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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
O olhar que periodiza a produção literária estabelece e atribui lugares e denominações fundamentados numa lógica de afinidades/distinções. A missão desse olhar traduz-se por reconhecer diferenciações que instituem movimentos de mudança e de prosseguimento histórico e por identificar afinidades que estabelecem, definindo-o e preenchendo-o, o perímetro dos momentos, das épocas, dos períodos, cuja sucessão constitui esse prosseguimento histórico. O seu privilégio de olhar panorâmico ou, se quisermos, a sua possessão de todas os elementos do puzzle, leva a uma falaz estratégia organizativa que se cumpre no encaixe de todas as peças disponíveis, sem prejudicar a inteireza de um eixo compreensivo de uma visão global da história da literatura. Assim, vai repetindo, em sucessividade, os precursores, os representativos, os epígonos/os precursores, os representativos, os epígonos... Às vezes, sobram-lhe dúvidas acerca do encaixe de peças menos óbvias. Esses casos, mais difíceis de integrar na rede definida, acabam por tornar necessário um afã analítico criador de situações contemporizadoras com a coexistência de marcas que, na ausência de tal necessidade, seriam consideradas mutuamente excludentes. Trata-se, de um modo geral, de peças cujo perfil e tom próprios apresentam um carácter marcadamente distintivo, dificultador da identificação de pontos de contacto com outras peças do puzzle. Todavia, sob a necessidade de se lhes arranjar uma posição — pois que não é admissível descartar da História, ou da ideia organizadora da História, o que quer que seja e muito menos obras significativas no processo sociológico da valoração literária — procuram-se e, numa segunda escolha naturalmente menos exigente, tomam-se como bons alguns sinais de contiguidade. É, então, que, as mais das vezes, se dá, a esses autores, difíceis de periodizar, o apelido de autores de transição. Ou seja: atribuem-se-lhes as simultâneas funções de prestimosos transportadores, ainda, do que foi a glória e o brilho daqueles que a cronologia tornou implacavelmente anteriores, e de inevitáveis habitantes temporões de uma posterioridade, onde outros, mais atrasados no nascimento, hão de vir plantar-se com um brilho e uma glória diferentes. Ora, entre um brilho e uma glória do passado e um brilho e uma glória do futuro, como não nos hão de aparecer sofrendo de alguma palidez, esses a cuja historicidade o adaptativo e pouco exigente conceito de transição dá cobertura? A verdade é que, com mais simplismo ou com menos simplismo, a missão dos organizadores da história literária ficará assim cumprida e todo o tempo ficará assim ladrilhado.
Com esta designação de autores de transição — classificação artificial, pois, no rio do tempo, não há salas de espera em que as águas passadas entrem em conversações com as águas futuras antes de continuarem o seu caminho; no rio do tempo, seja qual for o perfil dos que nele navegam, tudo é transição — com essa designação, dizia, evita-se a turbulência que a verdade literária desses autores provocaria na verdade literária estabelecida como estando a decorrer ao momento da sua entrada no tempo. Evita-se a falência dessa estratégia ladrilhadora.
Porventura algum olhar mais agudo vislumbra, na generosa cobertura dada à singularidade de certos autores pelo conceito de transição, atrito e vazio em vez de coerência?! Porventura algum olhar menos contemporizador, mais irritantemente implicativo, mais parecido com o da criança do conto de Anderson que se não deixou induzir pela voz comum, resolve fixar demorada e atentamente a árvore e vê que ela, a árvore, é espécime raro, irreconciliável com a berma das florestas onde a querem ver plantada?! Mas, sim, claro, pode até ser, mas, vá lá, olhem que há ganho organizativo no desfocar o olhar dessa possível singularidade, afundando-a complacentemente sob o imperioso fluir de igualdades que se vão naturalmente desentranhando em diferenças, contrapõem os periodologistas. Vá lá, não se deixem atrair por fúteis rigores na aplicação do argumento da pertença; vá lá, deixem-se levar pelo prestável argumento da transitoriedade e vede-os, a esses autores, como lugares em que nada está, tudo transita — dizem ou pensam os ladrilhadores da História.
Pode, porém, acontecer que esse olhar — um olhar estudioso — não se deixe convencer. Insista. Demonstre que, nas palavras usadas para a construção da ideia de autor-transitário-de-correntes literárias, é muito precária a correspondência com os pretensos conceitos. Verifique tratar-se de mero nominalismo. Pode acontecer que — perante o contra-argumento de que, precisamente, o termo transição implica diluição do rigor concetual e de que a solução aplicada tem a vantagem de resolver o magno problema da periodização desses autores — esse olhar implacavelmente estudioso denuncie o consequente e inaceitável prejuízo assim infligido à valoração da obra dos autores classificados como de transição.
