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"Tal como surgiu diante dos meus olhos, a esta hora meridiana, fez-me a impressão de uma alegre oficina da sabedoria." (Umberto Eco, O Nome da Rosa)



Quarta-feira, 04.05.22

LER É MAÇADA?

Maria Almira Soares

Palestra proferida na Biblioteca Municipal de Ovar, no âmbito de «LEIA —Livros, Encontros, Ideias, Autores» — Jornadas da Rede de Bibliotecas de Ovar, em 30 de junho de 2017.

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LER É MAÇADA?

«Ler é maçada»

  Fernando Pessoa, «Liberdade»

«chegou a vender algumas terras para comprar livros [...] passava noites e dias sem dormir, a ler [...] Assim cansou o cérebro de tal maneira que podiam tomá-lo por tolo.»

Cervantes, Dom Quixote

 

    Estou aqui para vos falar de leitura. No entanto e uma vez que leitura é uma palavra de significado amplo e variado no uso que dela se faz, quero começar por esclarecer em que sentido vos vou falar de leitura e que recorte estou eu  a fazer na amplitude e variedade do seu significado, quando vos falo de leitura.

 Então...

... falo-vos de ler como algo que faça parte da consistência da vida de alguém. Falo-vos, também, de ler como ler literatura: contos, poemas, romances, novelas, etc. Em qualquer idade. E existem leitores consistentes, ou seja, aqueles para quem a leitura é uma necessidade vital, em várias idades. Existe literatura, ou seja, o texto que é fruto da criação do imaginário de um autor, para todas as idades.

Escolho este sentido e este recorte, porque considero que é, nesta aceção de ato consistente de ler o literário, que a leitura atinge a qualidade de factor fundamental de humanização, de reconhecimento próprio e íntimo e de crescimento cultural.

Quando falo de leitura é, pois, este o tema, que tenho em vista.

   Sobre este tema, muito tenho pensado e refletido, quer sobre a minha própria experiência e a memória que dela tenho, quer sobre os discursos vigentes maioritariamente acolhidos ou qualitativamente chancelados por figuras de autoridade nesta matéria. E alguma coisa tenho lido também. Fruto de tudo isto, têm-me nascido algumas ideias. Nem todas pacificadoras ou imediatamente entusiasmantes. Algumas que me perturbam, até, mas que, achando-as legítimas, penso que devo partilhar. Por isso, a partir dessas minhas ideias, construí este texto que aqui vos estou a ler, um pouco temerariamente confesso.

Então...

   Fernando Pessoa, num poema intitulado LIBERDADE, diz que «ler é maçada». Fico perplexa? E, na minha perplexidade, exclamo qualquer coisa como isto: — Ah! — Não é possível! — Não é possível que Pessoa tenha escrito isto... Então, mas afinal... ?

Não, não penso que seja esta, a minha reação.

É que nem por um momento duvido do currículo de leitor de Pessoa e da importância que teve a leitura para que ele tenha sido quem foi. E nem por um momento penso que Fernando Pessoa foi quem foi por obrigação entediante.

Não foi.

E é, precisamente por isso, porque foi tão genial a ler como a escrever, que pôde, sem má consciência, proclamar, num poema tão exultante como um hino à liberdade, a maçada de ler. Pessoa sabia ver com extrema lucidez a pluralidade de contrários que uma só coisa em si encerra.

A afirmação de Pessoa «ler é maçada», ao confundir-nos por um instante pouco atento, logo ilumina, certeira, o cerne da questão que até aqui me traz  e a pergunta importante que me suscita é esta:

 — Como chegarmos, e fazermos outros chegarem, a este plano, a este estatuto de leitor, tão livre, tão seguro de si e tão natural, que nos permita, sem medos nem preconceitos, fazer da leitura a metáfora do que é maçador, num poema em que se canta uma liberdade tão radical?

