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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
LEITURA, SUBSTANTIVO COMUM
A ideia do incremento da leitura é preferencialmente associada a atividades com crianças, o que se compreende bem, já que a infância é a idade boa para o lançamento de sementes de futuro. Uma vez, porém, que essas sementes, por vezes, muitas vezes, não frutificam e dão em pouco-leitores ou não-leitores, torna-se também desejável incrementar a leitura junto dos adultos.
Note-se que incrementar a leitura tem valor quantitativo e qualitativo e, por isso, implica mais gente a ler, a ler mais livros, mas também a fazer boas escolhas e a apurar os seus critérios, o que não se torna fácil, dados os contextos pouco favoráveis a estes desideratos.
De facto, não são apenas as crianças que são alvo de manobras de atratividade fácil, de adesão à superficialidade e à rapidez de contacto. Os adultos leitores ou possíveis leitores são cercados — por quase todos os lados — pela oferta insistente de histórias leves, rápidas, muito ao rés do viver rotineiro e das emoções típicas, das emoções de catálogo.
Trata-se de histórias que não têm o poder de despertar o imaginário para paisagens de espanto e de perplexidade. São histórias com as quais é previsível a identificação com um construído modelo único de leitor e em que a pluralidade dos leitores suavemente se encaixa falseando a sua autenticidade e singularidade pessoal, em prol de formatados prazeres ou passatempos pouco exigentes. Em poucas palavras, trata-se de leituras rasas, rentes às vividas rotinas quotidianas sentimentais ou outras, a que o leitor se submete alienando-se da sua própria complexidade e do seu poder de autodescoberta.
Assim, leitores adultos alheiam-se de pôr à prova a leitura de emoções, sentimentos, sim, mas na grandeza literária de um desses sublimes romances como por exemplo Gente Feliz com Lágrimas de João de Melo. Não procuram a experiência do estranhamento, da confrontação, do alargamento do seu mundo de referências que a leitura de, por exemplo, Conversa na Catedral de Vargas Lhosa suscitaria no seu imaginário.
Sob o pretexto de falta de tempo, de paciência e até de gosto pelo que é de produção antiga, demorado, trabalhado, muitos leitores ou possíveis leitores respondem, à fraquíssima probabilidade de lerem um desses grandes romances, com a afirmação de um gosto e capacidade externamente formatados para eles e para todos, para quantos mais melhor. E, por um movimento que quase pode parecer de orgulho, os grandes romances, os grandes clássicos universais, obras-primas, retiram-se da possibilidade de qualquer encontro. Claro que não é orgulho, é perda, na agressiva competição de atrair os leitores para o gesto de compra e, talvez, de leitura. A viciosa massificação do gosto e do desejo e a subserviência às tendências dominantes comandadas pelo desígnio de retirar o risco do negócio dos livros fazem quase-desaparecer do alcance do leitor-adulto tudo que não seja fruto da espuma dos dias. Perda considerável!
É, neste contexto, que por vezes ouço advogar a ideia de que é melhor que haja muitos a ler «lixo» do que, como dantes, em que só alguns liam... Então penso que, se há tanta (toda) a gente a afirmar-se contra os atentados alimentares e se ninguém se atreve a dizer que comem porcarias, mas comem, não é como dantes em que havia tanta fome... porque não há de ser a mesma, a atitude perante a leitura? Ler não é um mero divertimento. Ler é um alimento. Ler «lixo» faz tanto mal como comer lixo.
Neste contexto, os leitores consistentes do literário, os grandes leitores das grandes obras literárias, têm um papel a desempenhar entre pares: o papel de abrirem e partilharem as suas experiências de leitura e de alargarem, a rodas de gente, as conversas, os comentários, as citações, os pensamentos e os sonhos suscitados por essas leituras. E é assim que, no intuito de alcançarem estes desígnios, se formam comunidades de leitores.
As comunidades de leitores são naturalmente uma coisa simples: gente que leu o mesmo livro e se reúne para debater as leituras que desse livro fez. Coisa simples, mas altamente atuante e produtiva quer para o leitor que coordena e modera quer para os leitores que a elas acorrem. Acorrem por motivos vários: o gosto de se mostrarem como leitores, de falarem dos livros e dos seus habitantes; a necessidade de romper o cerco comercial e acederem a referências e a propostas de leitura de obras que não estão visíveis nem ao alcance, na montra geral.
As comunidades de leitores têm a virtude de porem em voz e em prática aberta, a natureza da leitura, a plural qualidade dos leitores, e de desmontarem pretextos que arredam as pessoas da leitura. Decorrem em lugares que se tornam de convívio pela leitura e criam um tempo próprio — contíguo mas não miscível nesse outro tempo manipulado pelo viver atual que parece arrasar qualquer veleidade de ler em extensão, em complexidade, em continuidade.
As comunidades de leitores criam elos e sentimentos de pertença cujo cimento é a leitura. O ser humano é genericamente gregário e oferecer-lhe a oportunidade de se agregar por via dos livros e das leituras é inserir, no seio de um grupo de gente adulta, o desejo de ler cada vez mais e melhor. Note-se que digo agregar-se, mas não igualar-se ou alisar-se por uma qualquer rasoira mais ou menos qualitativamente elevada, já que, em leitura, a singularidade é marca de genuinidade. Nenhum leitor se confunde com outro e nenhuma comunidade de leitores deve servir como lugar de submissão discipular a leituras magistrais.