A palavra transição é, de imediato, conotada com a ideia disfórica de transitório, que faz, desses autores, entes literários fugazes, uma espécie de intermediários descartáveis, com fraca — ou se quisermos, leve — personalidade própria, quando, ironicamente, é de escritores com uma individualidade fortemente distintiva que se trata. E mais se acentua ainda este efeito, quando a sua duração biográfica é, ela própria, fugaz; quando, por isso mesmo, esses autores ficam impedidos de darem desenvolvimento a uma produção literária tão rica quanto a obra produzida garante como esperável. Eis a grande ironia: autores que poderiam ter fornecido outro caminho interpretativo do devir instituído (quase sempre por dicotomia), que poderiam representar, digamos, uma terceira via, acabam soterrados sob o império da rotulagem histórico-literária estabelecida.
Aí pelos meados do século XIX, a periodização da história da literatura portuguesa procura criar um tempo em que ainda reverberaria o etéreo idealismo do havido Romantismo e se cavaria já o plantio do Realismo a haver. Transição, pois. Perante uma obra literária desse tempo em que se vislumbre uma qualquer idealização do real, essa periodização não hesita em identificar tal idealização com o conceito de idealismo romântico; perante a presença, nessa mesma obra, do gosto pelo pormenor descritivo de situações realmente observáveis, não hesita em identificar tal gosto com o conceito de realismo que há de vir a ser o eciano. E, assim, em obras publicadas nessa época, avessas a um encaixe perfeito em qualquer um desses dois movimentos, se reconhece a copresença do pretérito romantismo e do futuro realismo passando, et pour cause, a classificar os seus autores como autores de transição.
Eis o que se passa com Júlio Dinis.
Júlio Dinis, autor de transição entre Romantismo e Realismo?!
A questão é que há aqui um grande problema ou vários grandes problemas.
Um dos problemas é que não é legítimo referir ao idealismo romântico toda e qualquer perspetiva literária idealizadora dos factos da vida. Por exemplo, aquela em que, de um modo bastante fantasista, se crê no êxito da motivação amorosa e na aniquilação do conflito — esse conflito entre a razão do coração e a moral social, que era irredutível e mortal no Romantismo — através da fácil eficácia de gestos de concertação financeira e social, frios, lógicos, diplomáticos, contabilísticos até. Como acontece em Uma Família Inglesa. Por exemplo, aquela em que, num irrealista estalar de dedos, esse tal conflito entre sentimento e conveniência social, que era mortal no Romantismo, se evapora numa girândola de harmonia, de felicidade, de progresso, de promessa, posta em figura de casamento-final-feliz. Como acontece na generalidade dos romances de Júlio Dinis.
Que há, em Júlio Dinis, idealização da realidade, há. Incontestavelmente. O que não há, absolutamente, é idealismo romântico. O idealismo romântico é irreconciliável, por exemplo, com as manobras de índole social e financeira que a personagem de Jenny tão brilhantemente idealiza e tão espantosamente concretiza para transformar o amor de Carlos e Cecília em casamento e, simultaneamente, conseguir as boas graças, a aceitação, mesmo o aplauso da sociedade.
Trata-se de uma idealização otimista que, com o grau total da rápida eficácia do seu afã anulador dos obstáculos no caminho dos que se amam, chega a ferir ritmos de verosimilhança.
Não se trata, do romântico idealismo trágico que embate mortalmente na barreira cerrada dos preconceitos e conveniências sociais.
Não há, em Júlio Dinis, o carácter radical da moral romântica, do herói romântico, que prefere a morte a qualquer condescendência à moral social. Nas soluções das intrigas romanescas dinisianas, nos desfechos dos seus conflitos, contrariamente ao que os advogados da transição aduzem, não há Romantismo.
Outro problema é que não é legítimo afiliar no positivismo realista nem todo e qualquer apego ao descritivismo minucioso de espaços reais nem, só por si, a presença de perfecionismo na construção ficcional de personagens típicas com correspondência na realidade. Por exemplo, o descritivismo de quadros rurais e a composição verista de figuras típicas observáveis no real, existentes em romances de Júlio Dinis, não assentam em traves-mestras do ideário da escola realista.
Em Júlio Dinis, o gosto/necessidade de idealizar e o talento para descrever e representar comportamentos observáveis na vida têm origem — muito própria, refletida — em convicções e projetos pessoais. Júlio Dinis não é um território literário constituído pela soma de restos de romantismos passados e de indícios de realismos futuros. Aliás, como pode um autor ser, ao mesmo tempo, romântico e realista?! Os movimentos literários não são meras somas de características temático/formais escolhidas por tabela e transportáveis a mobilar qualquer contexto. Uma corrente literária radica num pensamento estético, filosófico, numa mundividência, numa condição histórica. E não sabemos nós como se digladiaram a mundividência romântica e a mundividência realista lá pelos anos em que Júlio Dinis era um jovem e bem-sucedido escritor de romances?! Não parece um absurdo considerar que Júlio Dinis era possuidor simultâneo dessas duas mundividências!? Ademais, como poderia ser a produção ficcional de Júlio Dinis, esse amante declarado da harmonia, fruto de duas correntes literárias que se antagonizavam e se excluíam? Ou será que estamos — vilmente ou levianamente — a subsumir que Júlio Dinis é criador de uma mixórdia inconsequente!? Só porque não nos aplicamos a encontrar, para as singularidades dinisianas, outras razões e nos contentamos apressadamente com a sua suposta colagem a duas vizinhanças, a romântica e a realista?!