— Como chegarmos aí, a esse estatuto de leitor, nós os que lemos, e levarmos connosco outros, outros que não leem, outros para quem ler ainda não seria outra coisa senão maçada? Ou seja: como mostrar a leitura como um bem tão seguro e tão natural, um gosto tão necessário, uma coisa tão impossível de não ser nossa, que até nos podemos dar ao luxo de a associar à ideia de maçada? E, sobretudo, como enraizar a leitura em camadas profundas da nossa maneira de ser e estar, como coisa tão necessária, segura e natural, que não se perca, apesar dos contextos que teimam em fazer com que a percebamos como uma maçada?

Estou convicta de que só encontraremos respostas satisfatórias, ainda que incompletas, para estas perguntas, se formos sempre refletindo muito atentamente sobre a forma como nos empenhamos em atingir estes desígnios.

Certamente que todos que aqui estamos — professores, bibliotecários, pessoas leitoras enfim — queremos fazer amadurecer em nós e nos outros — sobretudo nas crianças e nos jovens com quem, neste âmbito, deliberadamente interagimos — um gosto da leitura que seja perdurável, uma vontade de ler que fique connosco, que não se restrinja a ser, nas nossas vidas, um episódio ou uma fase. E assim o fazemos, mas...

Talvez valha a pena darmos alguma atenção a um mas, a alguns mas, que aqui vou interpor como matéria para reflexão.

     Já sabemos que tudo em nós começa na infância e, bem assim, a nossa educação de leitores. Sabemos, também, que numerosas atividades educativas das crianças leitoras têm vindo a ser desenvolvidas. Fruto da minha experiência e do que vou testemunhando, não tenho dúvida de que é intensa a vitalidade do envolvimento das crianças nesse tipo de atividades.

Mas...

Sendo intensa, essa vitalidade, será, em muitos casos, perdurável?

Para tentar responder a esta questão, de ter ou não ter consequências perduráveis, essa crescente pujança da leitura na educação infantil, talvez valha a pena refletir um pouco sobre o que seja educação:

A educação (em todas as áreas e na área da leitura também) é um processo que se desenvolve por etapas de sucessivas aprendizagens. Para que não seja efémera mas efetiva, a educação vai sendo sempre um processo de resultado em parte diferido, de resultado não cabalmente imediato; em cada momento, deixa sempre em aberto algo de ainda não-aprendido que aponta para o futuro. É isto que a torna perdurável. Não será perdurável, se uma autossatisfação cabal encerrar cada etapa da sua prossecução, como acabada em si mesma sem fermento de futuro. Para ser perdurável, há de deixar em aberto uma margem de insatisfação. Em educação, a sensação-experimentação-memória de que sobrou alguma coisa de que ainda não sou capaz é preciosa para o meu desenvolvimento futuro. Esta sensação de dificuldade não significa rejeição, mas promessa e desafio. Assim, também, no que diz respeito à educação do leitor.

Ou seja, em palavras mais simples e diretas: — se, cheios de boas intenções de obtermos sucesso imediato, fizermos com que a leitura seja, perante as crianças que queremos educar como leitores, apenas aquilo de que elas imediatamente gostam, aquilo que se integra, sem diferença nem atrito, no seu natural mundo sensitivo de criança, teremos o sucesso imediato garantido. Elas vão gostar. Elas vão querer.

Mas...

Serão, esse gosto, essa vontade, perduráveis?

Eu sei que, com estas implicativas dúvidas, em tudo pareço ir contra a estimulante corrente das múltiplas atividades de educação de leitores infantis, em vigor e em voga. Mas não. Espero não aparentar que estou contra a ideia de que a cultura do apego à leitura deve começar na infância. Que, aí, se deve apostar e muito. Não, de modo nenhum. A minha intenção não é essa, mas a de ir contra o que me parecem ser alguns equívocos. Uma vez que, como disse atrás e todos sabemos, é na infância que tudo começa e a leitura também, o que verdadeiramente me preocupa é que comece bem para que continue bem.

