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scriptorium

"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Segunda-feira, 16.07.18

ELES NÃO CONSEGUEM LER OS MAIAS

Os-Maias.jpg

    Não é não querem, é não conseguem, o que se ouve. Rapidamente, aludem-se as causas e ouve-se, então, falar de factores distrativos ou substitutivos, como a Internet, as redes sociais, a preguiça favorecida pela contextual facilitação, a agitação da vida atual que não se compadece com a quietude e o silêncio da leitura... Perante estas alusões, ponho-me a pensar em gente que intensamente se serve da Internet, que convive no Facebook, que venera os seus momentos de preguiça, que vive também na agitada vida atual e, no entanto, lê, lê muito, lê muitos e grandes romances. Sei-o por experiência própria e sei que há muita gente com a mesma experiência. Gente que lê e que sobretudo, quando não lê, lhe sente a falta, tem pena. Porque o problema não é não ler por esta ou por aquela causa pontual ou sazonal. O problema é não ler. O problema não é, numa curva de pensamento, que até pode ser poético, soltar um resmungo de maçada sobre a leitura. O problema é a leitura tornar-se uma maçada, o problema é afastar a leitura como uma maçada. É um erro de perspetiva colocar a leitura em antinomias como ler vs. utilizar a Internet, ler vs. estar no Facebook, ler vs. preguiçar, ler vs. estar presente nos desafios constantes do viver atual. É um erro, porque estas coisas não são comutáveis no mesmo lugar e função. Certo é ver a complementaridade e a frutuosa integração de tudo isso num conjunto cujas partes reciprocamente se provocam. Ler ou não ler não é uma mera questão de ter ou não ter tempo.

    Se eles não leem um grande romance como Os Maias, não é substancialmente por essas causas, é muito simplesmente porque não sabem.

   Eles não sabem, não aprenderam, não foram iniciados nas artes de ler um grande romance.

   Tiveram algumas, ou mesmo muitas, experiências de leitura na infância, sim, uma ou outra experiência de leitura muito fácil na adolescência, sim, mas isso era toda uma outra relação com o livro que não encontrou o caminho para o que agora se lhes pede.

   Múltiplos factores fazem com que ler não seja sempre a mesma coisa e, dentre eles, salienta-se a própria natureza daquilo que se lê. Ler, por exemplo, uma ‘coisa’ ligeira como O Código da Vinci de Dan Brown, em que logo no primeiro curtíssimo parágrafo alguém arranca um quadro da parede do Louvre e logo cai em meio do estrépito de uma pesada grade de ferro que tomba, do estremecimento do soalho e do alarme que toca... é muitíssimo diferente de ler um grande romance como, por exemplo, O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e, ao primeiro passo da leitura, estar sob uma mansa e velha jaculatória em latim (Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.), no seio de uma família que, doméstica e pacatamente, acaba de rezar o terço.

   Mas eles não sabem, não aprenderam a saber, nada disso. Não sabem como suspeitar da riqueza de imaginárias vivências exaltantes, a serem reveladas mais adiante, que esse princípio em tom de reza encerra. Não sabem e desistem.

   Põem-lhes nas mãos Os Maias e dizem-lhes agora lê.

   Como se ler fosse, indeterminada e simplesmente, seguir palavras umas atrás das outras. Como se ler um livro fosse só começar na primeira palavra e ir sempre seguindo até à última. Como se não houvesse a arte de ler cujo domínio se pode sempre ir enriquecendo. Como se ler um romance, com gosto e saber e proveito, não fosse toda uma sabedoria que a experiência continuada da leitura nos dá.

   Mas eles — que, da experiência da leitura, se se lembram, é «daquelas páginas em que uma maçã ia sendo desenhada com várias cores e...» ou daquelas histórias que não saem da espiral de cenas espetaculares, de golpes de magia, de surpreendentes missões em série, apoiadas/combatidas por campos opostos que se digladiam até ao fim — eles que estão completamente imersos no choque audiovisual, ao embate no primeiro longo parágrafo descritivo do romance de Eça de Queirós, param e rejeitam.

   Param, porque não estão a ver para que serve aquilo das primeiras páginas. Não estão a ver para que é que aquilo serve nem em que é que aquilo vai dar. Não sabem sopesar o seu valor relativo e estratégico. Sem capacidade relacional experimentada na leitura de histórias densas e extensas, pensam aquilo em bruto, em absoluto. Não lhe veem o encaixe para novidades futuras. Aquilo imobiliza-os como se fosse uma coisa imutável, como se o livro fosse ser todo assim. E, como aquilo, só por si, não os atrai, não dizem maçada, porque não têm o hábito da palavra, dizem: — Seca, chatice. Os Maias são uma seca.

   Eles, infelizmente, não são fruto de um continuado acompanhamento das progressivas exigências das leituras, que naturalmente lhes iria pedindo a sua progressiva idade. Não souberam encontrar o caminho sozinhos — são sempre poucos os que o fazem — mas também ninguém lho mostrou, pelo menos com eficácia. Não fizeram, depois das leituras da infância, aquisições experienciais que pudessem redundar, chegada a altura, em saber ler uma história extensa com muitas personagens e lugares e com diversificadas ações e com passagem demorada do tempo e com transformação complexa das emoções. Tudo isto organizado segundo uma estratégia e uma linha articuladora que dá a cada momento, a cada sequência, um valor relativo na pluralidade de todos os outros e no global significado da obra. Olham para o romance como um amontoado de palavras que terão de ‘encaixar’. Impossível! Impossível, sim. Eles não sabem que ler um romance, é estar sempre a pôr hipóteses, a antecipar, a fazer perguntas, a desconfiar: — ... mas que é que vem agora cá esta fazer? — ...mas porque é que me levam agora para esta terra? — ... mas porque é que de repente há uma mudança assim? Ninguém lhes ensinou que a arte romanesca está cheia de ardilosos indícios; que, em cada momento, o romance não diz tudo desse momento; que o romance não se vaza sobre o leitor como um saco cheio da história; que, ao leitor, compete desconfiar do que lhe vai sendo servido, acreditando, sim, em segundas e terceiras intenções.

