Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)
A razão do apego à leitura da história de um crime, narrada em A Sangue Frio de Truman Capote, ultrapassa o domínio do voyeurismo, da catarse de instintos inconscientes, do sentimento de horror perante o impensável, do espanto contido na pergunta «Mas como é que isto foi possível?».
O interesse por esta leitura centra-se, sobretudo, no facto de este romance, ao tomar um crime como assunto central, fazer, desse crime, um lugar de confluência/dispersão de uma série de vidas. Com variável intensidade emocional. Muito mais do que o espaço narrativo dado aos pormenores da cena de um múltiplo assassínio, o escritor representa e, daí, o leitor “vive” a intensidade emocional dessas vidas: trágica, para as vítimas e para os assassinos; tensa, opressora, preocupante, para os polícias, os juízes, os familiares, os amigos, os vizinhos, a opinião pública; desafiante para a arte narrativa do escritor.
Trata-se de ler sobre comportamentos humanos e as condições de vida em que se manifestam; ler sobre vidas que se revelam, que se transformam, que se anulam, em momentos tremendamente críticos como o de sofrer ou perpetrar um crime; o de ser interpelado pela inesperada e enigmática ocorrência de um crime; o de sentenciar e condenar; o de temer, o de chorar, o de se compadecer; o do tormento ou da indiferença perante a consciência do bem e do mal. Neste romance, o encontro entre a frieza violenta dos assassinos e o medo, o espanto, o sofrimento das vítimas é, sobretudo, um revelador de seres humanos inteiros nas suas forças e fraquezas, na sua capacidade de bem e de mal. Mais importante do que dar a conhecer pormenorizadamente um crime acontecido, é abrir-nos, a nós, leitores, os mundos pessoais que, aqui, se cruzam, se sobrepõem, se inter-relacionam. A paleta das emoções humanas meticulosamente narrada é tão próxima da experiência real, quanta a mestria de Truman Capote para alcançar o equilíbrio entre os factos e a sua representação literária.
O crime abre-nos o conhecimento de uma certa América perdida num povoado ignorado do Kansas, nos anos 50 do século XX, Holcomb. Um aglomerado populacional sem nenhum sinal distintivo, vivendo em concordância com parâmetros e estilos de vida estabelecidos, aceites; ausente do espanto e da espetacularidade; sem revolta, sem cansaço, sem tédio; com aceitação/integração total; com sucesso autorreconhecido — é brutalmente confrontado com uma impiedosa exposição. Gente, uma comunidade humana, que para sempre ficaria fechada no seu pequeno círculo de inter-relações pessoais, vicinais, negociais, mesmo criminais, se a literatura não se tivesse apoderado dela. Se um poderoso romance que, esse sim, foi e é notícia internacional — reveladora de muito mais do que o fait-divers, que é o seu núcleo original — a não tivesse contado genialmente.
A genialidade deste romance está sobretudo na suprema arte com que Truman Capote entabula sucessivos contrapontos suspensivos, a partir de duas linhas de desenvolvimento: a das vítimas e seus contextos/a dos criminosos e suas origens, seus mundos, seus caminhos, seus móbiles. Truman Capote tece, entre estas duas linhas, um espaço simultaneamente de vazio tenso e de aproximação gradual, que só o absurdo do crime vai preencher. Antes do crime, em crescendo; depois do crime, em decrescendo. Primeiro somando factos; depois, somando explicações. Até ao esgotamento da matéria narrativa.
A descrição do quadro específico da perpetração do crime revela pateticamente que ali está a decorrer a única forma possível de relação entre dois mundos abissalmente distantes: o da dupla Perry Smith/Richard Hickock tomada de um quase-automatismo assassino irreversível; o da tranquilidade familiar dos Clutter. Uma única fórmula torna resolúvel o aparente ilogismo, o aparente absurdo, do violento encontro entre esses dois mundos, uma fórmula constituída pelas três palavras do título: A Sangue Frio.
Desfeito o nó de interrogações e expectativas que, desde o início se fora atando e apertando progressivamente, exposto o crime, todo esse tempo anterior à sua perpetração se torna fantasmático. Agora, as linhas de desenvolvimento são outras: a da investigação/fuga; a da condenação/defesa. A expectativa continua a ser a da morte, mas a morte agora é outra: não a que irrompe abrupta e absurdamente sobre a vida; mas a que, numa absoluta lógica condenatória, reivindica o cumprimento de um reequilíbrio: vida por vida; morte por morte.
E o romance fecha-se numa impecável arquitetura de cuja resolução nada sobra: a sangue frio.
Se, à partida, a motivação e o cuidado referencial são jornalísticos, nem por isso a obra acabada deixa de ser profundamente literária. Difícil, mas brilhantemente conseguida, é a síntese entre jornalismo e literatura. Assim se dá o passo inicial e inédito para aquilo a que Truman Capote chama, e justamente, o género da não-ficção e a temática do true crime. Criação iniciadora de um novo tipo de romance. Talvez porque nada retira às exigências de cada uma das duas escritas, o rigor jornalístico e o esplendor literário, Truman Capote cria uma coisa nova.
Em mil novecentos e sessenta e quatro, Roland Barthes, nos seus Essais Critiques, usou o mito de Orfeu e Eurídice para estabelecer que a literatura, mesmo sabendo que o real está por detrás dela, não pode olhá-lo de frente sob pena de perder a sua essência de literatura. Em mil novecentos e sessenta e seis, Truman Capote publicou um romance genial em que o real e a literatura estão frente a frente, sem perda da natureza nem de um nem de outro: A Sangue Frio. É assim a invenção literária: um caminho de originalidades sem fim.
Maria Almira Soares
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.