Preocupa-me, por exemplo, verificar a existência de casos, talvez muitos casos, em que infâncias aparentemente conquistadas para a leitura dão em adolescências de abandono brusco ou progressivo e em juventudes que desembocam na aridez de vidas adultas que não leem nem um livro por ano. Entristece-me verificar, durante encontros que tenho tido com jovens, em escolas, a complacência, a aceitação de braços caídos de inevitabilidade, perante a realidade de muitos e muitos, quase todos, desses que foram crianças leitoras muito animadas senão entusiasmadas com a leitura, se revelarem quase fisiologicamente incapazes de ler... Os Maias. E tento articular entre si estas duas realidades exemplificativas: gostar de ler em criança e ser, em jovem, incapaz de ler Os Maias. E saltam-me algumas perguntas a que procuro responder: — Que gostar era esse? — Que incapacidade é esta?

Sou, então, tentada a encontrar respostas como estas: Ler foi para eles apenas uma coisa da infância. Naturalmente, crescer foi, neles, deixar para trás as coisas da infância, entre as quais, esses livros, lindos, em que quase tudo era desenho, objetos nostálgicos de que se lembram com um sorriso, como doutros brinquedos que tiveram, e que, para eles, nada têm a ver com a vontade, a curiosidade, que poderiam ter, de ler um livro como... Os Maias. E que leitores triunfantes muitos deles foram na infância! Os triunfos imediatos esgotam-se em si mesmos e tornam-se, talvez, mais coisa de registos estatísticos do que de ganhos humanísticos.

Conheço muitos casos destes. Fui  e vou conhecendo. Pessoas que, na infância leram os seus livrinhos, mas, agora, não têm tempo, não têm dinheiro, não têm oportunidade. O que têm é muitas desculpas. Desculpas para não ler, para ler muito pouco, quase nada, para estarem desatentas dos livros, para só lerem livros breves, leves, muito iguais a si e à sua vida, muito escritos a correr, e, o pior de tudo, para não terem vontade de ler, não sentirem necessidade de ler, não sentirem a falta da leitura quando não leem, para enfim, não poderem falar, como Pessoa, dessa fantástica «maçada» que é estar e simultaneamente não estar quieto com um livro entre mãos e sob o olhar. Muitas delas, são pessoas para quem a leitura ficou cristalizada na bela prateleira dos livros de infância. Ficou aí fechada. Como a arca nostálgica onde guardaram os brinquedos.

Mas, de facto, a leitura, não sendo maçada, também não é um brinquedo.

Ser leitor em criança é muito bom, ter livros por perto em criança é muito bom, mas tem de ser uma coisa que se enraíze e produza sementes de futuro.

Penso nisto, procuro razões e atrevo-me a perguntar: — Será que isto acontece porque, um dia, quando eram crianças, no intuito bem intencionado de se corresponder à cabal satisfação do seu desejo infantil, a leitura lhes foi apresentada demasiado como um brinquedo, como um jogo? E, por isso, não chegaram a experimentar a razão daquela poética coerência de Pessoa, ao atirar a leitura como metáfora contra uma certa ideia radical, e até um pouco caótica, de liberdade? Não chegaram a experimentar suficientemente isso a que a metaforização pessoana chamou maçada? Que maçada era, essa, que não experimentaram e que talvez fosse, afinal, o verdadeiro domínio do truque necessário, a face sonegada da magia? Não foi suficiente que tivessem assistido aos passes da magia da leitura que outros tão bem para eles prepararam; teria sido necessário que tivessem tido a repetida maçada de, uma e outra vez, tentarem eles próprios fazer o truque, mesmo que — ainda atrapalhados, ainda pouco destros — a coisa não corresse na perfeição...

Penso que a montagem de um cenário excessivamente lúdico, intencionalmente facilitador da adesão à leitura, pode correr o risco de encobrir a descoberta desse outro prazer nem sempre fácil, o do contacto pessoal com a autenticidade de um livro.

Outras formas de facilitação da leitura na infância poderão ser também causa do problema que estou a considerar: a escolha da excessiva simplificação do próprio livro... a restrição do seu vocabulário àquele que é garantidamente já conhecido das crianças... a retirada total da frase longa cujos meandros exigiriam percursos de atenção mais complicados... a negação de lugar, na intriga, a mais uma ou outra personagem que viria complicar o acompanhamento da história... a  invenção de um caminho excessivamente curto para o desenlace... ou até de desenlace nenhum, em prol da opção por um contínuo enfileiramento de situações engraçadas e coloridas... Em suma, a opção por um esforço de simplificação excessiva na composição de histórias infantis.