   Alguém que até aí só leu as simples historietas infantis e outras coisas com semelhante simplicidade e linearidade, é completamente inocente perante os ardis da grande arte romanesca.

   Dão-lhes Os Maias para as mãos e dizem agora lê.

   E daí lavam as mãos. Até ao momento de lhes terem de fazer saber que o Dâmaso é uma personagem-tipo social, que a infância de Carlos é contada em analepse, que o Jantar no Hotel Central é um quadro de crónica social, que a cor dos olhos de Pedro, as parecenças de Carlos com a mãe de Maria Eduarda e tal e tal são omina, indícios de tragédia. Mas eles não sabem verdadeiramente quem é Carlos nem Dâmaso nem Pedro nem Maria Eduarda, nem o que é o Hotel Central! Não sabem, porque não leram. Mataram a leitura com ilegítimos resumos em que a estratégia narrativa original é totalmente desmembrada para ser alinhada na mesa de morgue que esses resumos são.

   A história alisada numa sequência linear, ah, isso eles sabem ler! É só o que a sua experiência — ou inexperiência — de leitores lhes permite.

   Assim, matando a leitura do romance, eles sabem ler.

   Ninguém lhes disse que ler um romance é ir tendo nas mãos e ir seguindo um mapa do tesouro; que toda a grande intriga tende a esconder um mistério de que é preciso ir desconfiando. Ninguém os alertou para que, se Eça de Queirós optou por abrir o romance com abundante descrição de Afonso no seu palacete, tudo pronto, tudo belo, tudo habitado de esperançosas expectativas, é dever do leitor sábio desconfiar da permanência de tão luzida cena. Ninguém lhes disse que, se forem espiar o romance lá para perto do seu fim, hão de encontrar o mesmo cenário em tom de ruina física, estética, moral. E que a sua função de leitores é a de descobrirem o caminho entre a sombra da luz e a luz da sombra. É a de descobrirem que aquele romance, Os Maias, é afinal o romance da destruição dos Maias, da destruição moral dos Maias. Ninguém lhes disse que a sua função de leitores é a de lançarem a si mesmos o alarme: — Como vai ser possível destruir este potentado de firmeza e esperança que é Afonso e a sua vida no Ramalhete? — Quem o fará? — Como? — Com que consequências? Ninguém lhes disse que, alvoroçados por estas incríveis hipóteses, a cada nova personagem, a cada novo encontro, os taxarão de suspeitos de cumplicidade na destruição do prestígio dos Maias, da família Maia, e lhes seguirão no encalço. Porque ninguém lhes disse que ou a situação inicial permanece e não há romance ou, se há romance — e ele está ali para ser lido — aquela luxuriante situação inicial, minuciosamente descrita nas primeiras páginas, tem o fim encomendado e é promessa de destruição. Que curiosidade tão embotada que não se deixe espicaçar por ir ver o desastre?! E que não goste de ficar a discutir o desastre? Quem foi o culpado quem foram as vítimas?

   Esta orientação, se a houver, será também um impulso para levar cada leitor a, naturalmente, ir estendendo a história da sua própria leitura a outros leitores, partilhando interrogações e descobertas, sentindo-se parte do cacho de leitores do mesmo livro. Lê-lo poderá ser, então, sentir a emoção de uma forma de pertença: a de, pela leitura, vir ocupar um lugar de proximidade àquele clássico já tão lido em tantos tempos e lugares e por tão diferentes leitores.

   O leitor experiente sabe que o autor não dá ponto sem nó, sabe que há uma pedra no sapato de cada momento da história que nos conta. Sabe que, sem mal, sem sofrimento, não há romance. Sabe que até a boa alma do Júlio Dinis teve de forjar alguns conflitos entre as boas almas das suas personagens para conseguir armar as suas histórias em romance. É preciso dizer-lhes que eles, leitores d’Os Maias, são os donos de perguntas como estas, desconfiadas e até movidas por alguma maldadezinha de leitor: — Vamos lá ver, Carlos da Maia, «distinto e brilhante sportman», viajado e culto, oriundo de boas famílias, como é que te aguentas nesta pasmaceira hipócrita de Lisboa...?

   É preciso dizer-lhes que, se a extensão das sequências iniciais estiver a incomodar a sua curiosidade, porque não saltar, porque não folhear umas páginas e encontrar-se de repente com um suicídio, o de Pedro, e pensar aqui há gato; descobrir a negreira Maria Monforte; rir-se de um bajulador insuportável e ridículo chamado Dâmaso...

   É preciso dizer-lhes que é sempre preferível encontrar razões para voltar atrás do que ficar nas razões para não andar para a frente.

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Maria Almira Soares às 14:03


17 comentários

De Anónimo a 17.07.2018 às 14:00

Brilhante! E tão útil!

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