefinível expressão. Disseras de um cadáver que reconhece um vivo... de um esqueleto em cuja caveira se iluminasse de repente o vazio das órbitas descarnadas para vos olhar e saudar.
Os três homens estavam fascinados; a velha parecia ter o poder de fixar sobre todos três, ao mesmo tempo e com igual e não dividido alcance, aqueles olhos tão mortos... E tão vivos. Um sorriso infernal correu mais para um lado e sem desfranzir as asquerosas rugas daquela boca sumida. E a velha disse:
— Com que são hoje as ladainhas de Marcos evangelista? Devem ser. E bem as canta quem as canta. São os cónegos na Sé. Dizei-me vós a mim quem é.
E riu-se, riu-se de bruxa: uma risada tossida e para dentro, destas que fazem arrepiar e estremecer. Daí, com uma pieira rouca e desafinada, se pôs a cantar, ou antes, a regougar estas trovas de má mente e mau esconjuro, que lhe saíam trepidando dos beiços como espuma de feitiços que fervem num lar maldito em caldeirão de três pés, manco, rachado e ao lume de figueira verde.
O bispo com sua bispança,
Bem lhe praz fazer folgança,
Mais os padres de Santa Maria,
E mais a raposa que fia.
Bem fia a raposa, bem ela fiava,
Rezava a Senhora, rezava e cantava.
Caiu a raposa no laço que armava.
Foi o raposinho
Que aventou o ninho.
Entraram os lobos... Eles hão de entrar
Oh, se hão de entrar!
E o bispo, a raposa e o seu raposinho,
Tudo há de dançar.
Dançar, dançar, meu São Gonçalinho!
Bebei do meu vinho.
E com uns saltos trôpegos como de dança de entrevados, a velha bailava em cadência com o seu arrepiado cantar. Parou de repente, fitou os olhos no mancebo e, soltando uma longa gargalhada infernal, virou-lhe as costas. Arrastando, arrastando. Foi buscar um bom pichel de meia canada, encheu-o de vinho, e voltou a pôr-lho sobre a mesa. Os três pasmavam e não diziam palavra, ainda fascinados do estranho olhar, do mais estranho cantar e das arrastadas evoluções da dança da bruxa. Ela tornou para o seu canto na lareira, acocorou-se e descaiu a cabeça no mesmo letargo ou sonolência de que tão extraordinariamente despertara.
— A que má cova de Satanás nos trouxestes, mancebo? – disse um dos três por fim.
— Peçonha terá este vinho, por mais que me digam.
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