   Todos sabemos que, com as crianças, esta coisa da leitura, pura e dura, pode não ser fácil, pode nem sempre correr bem. Todos estamos conscientes de que não há, no contexto nem no histórico da vida portuguesa, grandes factores propiciatórios da leitura. A consciência destas realidades pode levar-nos a desistir de, improdutivamente, tentar ainda forçar esse contexto e esses factores, passando, pelo contrário, a adaptar-nos a eles, passando a fazer algumas cedências. Somos sensíveis à agressividade da competição com tantos outros objetos de desejo por parte das crianças; somos tentados a entrar em competição com tantos focos de entretenimento que por aí andam e, até,  a inseri-los no seio de atividades de leitura.

   Mas a verdade é que ler é uma coisa muito diferente de assistir à projeção de um vídeo, de jogar um jogo de computador, de manipular outros objetos de entretenimento semelhantes, reais ou virtuais. E, sobretudo, a leitura não é puro entretenimento. A leitura precisa mais de nós, pede-nos mais. Tem, a mais, esse tal quid da «maçada» pessoana de precisar profundamente de nós. Não apenas para saber distinguir os botões em que carregar e, depois, manter os olhos abertos e os ouvidos focados. Ceder a estas realidades contextuais poderá levar a muitas batalhas ganhas, na infância, mas sou muito levada a pensar que, em muitos casos, essas vitórias darão numa futura guerra perdida, no que à leitura de clássicos fundamentais da literatura universal diz respeito.

   A boa intenção de evitar às crianças a experiência da tal maçada, as bem intencionadas estratégias motivadoras, determinadas pela antecipação de um temido fracasso, o receio de que um livro menos facilmente acessível ou, só por si, fisicamente modesto, composto quase só de letras negras sobre o branco do papel, seja liminarmente rejeitado, pode levar ao uso excessivo da ornamentação da leitura com coisas mais vistosas, mais agitadas, mais coloridas: coisas cénicas, audiovisuais, gestuais, lúdicas, muito originais como ir para a biblioteca de pijama dormir com os livros, fazer livros com cheiro, fazer livros sem palavras, livros com feitios estranhos, com aspetos exóticos, que sei eu... E, quando se trata de idades mais avançadas já com outras necessidades, desejos e angústias, esse mesmo tipo de estratégia pode levar a estranhas sloganizações prometendo que a leitura é a cura para todos os males...

  Parece-me haver um excessivo e, por vezes, pouco ponderado proselitismo, no afã atual de divulgar e propagandear a leitura. Eu não digo que se desista do desígnio fundamental de incrementar a leitura. Eu não digo que não se possa relacionar a leitura com a fruição de outras artes. O que eu temo é que, neste pedido de socorro a outras artes (e muitas vezes não são artes), para chamar a atenção para a leitura, haja uma excessiva tendência para esbater o que de facto é ler e uma certa perda de critério de exigência de qualidade e de sentido de responsabilidade para com o futuro dos pequenos leitores que nos empenhamos em motivar.

Por vezes, (muitas vezes?) olha-se um livro, que poderíamos ir ler a ou com crianças, e interiorizam-se ou exteriorizam-se apreciações como: tão grande, tão volumoso, sem figuras, com tantas palavras, sem cores... E, daí, procuram-se sucedâneos, companhias, que o tornem ligeiro, colorido, agitado como achamos que as crianças gostam...

Mas...

Será que nunca ninguém leu uma história lindíssima num livro que não devia lá muito à formosura? Eu, já.