Claro que há a possibilidade de uma comunidade de leitores ser apenas formada por gente altamente capacitada para fazer e mostrar a sua leitura de obras difíceis, complexas, exigentes, cuja beleza e significado se situam num patamar pouco acessível. E, então, temos um círculo de disseminação de inteligentes lampejos, de sensibilidades refinadas, de descobertas surpreendentes suscitados pela leitura de obras-primas.
Sim, mas, numa comunidade de leitores que tenha a vocação de fazer crescer e estender a leitura entre gente adulta, é muitíssimo profícua a mescla de pessoas mais ou menos capacitadas para ler, com gostos de leitura mais ou menos experimentados, com critérios mais sólidos e mais frágeis. É na circulação por ambientes pessoais até desencontrados que as diferentes leituras de um livro abrem caminhos diversificados para o enriquecimento comum. Os vasos são comunicantes, não sendo todos feitos da mesma matéria, tamanho, transparência. A partilha torna a leitura uma coisa que a todos invade e entra, em cada um, segundo o que cada um pode e alcança; atinge, em cada leitor, um nível singular, sim, mas também já marcado pela influência dos seus companheiros de leitura.
As comunidades de leitores têm programas, funcionam em ciclos, estão ligadas a lugares e integram alguém que tem a função específica de selecionar os livros a ler.
A seleção dos livros a ler balança normalmente entre dois polos: o dos valores e critérios inscritos nos termos da criação da comunidade e que normalmente se identificam com os do seu criador/coordenador; o dos gostos e capacidades — imediatas e de partida — dos leitores que nela se inscrevem. Interceta este balanço um arco de convicções e objetivos determinantes da seleção dos livros a ler: desde os clássicos que tempos perdidos remeteram a nichos pouco acessíveis, até aos livros de massas sancionados pelo agrado geral. Há, pois, um terreno de escolha aferido pela distância/proximidade relativas entre dois limites: o limite do grau máximo de qualidade e o limite do banal. Tais limites são normalmente paralelos a outros dois: o da exigência/dificuldade e o da facilitação.
A escolha da proximidade ao gosto mais generalizado e mais banalizado entre os leitores garante uma adesão mais rápida e fácil, uma identificação imediata, mas sonega possibilidades que, sendo menos visíveis e menos conscientes, contudo, interessa fazer brotar.
A opção pela qualidade/exigência/dificuldade, embora corra o risco de menor adesão, garante uma via de acesso, talvez única, às grandes obras literárias universais.
Por mim, penso que a programação de um ciclo de leituras de uma comunidade de leitores — sem prejuízo de aclarar o fio condutor que as fez agrupar — deve alargar-se por variadas paisagens literárias. O que não deve nunca é perder o desígnio de que aquela comunidade foi criada para ali se ler mais e melhor e não para nos deixarmos conquistar pelo best seller do momento.
Na maior parte dos casos, as comunidades de leitores são criadas em ligação com outras instâncias: bibliotecas, livrarias, lugares vários de cultura e de lazer... e, não deixam, como não poderiam deixar de ser, não deixam, dizia, de serem matizadas pelos tons e os reflexos pré-existentes nessas instâncias.
É natural que uma biblioteca, uma livraria, um café, procure visibilidade através da sua programação cultural. Visibilidade que se concretiza na quantidade dos frequentadores e na constância da sua frequência. Outros indicadores, de maior profundidade, não se alcançam à primeira vista. Ora, este desejo de conquistar presenças pode, só por si e como em qualquer outra atividade, sobrepor-se ao que deva ser a alma de uma comunidade de leitores: lugar único de encontro, de descoberta, de acesso e ganho cultural dado pela partilha da leitura de livros que ali nos é dado ler e ali procuramos.
Uma comunidade de leitores não deve aplanar-se, alisar-se pela fasquia do que está à mão de semear; deve sentir-se, julgar-se, como lugar privilegiado de acesso a livros que se diferenciam por acrescentarem, ao plano do que ouvimos referir na voz pública generalizada, um grão de estranheza, um impulso de elevação, o entusiasmo novo de uma descoberta.
Que, a uma comunidade de leitores, se não vá apenas para somar leituras, mas para nos transformarmos enquanto leitores!
Muitas das comunidades de leitores existentes são de cariz mais ou menos institucional e, por isso mesmo, têm capacidade acrescentada de recrutar recursos materiais e pessoais que, por serem renomados, atraem. É um caminho.
Há também outras que derivam mais naturalmente do ato de ler. Estas são resultado de uma vontade-iniciativa de um leitor que faz alastrar a sua leitura de um livro — de muitos livros — e a organiza de modo a partilhá-la à mesma hora, no mesmo local e no mesmo tempo, com um grupo de pessoas que, a partir do silêncio inicial, ergam as suas vozes de leitores, se irmanem ou confrontem na partilha da leitura. Sem mais enfeite. Sem mais enfeite, porque penso que a leitura só tem a ganhar se se mostrar em natureza, tal qual é.
As comunidades de leitores são leitura: substantiva e comum.
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