Não. Júlio Dinis não é nem romântico nem realista.
Júlio Dinis foi, por si só, não digo uma escola, porque não teve tempo para ter seguidores, mas um caso. O seu pensamento estético e os seus modos de realização literária constituem um caso singular nos anos sessenta e início dos anos setenta do século XIX. Que a ser considerado deste modo, e estudado enquanto tal, enriquecerá o devir da nossa literatura e fará justiça à sua obra.
Conhecer Júlio Dinis e o que escreveu e o que pensou sobre o que escreveu e o como reagiu ao que outros seus contemporâneos estavam escrevendo é saber que não temos aí o excesso sentimental, o sonho, a loucura dos românticos, nem a obsessão de confrontar criticamente os erros da sociedade com a sua irrisão, caricatural e destrutiva, dos realistas. Se há coisa que Júlio Dinis não é, é um radical como são, cada um à sua maneira, o movimento romântico e o movimento realista. Cada um inserido em momentos críticos do devir sociocultural. Júlio Dinis amava a moderação, a contenção, a harmonia. Nas suas obras não se transpõe a linha para lá da qual toda a sua pedagogia, alicerçada na crença no bem como porta da felicidade, seria ineficaz.
Para conhecer um escritor, nada como lê-lo.
Vejamos comparativamente, em quatro narrativas diferentes, o tratamento de um momento típico das intrigas romanescas do século XIX, ou seja, o do momento crítico em que o herói reage perante um contexto que anuncia como impossível a sua paixão amorosa. Talvez, daqui, retiremos senão a convicção pelo menos a suspeita de que Júlio Dinis não é um mero patchworker pelo risco das paisagens literárias do seu tempo, mas representa um modo singular e inovador de fazer romances:
Em Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett (1846)
«Perdido para todos, e para ti também. Não me digas que não; tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não podes evitar do sentir. Eu estou perdido. E sem remédio, Joana, porque a minha natureza é incorrigível. Tenho energia de mais, tenho poderes de mais no coração. Estes excessos dele me mataram... e me matam!»
Em Os Maias de Eça de Queirós (1888)
«– E que efeito te fez isso?
Carlos acendia o charuto. Depois, atirando o fósforo por cima da varandinha de ferro, onde uma trepadeira se enlaçava:
– Um efeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ela morresse, morrendo com ela todo o passado, e agora renascesse sob outra forma. Já́ não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, uma senhora francesa. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memória.... Foi o efeito que me fez.»
Em Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco (1862):
«Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta.»
Em Uma Família Inglesa de Júlio Dinis (1867)
— Vês, Charles, vês o resultado das tuas loucuras?
— Loucuras, Jenny! Pois ainda lhes chamas assim?
— Principio a ter vontade de lhe dar outro nome, principio; e é por isso que venho aqui.
— Que vens fazer?
— Advogar a causa de uma má cabeça, em atenção a um pobre coração, que não tem culpa nenhuma em andar unido àquela estouvada.
— Ó Jenny! — exclamou Carlos, tomando, cheio de confiança, as mãos da irmã.
— Então! Deixa-me, que o pai espera-me. E separando-se do irmão, disse a rir:
— Que difícil papel me fazem representar em toda esta história!
[...]
Jenny principiou a dizer, como se falasse para si própria, mas de maneira que fosse escutada por o pai.
[...] A aliança de Charles com a filha de Manuel Quintino, tendo por explicação somente o afeto dos dois, seria estranha e incompreensível; mas se Manuel Quintino, em vez de ser guarda-livros, fosse um sócio da casa.
[...]
— Meu pai — disse ele, adiantando-se para Mr. Whitestone —, não há́ muitos dias, que pela sua boca ouvi qualificada como infâmia uma ação minha; venho pedir-lhe agora que me deixe usar do único meio que tenho, para evitar que a arguição seja, até certo ponto, merecida.
— Qual é? — perguntou concisamente Mr. Richard.
— Procurar Manuel Quintino e pedir-lhe para oferecer o meu nome, honrado pelo meu pai com uma vida inteira de probidade, a essa menina, que as minhas imprudências, e nunca as minhas intenções, iam sacrificando.
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