Desculpem, mas tenho de perguntar, ainda que a pergunta seja tão-só retórica: — Alguém se lembra de opinar sobre um filme, a partir do aspeto da película ou do disco, de reagir ao aspeto da película ou do disco como se isso fosse reagir ao filme? Isso seria tolice tão evidente que nem mereceria ser dita. Só o digo por causa doutra hipotética tolice: a de reagir ao aspeto físico do livro como se fosse a história que lá está dentro e, daí, tratar de enfeitar, de ornamentar, de substituir o aspeto pressupostamente desanimador de um livro. Ou de o rejeitar: ou porque é volumoso ou porque é graficamente denso ou porque não tem muitos espaços brancos separadores dos diálogos e dos parágrafos ou porque não tem cor, ou não tem ilustrações.

Isto resulta, talvez, da  interiorização, ainda que pouco consciente, da falsa ideia de que o livro (físico) é a história. É e não é. A película/o disco é e não é o filme. O livro é e não é a história.

Quando a Alice foi atrás do coelho aquilo ainda não era o país das maravilhas; aquilo era só um buraco na terra sem graça nenhuma. Ninguém o tinha pintado de muitas cores nem polido com muito brilho para atrair a Alice. Ninguém fizera dele um irresistível motivo de atração. Ninguém? E deixamos de fora o imaginário de Alice? O imaginário de uma criança que viu um coelho tirar um relógio do bolso e o ouviu falar. As crianças, — as crianças? pensando melhor, as pessoas em geral — parece-me, andam é a ser demasiado convencidas a só valorizarem o gosto do que é, exterior e imediatamente, colorido, movimentado, sonoro, sensorialmente agitado e feitas esquecer de que têm mundos por dentro de si, por dentro das suas cabeças.

Somos nós, os leitores, somos nós com o nosso imaginário que transformamos os livros em histórias. Ao deixar-me escorregar, ao deixar-me cair pelas palavras de um livro acima ou abaixo, simultaneamente eu experimento acionar um mundo paralelo. Sou eu o “projecionista” daquela fita contínua de palavras e simultaneamente o seu espectador e, até, participante, pois nelas me projeto. E com uma liberdade insuperável de fazer avançar, recuar, acelerar, demorar, parar, contemplar, intervalar, adormecer e acordar; e em plena luz para escrever ou desenhar o que me passar pela cabeça, sem precisar de óculos especiais para o 3D, 4D, ou os DD todos que quiserem, porque todas as dimensões tenho-as eu,  até as que não tenho, mas ganho, ao projetar-me numa nova ou de uma nova história contada num livro. Valorizamos muito o livro, achamos que, nesta história da leitura, o livro é a personagem mais importante — e, sim, está muito bem, os livros são parte fundamental desta história — mas é muito importante também, é, acima de tudo, importante, valorizar o leitor, fazer com que cada um aprenda a ser leitor, ou seja, esse tal “projecionista”.

Para que a leitura seja, nelas, uma coisa perdurável, têm de ter sido elas, as crianças, a experimentarem, tem de ter sido cada uma delas, com o seu imaginário, a detentora desse livre poder de transformar as letras sobre papel — não esquecer nunca as letras sobre papel — em gente, em cenas, em sonhos, em gargalhadas, em sustos, em histórias, em perguntas, em coisas que nem souberam bem nomear, mas cuja descoberta deixou inscrição profunda. Mais do que inventar essa plétora de estratégias motivadoras, temos de insistir em fazer essa coisa simples e complicada, que tantas vezes também fazemos, que é ler. Ler com eles livros escolhidos com um critério de que não esteja ausente a ideia de que estamos a semear para o futuro. Ler com eles e, pressentindo o momento certo, passarem a serem eles a ler connosco, passarem a serem eles a ler sozinhos. Acompanhá-los de perto e conhecê-los como leitores ou como futuros leitores e dar-lhes o momento de se tornarem leitores.

Isto, que é ler, tem de ser, num dado momento, uma descoberta pessoal e solitária, um encontro íntimo entre alguém e as palavras de um livro, sem mediações e interposições. Este prazer de ler tem que ser descoberto como um prazer solitário, que se multiplica na posterior partilha, sim, mas que para que fique verdadeiramente entranhado, tem de resultar de ser eu a transformar um livro em história. Tenho de aprender, eu, a projetar-me nas palavras e das palavras, fabricando coisas com o meu imaginário a partir das palavras que aprendi a descodificar.

Ler é muita coisa e resulta de muitas capacidades e competências, sabemos, mas ler é, sobretudo, um ato de imaginação, um ponto de encontro entre aquilo que um livro permite à minha imaginação e aquilo que a minha imaginação permite a um livro.

Um livro começa por ser história no imaginário do seu autor, depois é só papel pintado com tinta numa livraria, numa biblioteca, e eu, leitora, eu com o meu imaginário faço-o de novo ser história nem sempre totalmente coincidente com a do autor, diga-se, e é essa a minha eufórica façanha. Não posso apenas ficar sentada no lugar que me deram a assistir ao que outros com os seus imaginários projetaram do livro para me servir, para me aliciar. Há um momento fundamental em que tenho de ser eu a sós com aqueles bichinhos sobre o branco do papel como o Tarzan chamou às letras quando as viu pela primeira vez.

Peço desculpa, mas não resisto a que todos leiamos ou releiamos, aqui, um pequeníssimo extrato do 1º vol. dos livros de Edgar Rice Burroughs, respeitante ao primeiríssimo encontro entre Tarzan e um Livro, porque, para mim, este textinho é uma lição:

«Inicialmente tentou tirar das páginas as pequenas figuras, mas logo compreendeu que não eram reais, embora não soubesse o que poderiam ser e não tivesse palavras para descrevê-las. Os barcos, comboios, vacas e cavalos, não tinham qualquer significado para ele, mas todavia não lhe pareceram tão intrigantes como as estranhas figurinhas que apareciam abaixo e entre os desenhos coloridos - deviam ser insetos, talvez, porque muitos tinham pernas, mas não encontrou um só que tivesse olhos e boca. Era o seu primeiro contacto com o alfabeto e tinha mais de dez anos. Evidentemente que nunca vira, antes, caracteres impressos, nem falara com qualquer criatura viva que tivesse a menor ideia sobre a existência de linguagem escrita. Não sabia que fosse possível ler. Por isso não admirava que não pudesse fazer qualquer ideia sobre o significado daquelas estranhas figuras. A cerca do meio do livro, descobriu a sua velha inimiga, Sabor, a leoa, e mais adiante viu Histah, a serpente. Aquilo era maravilhoso e absorvente! Nunca antes, nos seus dez anos de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tanto prazer. E tão absorvido estava que não notou a aproximação da noite senão quando a escuridão já não lhe permitia ver. Pôs o livro no armário onde o encontrara e fechou-o, porque não queria que outro encontrasse e destruísse o seu tesouro.»

Edgar Rice Burroughs, Tarzan dos Macacos, vol I

Receio que haja quem pense que esta narrativa da descoberta da leitura por um Tarzan de dez anos é pura fantasia. Que isto não é senão ficção. A história é fictícia, sim. Porém, a emoção é verdadeira. Haverá quem pense, que não é de fantasias, mas de estudos científicos e técnicos, que se deve tirar lições. Será assim, será, mas quanto a isso sou um caso perdido. Aprendo imenso com a arte literária. Não é que não aprenda também com esses estudos, mas sei que, muitas vezes, a literatura vai beber a fontes mais profundas e mais perduráveis que as do conhecimento científico.

Pois... o textinho de Edgar Rice Burroughs acompanha-me na convicção de que ler é cá uma coisa entre mim e as palavras e que, como lá diz, o mais intrigante de tudo eram aqueles desenhinhos, ou seja, as palavras. Penso que o que temos de valorizar num livro são precisamente as palavras e resistir à ideia de as disfarçar por trás de biombos que pensamos mais atrativos.

Tem de ser, a criança, insisto, a projecionista daquele escuro desenrolar das letras pretas sobre o papel branco que é o livro. Porque isto, por mais que invoquemos coisas paralelas e complementares e lhes chamemos livros e lhes chamemos ler, isto de papel e letras — ou de letras num ecrã, se quiserem, mas isso seria todo um outro debate — é que é o essencial de um livro. Se assim não for, que ninguém espere que um dia  ela não olhe Os Maias como uma grande maçada, e não metafórica, que quer evitar.

A descoberta da leitura, às vezes, fazêmo-la mais sozinhos; outras vezes, dá-se em momentos como que de interação entre um mestre e um aprendiz, momentos de oficina.

De facto, aprende-se a ler, educam-se leitores. E nesse sentido que, de início, defini. Como coisa consistente e como coisa literária. Há mestres e aprendizes da leitura. É possível abrir a nossa leitura como quem abre a porta de uma oficina. É possível ir para o pé de quem lê como quem vai para a beira de um mestre-artesão vê-lo nas tarefas das suas artes: vê-lo/ouvi-lo a ler; conversar com ele sobre o que lê; interrompê-lo; pedir para também  deixar fazer; pedir para nos dar um bocadinho do que está a fazer; ouvi-lo a ler em voz alta; recontar; ler aos bocados; folhear; entrar em rodas de leitura; responder a perguntas; fazer perguntas; deixar as crianças sozinhas com um livro, estando por perto, para que ela nos diga, ou não diga, o que quiser. Coisas simples. As crianças gostam de estar ao pé de quem está a fazer coisas, de imitar, de pegar nos utensílios, de fazer — mesmo sendo ainda incapazes — o que um dia farão sendo capazes. Assim, poderá ser com a leitura. Gosto da expressão: Oficinas de Leitura. Da expressão e da sua prática.

Não duvido, e digo-o outra vez,  de que, há uns tempos a esta parte, estamos, cada vez mais, a fazer as crianças gostarem dos livros, falarem sobre os livros, aderirem e participarem com gosto e imaginação nos mundos que as histórias que estão nos livros lhes abrem. As iniciativas, as práticas, de promoção da leitura junto das crianças multiplicam-se. Mas, volto a perguntar (e esta insistência é certamente sinal de preocupação) será que estamos a conseguir ir a camadas mais fundas do que as do prazer temporário que as crianças tiram dessa panóplia de sessões? Será que a bem intencionada preocupação de associarmos à leitura aquilo que de imediato agrada às crianças, não provoca, nelas, uma espécie de erro de perceção, não desfigura o que verdadeiramente é ler? Será que o gosto que nelas se inscreve e cria memória é verdadeiramente o do encontro íntimo e solitário com letras estampadas num livro ou iluminadas num ecrã, que nos pedem atenção e imaginação? Será que, bem intencionadamente e em prol de objetivos indiscutíveis, não estaremos a chegar ao excesso de desfigurar a leitura aos olhos de crianças que, mais tarde, perante a densidade e austeridade do preto e branco das letras em páginas e páginas parecem nem saber nem sonhar do gosto de, a partir delas, projetarem histórias, curiosidades, aventuras, loucuras, devaneios, surpresas, espantos, perplexidades, aflições, angústias, risos, sei lá... Será que estamos a exceder, em inventiva motivadora, o que a leitura, pela sua natureza de coisa tecnicamente pouco vistosa, permite e, assim, de certo modo, a contrafazê-la? Será que era de fazermos o esforço de nos aproximarmos, ainda mais, da experiência do confronto da criança com a simplicidade, a modéstia, das letras de um livro, ao longo das suas páginas? Será que não estamos a evitar ouvir, a procurar defender-nos de, em algum momento, ouvir: — Que maçada! Ou o equivalente mais natural : — Que chatice!Que seca! com que teremos de saber lidar?

Será que nos é difícil colocarmo-nos, nós, como prova, em espécie e em leitor presente, de que sabemos fazer o tal truque de soltar a nossa imaginação e a deixarmos impulsionar as palavras de um livro? De que é esse o truque, o da imaginação, que magicamente transforma a tal maçada de LER numa outra espécie de liberdade, no poder de, pelas palavras, estarmos noutros mundos? Sermos nós a prova e, ao sê-lo, fazermos nascer em outros a vontade de experimentar, de também serem... leitores? E será que, porque fazer isto nos é difícil, optamos pelo recurso a coisas substitutivas, visuais, plásticas, musicais, gestuais, lúdicas, que de imediato agradam às crianças?

Abrir, aos outros, às crianças, a nossa relação íntima com as palavras, abrir-lhes o que vemos, o que ouvimos, o que sentimos, enfim, o que vamos fabricando enquanto lemos, pode aparecer-lhes como uma coisa intrigante, cheia de suspense, instigadora da sua curiosidade, altamente motivadora.

De facto, sobre a motivação para a leitura — e pensando, agora, mais em leitores adultos e jovens — tenho pensamentos simples. Tão simples, que poderão suscitar um sorriso de complacência suspeitosa. Penso coisas como: ler é ler. (ponto) E outra: demonstrar a valia da leitura é mostrar a leitura. Com autenticidade. Talvez esta minha defesa da simplicidade seja espicaçada pelo testemunho de uma deriva sloganizadora das mil e uma maravilhas de ler, que me parece correr o risco de perder o pé relativamente àquilo de que falamos quando falamos de leitura. A minha experiência de leitora ao longo da vida, a minha história de leitora, a minha constante reflexão sobre o que é ler, dizem-me que a leitura não é, nem precisa de ser, nem pode ser, essa panaceia para todos os males que, tantas vezes, vejo e ouço apregoar. É muito mais do que panaceia, do que uma coisa terapêutica. Atua numa outra dimensão, a dimensão existencial.

Temos de dizer e mostrar aos jovens que a nossa existência é muito pobre sem a dimensão do imaginário e sem a interpenetração entre real e imaginário; que a leitura ativa em nós e multiplica a sede de imaginário; que ler literatura é ter a experiência da arte literária, de que precisamos para fruirmos a vida nas mais elevadas e fascinantes dimensões do humano. «A arte é um antidestino.»  — disse André Malraux — naquele sentido em que nos interrompe o determinismo das rotinas e nos abre horizontes que nos fazem ver. O tempo das nossas vidas em que estamos a ler as grandes obras literárias não se encaixa na mera categoria de divertimento, distração, lazer. E isto distingue a leitura de outras ocupações de tempos livres que, por vezes, por inércia, colocamos ou deixamos que coloquem no mesmo plano. Temos de dizer e mostrar aos jovens que nenhum desses objetos de distração maioritariamente audiovisuais que, por aí, constantemente atuam sobre o nosso imaginário, nos garantem tanto a liberdade de sermos e de nos imaginarmos como a leitura.

Temos de o dizer e de o mostrar, de o demonstrar, aos jovens que não leem. Não basta colocar-lhes um livro na mão com o qual não sabem o que fazer. Não basta. É preciso dizer-lhes e mostrar-lhes que dentro daquele livro há um segredo, ou vários segredos, e dar-lhes as dicas que encaminhem a sua imaginação para o roteiro de descoberta desses segredos. A ler, ensina-se, e ensinar a ler não é só ensinar a juntar as letras como se dizia dantes. Ensina-se a ler um dado livro. Para o fazermos, precisamos de ser leitores desse livro e de muitos outros. Ser leitor é uma responsabilidade; ser leitor e simultaneamente professor ou bibliotecário, ou as duas coisas, enfim gente dos livros, é a responsabilidade de, perante jovens que não leem, não facilitarmos em termos de qualidade, de atenção, de reflexão. Sabemos que, em muitos casos, a leitura feliz de um dado livro que nós achamos essencial não acontece de imediato, como um milagre, mas não podemos guardar só para nós a experiência que tivemos a ler esse livro. Temos de a abrir, de a mostrar, de abrir a porta da nossa oficina de leitores, maçadas incluídas; de fazer com que — através de toda a curiosidade e de todo o poder de interpelação de que forem capazes ou de que nós formos capazes de lhes despertar — se intrometam e se apropriem da arte de transformar esse quantum da metafórica «maçada» pessoana num prazer tão idêntico a essoutro de «não cumprir um dever» a que Pessoa, no seu poema, chamou LIBERDADE.

 

   

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